terça-feira, 30 de abril de 2013

Daniel é massa é mossa é asa


Quando fizemos o primeiro encontro de poesia Bliss não tem bis em novembro do ano passado, Daniel Massa começou sua apresentação calado, enquanto ao fundo tocavam os acordes iniciais de Complexo de Épico, canção clássica de Tom Zé (lançada no LP Todos os olhos, o da famosa capa idealizada a partir de sugestão do Décio Pignatari, e que ainda vinha com um poema visual de Augusto de Campos no seu ‘encarte’), em que o autor enfrenta a tendência de se submeter a canção ao papel de adesão à lógica discursiva de batalhas políticas e ideológicas. Daniel Massa parece recolher tanto a posição de bufonaria – embora em tom menos histriônico e mais melancólico – quanto alguns procedimentos encontrados na canção. Ele nos lembra que, ali, onde as palavras parecem ter acumulado os sedimentos de certas formações discursivas que consolidam práticas históricas e disputas de poder diversas, sempre se pode confiar na mobilidade da sílaba. Nos seus contos curtos e poemas, há sempre como que essa corrente de ar, em que o som parece dispersar o que as sentenças e as palavras tentam manter coeso.
         Quando, no início do ano, Massa nos disse que iria passar uma temporada na França, pedimos que ele nos mandasse para publicar aqui no blogue Bliss não tem bis pequenos registros e flashes da viagem, numa correspondência sempre incompleta – que lembra que viajar é preciso. Junto com sua carta de (quase) Paris – ele se encontra em Reims, cidade que fica perto da capital – publicamos um conto e um poema curtos e chuvosos, e o querido De que tanto sorri a gorda? (publicado originalmente na Bliss) em versão ilustrada com traçado lúdico por Juliana Teixeira de Freitas.

*

Hoje eu roubei um guarda-chuva.
Em algum lugar dessa cidade submersa de bueiros entupidos e ruas alagadas alguém está molhado porque eu roubei um guarda-chuva.
Provavelmente ele – imagino um senhor. Meia idade, estatura média, calça jeans, cinto de couro e blusa social abotoada até o penúltimo botão antes do colarinho. Recentemente divorciado, mora de aluguel num conjugado e recebe a visita dos filhos adolescentes aos sábados. Trabalha vendendo planos de saúde, embora dependa do SUS e tenha uma consulta com um urologista marcada dali a três meses - chegará em casa com o cabelo encharcado e pingos escorrendo da ponta do nariz. Deixará um rastro a caminho do banheiro. Um espirro. Dois. Três. Não há Coristina em lugar nenhum. Não há Cebion em lugar nenhum. Não há chá de capim-limão muito menos capim-limão em lugar nenhum. Havia, sim, um guarda-chuva. Mas esse foi roubado.
Em algum lugar num conjugado qualquer dessa cidade de deslizamentos e estado de emergência alguém tosse e espirra. Moisés – esse foi o nome dado por sua mãe. Nasceu de oito meses e meio com três quilos e duzentos. Fora a catapora, teve uma infância saudável. Terminou o Ginásio e casou com vinte e três – estará febril. A calça secou atrás da geladeira, mas ele não irá trabalhar. Ele não conseguirá se levantar da cama. Tinha um guarda-chuva que, entre outras coisas, poderia servir de bengala. Mas alguém o roubou.
E fui eu.
Hoje eu roubei o guarda-chuva do Moisés. Que entre outras coisas, como servir de bengala, poderia ter evitado um resfriado que poderia ter evitado uma gripe que poderia ter evitado uma pneumonia que poderia ter evitado a ida de Moisés ao hospital. A ida ao hospital já não pode evitar nada. Um homem morrerá porque hoje eu roubei um guarda-chuva.
Onde quer que você esteja, Moisés, me desculpe. Lamento muito e agradeço pela sobrevida que o seu guarda-chuva me deu.


*



Chove na Rio Branco
e eu que não sou de açúcar
rio amarelo
seguindo rumo
à Carioca.

*



Carta de (quase) Paris.

No último sábado, fui convidado em cima da hora para uma festa em homenagem aos estudantes latinos na França. Aceitei, claro.

Não sou o que se pode chamar de uma pessoa simpática, mas consegui fazer alguns amigos aquela noite. Conversei longamente com amáveis russas, ajudei os franceses com as tarefas domésticas, adicionei um sorridente panamenho no facebook e assisti às meninas dominicanas dançarem no melhor estilo chacal rápido e rasteiro. Mas talvez tenha sido o minuto e meio em que conversei com uma colombiana que me marcou mais.

É um vício um pouco idiota esse que a gente tem de procurar referências óbvias de um país estrangeiro para estreitar laços com seus habitantes. Outro dia, me despedi de uma mexicana no bar aos gritos de “Viva Zapata!”, ao que a moça — penteado britânico, roupa americana e inglês fluente desfilado durante toda a noite — sorriu amarelo e balançou a cabeça: “Babaca”.

Que merda. Os latinos na França são todos ingleses.

Enquanto a colombiana procurava uma música de seu país no youtube, eu disse:
— Coloca Shakira.
Ela foi sagaz.
— Shakira é americana, não tem nada a ver com a Colômbia.
Ponto. Foi o suficiente para que na frase seguinte eu abrisse meu coração.
— Gabriel García Márquez mudou a minha vida.
Ela sorriu e tentou repetir sem sucesso o que eu disse para a outra menina colombiana que dançava algo como el baile del perrito.

Tudo bem. Ali eu já havia reacendido uma antiga paixão.

Tinha 15 anos quando li Cem anos de solidão a primeira vez. Era um garoto que ficava errando pelos livros da biblioteca da escola e foi assim me deparei com uma coleção de banca de jornal d’O Globo. Olhei o livro com a capa toda azul e li o título na lateral. Quando se é adolescente, qualquer minuto sozinho é insuportável, cem anos me pareciam muito tempo para se cultivar a solidão. Li.

E Gabriel García Márquez mudou a minha vida.

Ele me fez prestar vestibular para Letras, ele me fez continuar escrevendo poemas e ficções, ele me fez ser professor de literatura.

Hoje, a notícia mais recente que eu tenho de Gabo fala sobre o seu estado avançado de demência senil. Não há memória. Não há mais livros. Não há sequer um rosto familiar para Gabo. Talvez ainda haja espaço para qualquer coisa de bonito, que lhe invade a cabeça quando bate um vento mais forte e sai antes mesmo que possa deixar qualquer vestígio de que esteve por ali.
 
E é assim que eu vejo Gabriel García Márquez hoje. Vivendo numa Macondo que ele ergue todos os dias e se desmancha antes mesmo de ficar pronta, abrindo espaço para uma nova construção na manhã seguinte.

*









terça-feira, 23 de abril de 2013

Alegria Entrevista (Parte final) – Falam as máscaras, falam os idioletos radicais.

