terça-feira, 23 de abril de 2013

Alegria Entrevista (Parte final) – Falam as máscaras, falam os idioletos radicais.

Parte 1 | Parte 2

Encerramos a sequência da entrevista com Ítalo Moriconi com suas considerações sobre a relação entre arte e cultura, e como elas o fizeram reavaliar alguns de seus questionamentos estéticos acerca da produção literária brasileira dos anos 90 em diante.
Na sequência, Ítalo, ao ser convocado para comentar questões que tangem a relação entre subjetividades e poesia, acaba compondo um pequeno autorretrato de sua prática poética: evidencia sua compreensão da linguagem do poema (que ganha corpo na frase “tem que ter o idioleto radical”) e seus procedimentos, sublinhando a dramaticidade e o trabalho da máscara como figurações características de sua persona poética.
         Publicamos, aqui, três poemas de Quase Sertão, livro lançado pelo autor em 1996, e dois de História do Peixe, de 2001 – e ficamos como que à espera das outras: que novas máscaras virão?

De Quase Sertão.

Copacabana

Meu novo amor é gente simples do povo.
Tem 19 anos, negro rutilante.
Entre a última vez que nos vimos (tempos atrás)
e hoje cedo
já trocou de nome pra Rick.

*

(Notícia da Aids)

logo na hora do McDonald’s
gânglios implodiram-lhe o pescoço
grossos como cordas, lajes
pendentes, feito açougue –
carne estraçalhada, e apodrecida

– AVENIDA HIPOTRÉLICA –

seus altos prédios escalavrados
os –
demasiadamente humanos
demasiadamente humanos
contra o céu, decepado
– Cães,
carregai a legenda Ítalo para o meio das ruas
fazei retinir em cantos escusos o mito Ítalo

os
demasiadamente humanos,
vou, de boca em boca,
despedaçado como as calçadas da cidade decadente,
alimentando a boataria,
inspirando jovens visionários

passado jamais existido
sem mais leitores
carne podre
úlceras no cu
logo na hora do McDonald’s

(1984).

*

Contrato

Eu tenho nojo do teu comportamento.
Você tem nojo do meu comportamento.
Vamos guardá-lo no baú ancestral de couro escondido.
E fabricar nosso tecido
De meias-palavras.

*

De História do Peixe.

A palavra glossy

Câmera escondida. Conexões telefônicas sucessivas. Alegria da luta. Metidos em cuecões largados. Ao pé do fogo. Foi minha primeira vez, era um filme inglês. Ou em inglês. Depois dos licores, o fogo pegou mesmo. Papel crouché, brulé. Suas rolas mais rubras, sombras flambadas. O céu baixado sobre o tapete, eliminando o puzzle. Já não eram rolas, eram falos. Todos os poros falavam. Licores faiscavam. Eram mil e mais mil vozes falando, por todas as saídas. Mil vozes, mil poros, mil olhos. Sussurrando e agindo. Aromáticos, pelos matos de pelos, criando seu recesso sagrado. A verdade fulgurou naquele átimo apenas. Seu materialista. Seu hedonista. Seu sem nada. A câmera enganchada, consolatrix.

*

Clearly non-glossy

Comer e dar, dar e comer, comer e dar, mergulhar em cocô. Aquele cheiro incomodava, eu ainda não sabia que vinha e logo de onde. Vingança