Parte 1 | Parte 2

Encerramos a sequência da entrevista com Ítalo Moriconi com suas considerações sobre a relação entre arte e cultura, e como elas o fizeram reavaliar alguns de seus questionamentos estéticos acerca da produção literária brasileira dos anos 90 em diante.
Na sequência, Ítalo, ao ser convocado para comentar questões que tangem a relação entre subjetividades e poesia, acaba compondo um pequeno autorretrato de sua prática poética: evidencia sua compreensão da linguagem do poema (que ganha corpo na frase “tem que ter o idioleto radical”) e seus procedimentos, sublinhando a dramaticidade e o trabalho da máscara como figurações características de sua persona poética.
         Publicamos, aqui, três poemas de Quase Sertão, livro lançado pelo autor em 1996, e dois de História do Peixe, de 2001 – e ficamos como que à espera das outras: que novas máscaras virão?

De Quase Sertão.

Copacabana

Meu novo amor é gente simples do povo.
Tem 19 anos, negro rutilante.
Entre a última vez que nos vimos (tempos atrás)
e hoje cedo
já trocou de nome pra Rick.

*

(Notícia da Aids)

logo na hora do McDonald’s
gânglios implodiram-lhe o pescoço
grossos como cordas, lajes
pendentes, feito açougue –
carne estraçalhada, e apodrecida

– AVENIDA HIPOTRÉLICA –

seus altos prédios escalavrados
os –
demasiadamente humanos
demasiadamente humanos
contra o céu, decepado
– Cães,
carregai a legenda Ítalo para o meio das ruas
fazei retinir em cantos escusos o mito Ítalo

os
demasiadamente humanos,
vou, de boca em boca,
despedaçado como as calçadas da cidade decadente,
alimentando a boataria,
inspirando jovens visionários

passado jamais existido
sem mais leitores
carne podre
úlceras no cu
logo na hora do McDonald’s

(1984).

*

Contrato

Eu tenho nojo do teu comportamento.
Você tem nojo do meu comportamento.
Vamos guardá-lo no baú ancestral de couro escondido.
E fabricar nosso tecido
De meias-palavras.

*

De História do Peixe.

A palavra glossy

Câmera escondida. Conexões telefônicas sucessivas. Alegria da luta. Metidos em cuecões largados. Ao pé do fogo. Foi minha primeira vez, era um filme inglês. Ou em inglês. Depois dos licores, o fogo pegou mesmo. Papel crouché, brulé. Suas rolas mais rubras, sombras flambadas. O céu baixado sobre o tapete, eliminando o puzzle. Já não eram rolas, eram falos. Todos os poros falavam. Licores faiscavam. Eram mil e mais mil vozes falando, por todas as saídas. Mil vozes, mil poros, mil olhos. Sussurrando e agindo. Aromáticos, pelos matos de pelos, criando seu recesso sagrado. A verdade fulgurou naquele átimo apenas. Seu materialista. Seu hedonista. Seu sem nada. A câmera enganchada, consolatrix.

*

Clearly non-glossy

Comer e dar, dar e comer, comer e dar, mergulhar em cocô. Aquele cheiro incomodava, eu ainda não sabia que vinha e logo de onde. Vingança do tipo de anjo. Quando nasci uns banjos galopantes disseram, a vida é brutal, sabias? Quero delicadeza.

Preciso comer. Preciso tomar as pílulas. Preciso comer. Preciso tomar as pílulas. Vou comer. Você não vai comer. Você vai ingerir as pílulas. Com bastante água. Preciso comer. Vou comer. Vou delirar. A boca pela tua pele até perder. Tudo. Tudo. Não quis deixar nada. O peixe morre pela boca.

Nada deixar. Nada. Cascatas de secreção tatuariam a pele triste. Lhe dei leitinho. Deixa. Jorros. Vindos do ventre besta desativar o credo em cruz, entre ferros. Fica. Mas fica sem pica. Desitalianizar-se. Desamericanizar-se. Desbrasileirar geral. Deixa. Deixa tudo. Não fica. Não volta.

*

BLISS: Apareceu a palavra corpo, e a gente tava antes falando na contracultura anos 70: é um corpo muito diferente, esse que se relaciona na poesia da linguagem, em que se relaciona o corpo com a filologia, daquele corpo celebrado nos anos 70?
I: Olha, eu tô falando em outro sentido. O que eu chamo de poesia da linguagem é o texto, é uma experiência da linguagem, é uma arte que tá relacionada com essa experiência profunda entre pode ser o corpo, mas poderia ser chamado também de interioridade, intimidade, subjetividade. Essa relação íntima entre o corpo e a filologia. Por que filologia? Porque é a linguagem nas suas mínimas filigranas, como que as palavras se relacionam entre si, como que eu posso relacionar palavras, como que elas se encontram, como elas se chocam. E ao mesmo tempo que é uma coisa completamente mental é uma coisa completamente oral. No momento em que ela se torna performática, ela já tá atravessando a fronteira pra cultura, mas, veja, num certo sentido – e é isso que eu critiquei, ou manifestei uma desconfiança quando apareceu, mas que hoje eu vejo que não é essa questão, ou melhor eles têm razão. Eu criticava muito essa posição. A poesia da linguagem, ela é uma reação, ela não é cultural. Porque contracultural é cultural, a contracultura é uma forma de estar na cultura de uma maneira contracultural, com drogas etc., e tal. Mas essa poesia da linguagem é quando a cultura letrada é uma reação ao mundo lá fora, é uma rejeição ao mundo lá fora. Eu acho que a poesia da linguagem tem esse elemento. Quando essa dimensão foi recuperada pela geração 90, eu estranhei isso, porque eu sou da contracultura. Então poesia, pra mim, é cultura. Eu queria ser Maiakóvski. Eu queria que o meu verso fosse lido numa assembleia de professores. Mas ao mesmo tempo de vanguarda: não é um galo tecendo a manhã, é uma coisa assim uma camisa amarela, um manifesto gay. Mas no bojo da cultura, no bojo do movimento, no bojo da vida. Mas a poesia da linguagem, não, ela é perversa, ela é erudita, ela é aquele encontro onde você rejeita, fecha as portas para tudo e vivencia tudo sublimado na linguagem. Então, eu tive uma reação geração 70 contracultural a essa geração 45 ao quadrado sublime, mas hoje eu vejo que não. Porque o sublime pode ser um ato político também bastante interessante. Eu tô vendo nos anos 00, ao mesmo tempo em que eles estão se dessublimando, do ponto de vista da forma poética, eu também tô tendo muito mais a necessidade da questão do sublime. Por exemplo, quer ver uma coisa que de vários anos pra cá é claro pra mim? Às vezes quando eu estou reescrevendo um poema, porque eles existem, apesar de eu estar completamente hibernando como poeta, eles existem, de vez em quando eu tenho tempo até escrevo ou reescrevo coisas, em um tempo, a minha utopia é ter tempo suficiente para mexer nos meus alfarrábios. Mas eu só mexo nos meus alfarrábios se eu tô com disponibilidade, eu não tenho tido essa disponibilidade. Eu substituo cu por ânus, eu elimino, eu já não, não acho tão interessante a linguagem... prefiro usar palavras não-baixo calão. Ou seja, é um movimento sublimante, quando você troca cu por ânus é um movimento sublimante. Principalmente quando você troca cu por orifício veludoso, aí nem se fala. Aí você já entra na metáfora, que também que acho que hoje o potencial metafórico, eu vejo assim poetas novos, como eles inventam, o potencial metafórico é uma coragem. É uma coragem letrada. Você criar metáforas explosivas em cima de uma folha de papel que só quem vai ler são aquelas três ou quatro pessoas que leem a Azougue, e aquilo, de repente, é um espaço de uma importância brutal. Do ponto de vista da cultura, é nada. Não tem mercado nenhum, não vende nada, ninguém conhece. A única coisa que você ganha de vez em quando é uma primeira página no jornal porque tem um valor de fetiche imenso, e é isso que alimenta o Narciso de todos, senão vira uma coisa totalmente privada num certo sentido.

BLISS: Mas essa poesia da linguagem parece ter uma certa capacidade de tomar e elaborar o que vem da poesia da cultura. Por exemplo, essa poesia que você chama de poesia da linguagem também tem uma coisa mais narrativa, também tem um aproveitamento da mídia.
I: É por isso que eu digo, são apenas categorias para ajudar a gente a pensar, mas nada disso é estanque, tudo se mistura. Agora, o que eu tô querendo dizer é o seguinte: o sublime é esse movimento onde o literário é uma afirmação da cultura letrada por oposição, uns poderão chamar de banalidade, eu prefiro dizer por oposição à cultura mesmo. A primeira vez que eu vi a oposição entre cultura e arte, que os franceses gostam de fazer, foi um fundamento vanguardista, a vanguarda é contra a cultura, mas não naquele sentido fraco da contracultura.

BLISS: Mas o Caetano tem isso, naquela música Livros. Acho, aliás, que você vê na trajetória dele exatamente isso que você tá falando, porque ele saiu de uma coisa muito contracultural, e ainda muito na cultura, e quando ele chega nos anos 90, mesmo com a aproximação dele do Jacques Morelembaum, que ele fala que foi um cara que fez ele perder o medo da Música, e em Livros ele fala que a ventura e a desventura são os livros e o luar contra a cultura.
I: É, nesse sentido que eu falei, não é um contra a cultura cultural, a contracultura como comportamento. Que é um sentido forte, mas fraco em relação a esse outro, onde a cultura seria mesmo a cultura erudita, pela lógica, ela é vista mesmo como a rejeição – tem até um poema do Carlito que fala ‘na mercancia da praça pública’ – como uma rejeição da praça pública, da palavra pública. Isso tudo é muito complexo. Agora, veja bem o meu posicionamento no final das contas é e sempre será muito via Maiakóvski. Não é à toa que pra mim o que interessa é o BNegão e o Black Alien. E por exemplo, já naquele artigo de 92, quando eu criticava o sublime, que eu falava numa retomada culturalizada da contracultura, o que eu queria era uma poesia que tivesse sintonizada com essa multiplicação de vozes no espaço público. A coisa mais linda que eu acho, o que eu mais gosto em poesia é quando você tem uma multiplicidade de vozes traduzida numa forma poética. Eu acho que o desafio que tá colocado pra poesia hoje é o desafio da fala, e da fala também como fala pública. E apesar da democracia no Brasil já ter, mas o problema da democracia não é só a democracia no Brasil, é a democracia como uma era humana, onde todos falam. Porque a poesia como parte da cultura letrada, ela é a expressão de uma arte onde alguns escrevem. E o problema da poesia hoje é outro: é como você vai fazer poesia, ou seja, como que vai ser essa relação visceral com a filologia num contexto onde todos falam, todos têm que falar, e é um falatório, uma algaravia total. É isso pra mim que tem que tá no poema. Uma coisa que a Célia Pedrosa falou da minha poesia que ela tem toda razão, eu gosto de uma dramaticidade na linguagem, daí eu acho que o poema metrificado, formal, ele é antidramaticidade. A não ser que você tenha grandes mestres, onde você tenha uma pulsação da forma. Os new critics gostam disso num poema, eles gostam do poema como uma coisa que pulsa pela forma. É toda uma forma amarradinha, autotélica, como dizem, voltada para dentro de uma totalidade, que é criada toda arrumadinha. A minha estética é outra, eu gosto de uma coisa aberta, que flerta com o desarrumado. Nesse sentido que o Kerouac é importante. Eu hoje tô meio digressivo... Vocês vão ter que editar muito. É o que eu digo: é um paradoxo, uma santíssima trindade, uma santíssima dualidade. Eu tô inteiro no espaço da poesia da linguagem, mas eu tô inteiro no espaço da poesia da cultura. Eu acho que eles não se negam. O que eu acho fascinante no Ricardo Domeneck, como figura, é exatamente o fato de que nele convivem as duas pulsões. Ele tem um trabalho de poesia, que é um trabalho de poesia da linguagem, e ao mesmo tempo, ele é um performer. Eu jamais serei capaz de criticar a poesia da cultura letrada. Isso eu não farei, porque a cultura letrada, tadinha, ela é uma pobrezinha. Ela é um aleijão, ela é uma anã, embora tenha um valor de fetiche brutal. Ela é uma míope, coitada, mas eu sou míope, né? (risos) Mas é verdade, você vai criticar a cultura... a cultura letrada é no máximo um refúgio, uma defesa perfeitamente legítima. Não é à-toa que a poesia é chamada de jardim da sensibilidade, é por isso, é um jardim da sensibilidade, mesmo. Agora, você sempre vai poder criticar a poesia da linguagem do ponto de vista da cultura. Sempre vai poder fazer essa crítica, vai chamar ela de alienada. Eu não tô nessa.

BLISS: Eu queria perguntar um pouco dessas formas de falatório, desses poemas dramatizados com diferentes vozes. Em geral, o que está se dando nessa poesia: que sujeito está aparecendo? Quem é o eu dos poemas? Eu estou pedindo para você fazer uma generalização, mas que sujeito se constrói?
I: Eu não tenho uma teoria da questão do sujeito, de jeito nenhum. Eu sou capaz de lendo um autor ou lendo um poema descrever e discutir como que a subjetividade se coloca ali. E eu tenho algumas visões genéricas da questão da subjetividade tanto na esfera da cultura, quanto na esfera da linguagem. E eu acho que elas acabam se cruzando uma à outra. Então eu sou interessado muito por esses temas: da performatização do eu, da autoficção. Eu acho que no campo da cultura letrada, você se dissolve totalmente. Eu acho que o exercício poético da linguagem é constantemente um exercício de subjetivação. Eu vejo poesia como uma subjetivação permanente. Mas a subjetivação pode ser uma dissolução. Não acredito, eu acho que é ideológico, eu não acredito nesse princípio mallarmaico do apagamento do eu. Agora, acho que outros conceitos como a subjetividade em devir, de Deleuze. Eu gosto muito também da máscara. No fundo no fundo, eu fico mesmo com a máscara, com a ideia da persona. Na minha poesia, não tô querendo dizer que ela seja uma grande poesia, não, mas eu vejo muito isso, eu gosto assim de ser o cachorro, de ser... entendeu? Essa coisa dionisíaca básica. Acho que a linguagem poética, você coloca a máscara de um bicho, você vira aquele bicho. Você coloca a máscara do outro, você vira aquele outro. Então, eu gostaria muito mais de pensar em processos de personificação. Talvez dessubstancializar a questão do sujeito em função duma noção de produção do sujeito, de personificação, de máscara. Seria por aí que eu iria.

BLISS: Porque, na poesia, pelo menos na década de 80/90 vem bem forte esses sujeitos novos, também, né? A mulher, o gay, o negro.
I: Aí é o que eu digo: a poesia é um território próprio, é um território circunscrito. Quer dizer, você pode fazer uma boa poesia panfletária, não tô negando aqui o meu parâmetro maiakovskiano, não. A coisa mais bonita do mundo é isso, por exemplo num momento revolucionário – o momento revolucionário que eu digo é uma subjetividade coletiva explodindo, rompendo, com alguma transgressão – quando irrompe a arte. Sempre tem o poeta, o que fala, o que é músico. Então, não tenho nada contra a poesia panfletária, não. Não tenho nada contra poesia ruim. Não, gente, eu tô tomando a Bastilha, aí chega um cabeludo e fala uma bosta de um poema panfletário: péssimo poema, maravilhoso poema naquele momento, naquela performance. Agora, bota no papel, né? Pode ser um documento histórico, pode ser. Eu acho também que a crítica poética brasileira é muito ingênua nesse sentido, é muito provinciana e estreita. E acho que os argentinos também acreditam demais nisso tudo. Então, você começa a estabelecer critérios estéticos assim: vamos agora então ver quem são os eleitos da humanidade e quem são os excluídos da humanidade. Sabe, você tem um movimento da palavra. Claro que assim você tem o bom, o maravilhoso, aquilo que você vai preservar, que você vai guardar. Onde é que a gente tava?

BLISS: Sobre esses sujeitos novos.
I: Sujeitos alternativos. Então, veja bem. Existe a poesia panfletária, a poesia que vai ser em prol do movimento feminista, da libertação da mulher, do gay, do negro, do etc. e tal. Mas do ponto de vista mesmo do que eu gosto no final das contas, que é essa poesia da linguagem, a gente então ficando restrito no quadradinho [passa os dedos por sobre a capa da edição de um ensaio de Ricardo Domeneck, intitulado De figurinos possíveis em um cenário em construção e lançado junto com o primeiro número da revista Modo de Usar & Co.; nela, se vê em um quadrado destacado uma mão segurando uma melancia], boa essa capa! Ela corresponde exatamente ao que eu tô querendo dizer. Eu acho que é difícil você fazer alguma coisa realmente interessante, do ponto de vista de uma poética erótica – eu não quero ser também aqui taxativo demais – mas do ponto de vista de uma poética erótica ou amorosa, eu acho que hoje em dia você fazer isso em cima de uma heteronormatividade é meio sem graça, é muito codificado. Então, por exemplo, eu dou muita importância a uma poética homoerótica porque eu acho que ela tá desbravando fronteiras na própria linguagem. Porque por mais livre que a linguagem poética seja e tenha sido, ela é muito presa. Então eu valorizo atualmente, por exemplo, na poesia contemporânea, eu valorizo muito uma poesia homoerótica. Não só porque eu faço poesia homoerótica, ou talvez por isso, talvez só por isso. Então, por exemplo, como é que uma poesia feminina vai me pegar? Eu acho que ela vai me pegar – ela vai ser revolucionária pra mim – na medida em que ela também tá saindo de uma heteronormatividade. O poema panfletário, ligado ao movimento feminino, ele vai trabalhar um clichê de mulher, assim como existe o clichê de homem, que é dominador, aí vem o clichê da mulher dominada que reclama e se liberta. E procura uma igualdade, e que depois que conquistou a igualdade, afirma a sua diferença. Essa ordem de questões eu acho ela menos interessante para a poesia. Porque aí acho que a poesia, ela tem que ser idiossincrática mesmo, ela tem que ser idioletal mesmo. Se ela tá promovendo um conceito social de homoerotismo, um conceito social de feminilidade, um conceito social de negritude, eu acho ela menos interessante. Ela é ruim. Volto a repetir, eu não tenho nada contra a poesia ruim. Mas é poesia ruim. O que eu quero nesse nível, aqui da poesia da linguagem, é uma outra coisa, é o idioleto mesmo. É uma vivência. Agora, veja bem, o idioleto não necessariamente precisa ser a expressão de um fetiche autoral, porque eu acho muito interessante, embora eu nunca tenha me interessado, quando me fizeram proposta de escrever poesia a quatro mãos, em dupla, eu nunca quis. Mas também acho interessante você trabalhar a quatro mãos, trabalhar num coletivo poético, como os surrealistas criaram, como os concretistas faziam, como todas as vanguardas fizeram, se dissolver. Então eu tô falando do ponto de vista do idioleto, porque eu tô falando do sujeito na linguagem, porque é isso também que acontece, a partir do momento que você faz o poema, aí tem uma questão da subjetividade colocada no poema, pelo poema, para o poema.

BLISS: Mas é desse sujeito que eu estava perguntando.
I: Com relação a esse sujeito que você tava perguntando, eu acho isso. Eu acho que a linguagem poética, no limite, ela é idioleto, sim, ela é de uma singularidade radical. Ela só me interessa se tiver singularidade radical. Se ela não tiver singularidade radical, ela é poesia média, poesia ruim. Todas merecem aplausos. Todas são filhas de deus. Mas tem que ter o idioleto radical.

BLISS: Adorei essa, tem que ter o idioleto radical.
I: Então tem que ser mulher idioletica ou seja idioticamente. Porque a poesia poética, a poesia boa é uma poesia idiota. É uma idiotia da linguagem. Claro! Do ponto de vista do senso comum, a linguagem poética é totalmente idiota. Do ponto de vista do engenheiro que tem que construir pontes e da dona de casa que tem que alimentar as crianças, tudo que a gente acha bom é uma idiotia em certo sentido. Eu acho que essas questões são fundamentais, questão da negritude, questão do homoerostimo, questão da mulher, mas idioleticamente falando, do ponto de vista estético e linguístico. E não como panfleto, não é para promover uma subjetividade social. É por isso que sempre vai ter o conflito, a complementaridade e o conflito entre o espaço da arte e da cultura, naquele sentido, que eu odiava os franceses falarem, mas hoje eu reconheço isso. Tem um espaço da arte, que por mais que ela vá ser apropriada socialmente e ela o será necessariamente, mas por mais também que você tenha essa necessidade normativa e essa realidade normativa de tudo que é dito, você também tem sempre o espaço, ou seja, já há uma expectativa para o abalo disso de alguma maneira. Um abalo até silencioso, no caso de boa parte da poesia. Então é difícil pegar, porque é uma coisa paradoxal, são valores muito opostos que no final podem ser também complementares.

BLISS: Na poesia homoerótica contemporânea, quem você acha que consegue ser idioleticamente idiota?
I: A maioria. Eu acho que a poesia homoerótica especificamente não faz muita panfletagem, não. Eu acho que, é o meu caso, inclusive, nunca quis fazer... também a minha biografia é muito complicada, eu acho que a palavra gay não define a minha biografia. Basta dizer que eu sou avô nesse momento. Então muito complicada. Mas eu acho o seguinte, eu acho que quem tá optando por escrever sobre a questão homoerótica na poesia é porque também não tá afim de ir pro movimento, entendeu? Ou tá querendo tá no movimento através da sua poesia. Eu não vejo muita panfletagem, não. No caso da poesia da mulher, eu acho que o problema da poesia da mulher – também acho que as nossas grandes poetas são muito legais – só as fracas são aquelas que ficam contando o cotidiano da mulher. Hoje tô cozinhando, hoje caiu um ovo, hoje gozei. Eu acho que muita poesia feminina tem a tendência às vezes até sofisticada de descrever o cotidiano feminino. Eu acho que é uma coisa que já cansou, que já ficou meio clichê. Mas eu acho que tem muita gente legal assim. A própria Cláudia Roquette-Pinto. Eu acho que tem lá coisas que você pode até questionar esteticamente, mas eu acho que ela já tem uma sofisticação na exploração do feminino que eu acho que é por aí.

BLISS: E Adélia Prado?
I: Olha, Adélia Prado eu acho uma poeta básica, assim, é o que eu chamo de poeta essencial. Tá um pouco acima do bem e do mal. Mas também muito assim, muito Bagagem, os primeiros livros dela. Depois já não acho que ela seja tão interessante assim. Mas ela é sempre muito interessante, mas ela é interessante até porque ela fala um pouco de dentro da situação da mulher comum, e ela não seria clichê, ela escreve muito o cotidiano feminino, mas ela tem sempre uma perspectiva um pouco perversa. Sempre ela tá olhando para esse cotidiano da dona de casa, mas sempre com alguma coisa... Eu valorizo Adélia Prado, eu gosto de Adélia Prado, apesar de ela ser uma poeta popular entre aspas, eu acho ela uma poeta legal, eu gosto. É disso que digo que o meu universo estético se moveu muito, hoje eu sou uma pessoa que posso gostar de uma Adélia, posso gostar de um Manoel de Barros. Desde aqueles primeiros tempos do Metalinguagem, que é...

BLISS: Eu queria falar sobre isso. Você tem um artigo em que você fala que existiria no Brasil duas pedagogias do poema básicas. Já tem algum tempo. Que seria a do Antonio Candido e a do cânone modernista básico e a do Concretismo. Você se considera formado numa pedagogia do poema concretista?
I: Num primeiro momento, sim. Mas aí toda minha vida foi uma desconstrução disso. Desconstruir sempre é uma ampliação. Porque eu acho que a poética concretista é muito baseada num recorte de exclusões então eu tive que aprender esteticamente a ser cada vez mais... entendeu?

BLISS: E você acha que ainda hoje no Brasil teriam essas duas pedagogias ou você acha que já mudou isso?
I: Não. Eu acho que ainda existem os herdeiros do Concretismo, que são dogmáticos. Eu acho que ainda existe uma pedagogia uspiana, que é dogmática, mas é burocrática, acadêmica, universitária. Mas eu acho que tudo que eu falei vai contra isso. Essa geração dos núcleos, a Azougue, Inimigo Rumor, ela tá partindo de outros pressupostos. Por exemplo, Carlito e o pessoal da idade dele, que chegou nos anos 90, eles chegaram criticando a polarização. O ponto de partida já foi uma tentativa de conciliação. Então eu acho que inclusive essa tentativa de conciliação e essa abertura para uma diversidade faz parte do contexto político e filosófico mais amplo que afetou a América Latina e a intelectualidade brasileira, principalmente, menos na América Hispânica, que é essa coisa liberalizante. Ficamos mais liberais. Éramos ideológicos, ou você era concretista, ou você era comunista, ou não era mais nada. Na esfera da poesia, o primeiro movimento da geração do Carlito foi o movimento da conciliação. Poderíamos analisar essa história da conciliação enquanto conciliação, mas o que foi importante é que a partir dali, ele se tornou o A do ABC do jovem poeta brasileiro. Quer dizer, não tenho partido. Não sou modernista contra o concretista. Eu quero o concretismo, eu quero o modernismo e eu tô com tudo. Já foi a mudança total a partir daí, a partir dos anos 80/90. E aí, nós tamos vivendo já nas consequências disso. Um outro contexto. Os cadáveres estão mais do que enterrados. De vez quando, sobe um de repente, se agita, faz beicinho, entendeu? (risos) E o Arnaut Daniel? Mas eu acho que todo mundo tá partindo de um outro terreno e sobretudo cheio de gringo. Você não ouve um jovem poeta hoje falar: ah, eu amo Drummond. Ah, eu amo o Bandeira. Ouve? Os poetas falam isso? Não. Não sei. Vocês veem isso? Eu tô enganado? Eu tô errado? Ninguém fala eu amo Murilo Mendes, eu amo Jorge de Lima. Não. A minha geração sim. Eu amo Drummond. Hoje em dia, não. Hoje em dia, as pessoas partem, sei lá, um é Andy Nachon, o outro é Carlito Azevedo, é Ana Cristina César, muito. Forte. Porque a Ana Cristina é uma que a linguagem dela já vai além dessa polarização. A Ana Cristina tem um perfil parecido com o de todo mundo hoje. Porque junta tudo, mistura referências eruditas e populares, pops, já tá num terreno que é concreto e é modernista e é muito cheio de estrangeiro povoando o imaginário dela. Então acho que ela tem essa presença simbólica forte.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Alegria Entrevista (Parte 2 de 3) – Fala o crítico.

Parte 1

Na segunda parte da entrevista feita com o Ítalo Moriconi, podemos ver um destaque maior ao pensamento crítico sobre a poesia produzida no Brasil e no mundo no final do século XX e no início deste outro século. Ítalo revê algumas de suas posições, fala das reações e do encontro entre o que a crítica costumou estabelecer como poetas da geração 70 e da geração 90 no Brasil. Seu exercício crítico, que ele mesmo chama constantemente de pragmático (com receio do próprio excesso), ganha definição lapidar na ideia da busca de um ceticismo ativo.
         Por fim, comenta com entusiasmo a produção poética atual, e tenta estabelecer duas pulsões, ou dois binômios importantes para a compreensão do que move a poesia: a poesia da linguagem, ou a poesia na linguagem, e a poesia da cultura, a poesia dentro da cultura.
         Publicamos com essa segunda parte poemas da primeira sessão de História do Peixe, livro de poesia do autor lançado em 2001 e declaradamente seu preferido.

Histórias de um peixe

Sublinho a linha de teu dorso
com a escrita úmida, estilete de saliva
que aponta ao pespontar cada ponto de poro teu

você pode sucumbir
oh você deveria sucumbir
à escrita de teu dorso tigrino, circunspecto

haverão de me entender, os que lerem
estas traçadas linhas, trilhas
com volutas sobre a linha que se esfia

*

Sim, eu digo, ou tremo,
gosto assim, em descuido de direção,
curvas como pela estrada da serra, de santos
que acendem aqui, no oco dos cavalinhos de pau
o desejo de meu pai por minha mãe
e dela por ele
perene em mim.

*

Vamos ver o que fazer.
Nada.
Deixar-se ficar
Ao sabor das pedras
Que rolam sobre outras pedras
Movidas pela água
Enquanto dura.

*

dramatis persoanae: Genet, Fassbinder

na trilha do grafito rocambolesco
legendas de marinhagem, a
navalha, zás!
os músculos, atrás!
Veloz! a valsa vai
Com cuspe, sangue, merda
eterna, e escondida, a escovar
sua sinfonia pelos banheiros

*

BLISS: De uma forma um pouco mais geral, a gente tava falando de contracultura. O que acontece nessa ruptura com a contracultura, ela desaparece? Ou você acha que ainda nos 70 e inclusive agora tem alguma forma possível de contracultura e qual seria?
I: Não eu acho que a contracultura tem sobrevivências... (A sala é invadida pelo odor de um baseado distante). Falando de contracultura, a vizinha aparece. Basta o Márcio chegar aqui, a vizinha começa a fumar maconha, não é todo dia. (Muitos risos). Repete a pergunta.

BLISS: O que acontece com a contracultura nessa virada e se a contracultura na década de 80, na de 90 e inclusive agora, tem alguma forma possível de ser? Qual seria a contracultura depois dos 80?
I: Primeiro, eu acho que nós temos que tomar um certo cuidado para não reificar, porque a contracultura não é uma instituição, ela é uma fórmula vaga. De certa maneira, é um rótulo, um fetiche midiático, então você tratar também a contracultura como objeto ou sujeito é complicado. Agora, eu acho que você pode identificar determinados life styles, modos de vida, determinados valores, uma certa tradição, que tem a ver até também com boêmia. Talvez a contracultura seja até um capítulo da história da boêmia. Então eu gostaria de ver de uma maneira assim mais frouxa. Então você tem sobrevivências residuais. Hoje em dia, você tem tribo de tudo. As pessoas são mais contraculturais, menos contraculturais. Mas eu acho que a questão é outra. Eu vejo uma ruptura muito grande. Por um lado, aquilo que a gente identifica como contracultura como alguma coisa muito datada, não tem nada a ver com hoje em dia, mas por outro lado, a contracultura, ela se identifica com determinados elementos revolucionários, transgressivos, libertários... é que nem a questão do revolucionário marxista. É a mesma coisa. Eu acho que é perfeitamente possível fazer a crítica radical do socialismo real, do marxismo real, dos partidos comunistas, e que hoje você muitas vezes está sendo fiel àquilo que é o impulso marxista revolucionário mais profundo às vezes assumindo posições que são completamente opostas. Por exemplo, você só será fiel ao marxismo em Cuba, se você for de oposição ao regime cubano, você será fiel ao marxismo na Europa Oriental se for oposição à Europa Oriental. A nova esquerda contracultural já achava isso. Na peça Rock’n’Roll, fala-se de uma coisa que era um mote dos anos 70, que era um pouco exagerado, mas é verdade, que é aquela coisa, a suástica igual a foice e martelo. O regime stanilista é um regime totalitário, totalitarista de estado. O que eu acho então é que os herdeiros ou os interessados na contracultura podem encontrar no contexto contemporâneo as tendências que constituem esse solo. Pode ser que esteja sendo um pouco otimista. Por exemplo, o que me parece uma coisa contracultural hoje: pode parecer um pouco bobo porque a própria Globo já incorporou esse discurso, mas eu acho que é essa cultura da periferia, essa coisa hip hop, essa coisa rap. Tem que ver como: porque é como Walter Benjamin mostra, o mesmo fenômeno social, ele tanto pode ter uma leitura e ser uma coisa fascista quanto ter uma leitura e ser uma coisa revolucionária. Por exemplo, na primeira versão da Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica, ele cita o Mickey Mouse, ele defende o Mickey Mouse como um fator extremamente revolucionário dentro da estética das massas. Porque o problema é como você vai fazer: você vai tá trabalhando numa esfera de estetização dessas coisas que representam a transformação (que é sempre a ascensão democrática, sempre questão de vida também, e aí a contracultura entra); ou você vai tá estetizando isso a partir de um espetáculo centrado, monocromático e totalitário em prol de um bem comum, em que todos batem palma; ou você vai politizar esse processo, ou esse processo vai tá se dando de uma maneira politizada. O que significa fundamentalmente politização? É aquilo que o Deleuze tanto gosta, são os devires que explodem, são as subjetividades. A politização é a diversidade, são os conflitos, são os interesses conflitantes, ou se você quiser uma coisa mais bélica, foucaultiana, são as guerras e o espaço público. Eu acho que o contracultural tem a ver com esse movimento social: se você vai se colocar dentro de uma criação de uma normatividade unânime ou se você vai ser uma voz dissonante de alguma maneira dentro daquilo, agora eu também sou muito pós nesse sentido. Eu acho que uma coisa da contracultura e da tradição revolucionária, eu acho que não cabe mais. Talvez eu seja um pouco funcionalista e pragmático demais, eu acho que realmente você pode ter milhões de vozes dissonantes, mas como diria Foucault, sempre essas vozes dissonantes tão apontando para uma nova sistematicidade; quer dizer, eu não acho que tem nada redentor. Porque a contracultura tem algo de redentor, o Kerouac é um religioso, redentor, que quer redimir a humanidade, a humanidade, a dor humana, então nesse ponto, não, nesse ponto, eu sou cético. Eu acho que, do ponto de vista filosófico, dentro de uma clave não-totalitária, dentro de um partido não-totalitário, eu acho que a grande mudança é justamente essa conquista de um ceticismo... a conquista de um ceticismo, de ethos também, de verificar que o próprio pensamento crítico se esclerosa e se torna dogmático. Então o próprio Adorno já tinha reconhecido isso, o próprio pensamento crítico, a própria razão, toda a razão traz em si um fundamento mítico e o Wittgenstein também, toda a linguagem se petrifica num sistema dogmático, totalitário, como diria o Barthes também, toda linguagem é fascista, isso é inerente ao processo social, às linguagens, então acho que o ceticismo é uma conquista. Aí não dá pra compactuar com a contracultura, eu sempre tive esse problema com a contracultura, que as pessoas na época acreditavam muito naquela opção de ir pro mato, essa coisa do acreditar demais...

BLISS: Como essa conquista de um ceticismo ativo poderia se dar na poesia dos anos 80 pra cá? Pergunto porque me lembrei que você tem um artigo sobre poesia dos anos 90, em que você fala da volta do sublime na poesia brasileira , que você conclui propondo o que chama de uma retomada culturalizada da contracultura...
I: Olha, eu fui profético, eu me lembro que eu tinha nos anos 80, eu tinha oficinas literárias, oficina poética, olha, eu vou te dizer quem participou das minhas oficinas poéticas: Toni Platão, ele nem deve se lembrar... tá até com show no Canecão... E Alvinho que hoje em dia é do JB, editor do Ideias etc. e tal. Então eu dizia, só pra fazer blague, eu dizia assim: cuidado porque a geração 90 será uma geração 45 ao quadrado... e não é que aconteceu? (risos). Não, eu tô exagerando um pouco, entendeu? Porque eu acho também que a minha geração, a geração 70, diante de uma nova geração, nos anos 90, ela reagiu muito mal num primeiro momento, até por uma questão de competitividade, e porque também pintou, a partir do final dos anos 80, um jogo mercadológico mais pesado e as pessoas ficaram um pouco ressentidas porque o nosso horizonte era mais pobrinho, era distribuir uns papeizinhos ali na porta do cinema, então de repente ter uma coisa midiática, até que eu me lembro por exemplo da coleção Claro Enigma do Augusto Massi, e toda uma seriedade nova em torno da nova poesia, então acho que houve um primeiro momento também de rejeição, né? Que é normal que uma nova geração seja a continuidade e a reação contra aquilo. Então, eu fiquei espantado quando vi os novos poetas dos anos 90, porque eles assumiam essa coisa da poesia, do poético, mas eu acho que eu exagerei um pouco em ver... por exemplo, essa questão do sublime, mas isso existe, ao mesmo tempo eu acho que existe. Eu acho que eu vi de maneira negativa num primeiro momento algo que hoje eu não acho negativo, porque a minha estética também mudou demais, as minhas preferências estéticas mudaram demais. Muito mesmo, então esse pragmatismo político de que eu falei, ele também existe do ponto de vista estético. Tenho que reconhecer isso, eu acho que hoje em dia, eu tenho uma estética muito mais aberta. Eu acho que os anos 90 com esse negócio de fazer poeminha metrificado... agora tô falando só do ponto de vista da província da poesia, então pensando esses processos todos do ponto de vista da província da poesia, o que os anos 90 vão indicar num primeiro momento? Indicaram uma volta às formas tradicionais do verso, uma recuperação do soneto, uma revalorização da métrica, uma revalorização da rima, que eu não acho negativos em si, mas eu prefiro um conceito de ritmo muito mais rico, muito mais elaborado.

BLISS: Eu estava lembrando daquele texto  que você escreveu para a revista Margens, que já tem dois anos, sobre a geração 00. Você dizia que ainda tinha que ser feito um perfil da geração e dava alguns traços marcando que também não se trata de uma ruptura com a geração 90 mas uma diversificação.
I: Eu acho que é uma abertura da forma. Quer dizer, não achar que poesia seja saber versificar. E outra coisa também, eu acho que esse tipo de vocabulário que eu vou usar, que eu acho que tava havendo também uma tendência a usar um vocabulário de preciosidade poética, que é um sublime clichê, um belo clichê. Então eu acho que há uma liberação maior da linguagem poética. Agora tinha uma outra coisa que eu queria falar sobre esse negócio da poesia 00, eu acho que um dos dados mais importantes que é mantido atualmente, por isso que eu chamo assim de poesia da linguagem, depois eu vou falar um pouquinho sobre isso que é uma coisa que tem pintado na minha cabeça também. Eu acho que dado essencial é também a internacionalização e a sofisticação. Eu acho que a poesia dos anos 90, ela partiu de um outro universo, um universo em que nomes concretos, a crítica dos concretistas tinha um lugar muito grande. Esse filme, Palavra (En)Cantada, por exemplo, começa sua narrativa com Arnaut Daniel...

BLISS: Cantado pela Adriana Calcanhotto.
I: Cantado pela Adriana Calcanhotto. Então, o que é Arnaut Daniel? Quer dizer, o Arnaut Daniel é uma maravilha, e a cena da Adriana Calcanhotto é maravilhosa, mas do ponto de vista de uma narrativa histórica, o que é Arnaut Daniel? Toda narrativa, teoria mínima, você vai narrar optando: eu posso começar pelo pai, pela mãe, pelo espírito santo, pela nuvem ou pela cobra, então por onde você começa já define. O que significa Arnaut Daniel? Arnaut Daniel é um determinado repertório, é um determinado tipo de visão da poesia, o Arnaut Daniel, ele vem lá da Metalinguagem, ele vem lá da teoria da poesia concreta. Então é esse universo, é a partir desse universo que a poesia tá sendo pensada na relação com a música popular. E é um universo que eu acho que tem um referente muito internacional, cosmopolita, vanguardista, enquanto que a geração 70 tinha um referencial modernista brasileiro, Drummond, Oswald de Andrade. Eu acho que dos anos 90 pra cá, a poesia brasileira ficou muito mais universal nos seus referenciais, ela parte de outros lugares, ela ficou muito mais sofisticada. Eu acho que ela ficou melhor num certo sentido, eu acho que, hoje em dia, a poesia brasileira tá partindo de um território tão mais sofisticado que [pega as revistas Modo de Usar & Co. # 1 e a coletânea comemorativa reunindo quatro números da Azougue] tudo é bom aqui. Mas eu digo isso, tem pessoas que riem quando eu digo isso. O pessoal pergunta assim: o que você acha da poesia contemporânea brasileira? Eu acho toda ela ótima, eu só vejo poemas sofisticados, ótimos. É que nem a poesia portuguesa, que nem a poesia argentina. Eu não sei as outras, mas as que eu tô acompanhando agora, a poesia argentina e a poesia portuguesa são maravilhosas. A poesia portuguesa é uma coisa impressionante, não tem poeta ruim em Portugal, só aparece poeta bom, só poeta bom, só poeta bom, parece que tá no sangue. Na Argentina, eu acho que é assim também. Mas eu acho que tem, na geração 00, essa coisa que é uma profunda relação com a linguagem e um universo de repertório universal, sofisticado que em outras áreas não tem. Na prosa, por exemplo, não tem, é todo mundo ignorante. Quer dizer, ou então, limitado no seu ponto de partida. Agora aqui não, um tá visitando Pound, é todo mundo culto.

BLISS: Engraçado, porque essas coisas que você tá colocando, realmente você continua o que você colocava naquela apresentação, mas eu fiquei pensando hoje numa questão que queria saber se você iria rever essa afirmação, ou continua afirmando. Você falava que a geração 00, por essa diversificação nos traços estilísticos, na forma, inclusive nos significados que eles trazem, não é uma literatura de ismos. E você fala que são núcleos, estão nucleados. Então, qual ou quais seriam as forças que formam esses núcleos. Porque, realmente vendo a poesia carioca, esses núcleos parecem estar também estourando, porque as torres que pareciam núcleos vão abrindo. Quais seriam as forças que nucleiam ou desnucleiam esses poetas?
I: Eu acho que é bem possível que exatamente, agora esteja ocorrendo um momento de dispersão, de trocas entre os grupos. Se você não tiver uma editora, uma revista que faça esse papel, você não tem um núcleo. Eu acho que o universo poético que eu chamo da poesia da linguagem, ele é nucleado em torno de periódicos e editoras, hoje em dia. Assim como poderia ser nucleado por um grupo boêmio num bar.

BLISS: Então, no seu papel de editor, como um editor decide, com que critérios, ou você como editor, que critérios utiliza para formar esses núcleos? Se você tivesse uma editora de poesia, quais seriam esses critérios?
I: Olha, eu na verdade tenho uma proposta, quando eu assumi lá [o cargo de Editor Executivo da EdUERJ], eu falei uma coisa que eu pretendo colocar em prática, que é o seguinte: eu sou um editor universitário, então o editor universitário tem suas características próprias, mas todo editor tem direito a fazer uma coisinha que é dele, e eu vou fazer uma coisinha que é minha, que é a minha cara, que é uma coleção de poesia. Mas é uma coleção de crítica de poesia [hoje, a Ciranda da poesia já tem cerca de vinte títulos publicados]. Então, uma coleção onde críticos e poetas contemporâneos falam de críticos e poetas contemporâneos. Já tem cinco livros prontos, e eu gostaria que ela fosse o mais aberta possível. Porque se você tá num determinado universo, incluindo a poesia da linguagem, você tende a achar que o que o outro faz nem poesia é. Então, eu gostaria de fazer um projeto poético... isso aí não dá pra configurar núcleo de nada, porque é muito eclético, muito aberto. É uma editora universitária que tem a obrigação de ser aberta. Eu acho que um núcleo poético, ele vai ter uma certa cara. Por exemplo, a Azougue tem uma certa cara, a Inimigo Rumor tem uma certa cara, a Modo de Usar tem uma certa cara. A Inimigo Rumor tem uma cara de anos 90, a Modo de Usar tem uma cara de anos 00, mas filha nos dois sentidos. Essa revista Coiote, por exemplo, já é parecida com a Azougue, ela tem uma informação meio contracultural também. Tem os mesmos referentes poéticos, poetas beats, do surrealismo remotamente, lá atrás, etc. Então, eu acho que possivelmente a gente tá vivendo um momento de abertura, de expansão, e aí pode ser que signifique uma descentralização mesmo.

BLISS: Mas eu lembro quando a Lu fez o estágio dela, foi uma matéria que o Lucas fez também, não foi? Que os meninos leram a Inimigo Rumor, eu lembro de você falando, eu não esqueço isso, você propunha, achava que esses referentes todos, canônicos, na produção atual já estavam um pouco, não defasados, mas não eram o referente mais forte. Aí, você falava muito sobre o Carlito, que achava que tinha algumas figuras que acabavam encabeçando essa produção. Carlito, Chico Alvim. Queria que você falasse um pouquinho sobre isso.
I: Pois é, olha só, eu acho muito importante, do ponto de vista da formação do poeta, da pedagogia do poema, aquele curso que eu dei, porque eu, hoje, advogo o seguinte: bom, uma das coisas que tem que fazer num projeto de ensino de poesia, seja ele numa graduação ou fora de uma graduação, o que você tem que fazer quando vai ensinar poesia, quando você vai introduzir pessoas à poesia, você tem que ensinar a ler poesia moderna. Poesia tradicional também. Mas a poesia tradicional os professores de gramática se encarregam de ensinar, porque o que você tem que aprender mesmo da poesia tradicional é como que eu conto o verso. Você pode ter um professor que ensine isso mal, você pode ter... é fascinante a questão do ritmo e tal. Então, o teu problema é: como ensinar poesia moderna? Então, numa graduação como por exemplo a da UERJ, você tá ensinando literatura então tem uma matéria que é destinada a ensinar a poesia moderna. O que eu defendo é o seguinte: é que, hoje, você não precisa, se você não quiser, você não precisa fazer um curso sobre Oswald de Andrade, Bandeira e Drummond. Você pode fazer um curso sobre a geração 90, ou um curso sobre a geração 70. Isso é que foi importante, para mim, do ponto de vista do professor, não sei como é que os alunos receberam, foi isso, quer dizer: eu não preciso definir um determinado cânone modernista existente como sendo a única porta de entrada para que uma pessoa possa entrar no universo da poesia moderna. Hoje, eu acho que o ensino da poesia moderna é exatamente como o ensino da filosofia, não interessa por onde você entre. Você pode entrar por qualquer lugar, você pode começar a estudar filosofia, começando por Nietszche ou começando por Platão. Para entrar na filosofia, lendo filósofos. Claro que ter uma compreensão histórica pode ser útil, eu acho que é útil, claro, todo mundo quer ter uma compreensão histórica, mas pra isso, você de noite lá na sua casa, você faz uma cronologia, se orienta. Com relação a essa pergunta que você fez, é isso: a partir dos anos 90, você vai ter uma explosão de referenciais, cada poeta tem muitos referenciais cosmopolitas, tem muitos referenciais da própria cultura de massas. Então o poeta dos anos 70 ainda se sentia, pra usar a expressão de Caetano, numa linha evolutiva, e o que vinha atrás dele, ou era o modernismo, como na poesia marginal, ou eram os concretos. Então ele tava se situando: eu venho depois desse pessoal, eu herdo esse pessoal, eu tô continuando essa tradição. Foi uma geração que sofreu o impacto da cultura de massas. Então foi uma geração problemática, né? Porque fazer poesia em 67, 68, com Caetano Veloso, com Chico Buarque, nos anos 70, não é fácil fazer poesia diante dessa avalanche de alta poesia que a própria música popular traz, aí eu acho que isso realmente criou também uma certa ruptura dentro da cultura letrada. E nos anos 90, a geração dos anos 90 foi uma geração que ela tava reencontrando a cultura letrada num certo sentido. Muitas vezes partindo do universo da cultura pop mas porque queria ir lá na literatura, nessa que eu digo que é uma vivência filológica. Eu chamo de poesia da linguagem que é a literatura da Modo de Usar, da Inimigo Rumor, eu tô trabalhando ultimamente com essa ideia, fazendo uma distinção, digamos, um binômio poesia-cultura e um binômio poesia-linguagem, poesia da linguagem. Poesia da cultura, o filme Palavra (En)Cantada é um filme sobre a poesia da cultura, poesia na cultura, poesia com a cultura. A poesia da linguagem é uma coisa mais complicada porque ela é erudita sim. Não quer dizer que as duas não possam conviver, eu acho, eu tenho a impressão... não sei se o Black Alien, se é o BNegão, tem um desses dois que é muito lido, é muito erudito. Mas o que eu tô chamando de poesia da linguagem, mesmo que você não tenha um repertório letrado, olha, é o encontro do corpo com a filologia. Eu acho que poesia é uma relação com a palavra escrita, com gostar de letrinhas. Tem toda uma outra coisa em volta. Mas aí é poesia e cultura. E eu não tô negando uma ou outra, só tô fazendo uma distinção entre poesia da linguagem e poesia da cultura, mas nem sei porque eu entrei nesse assunto, da poesia da linguagem.


Parte 3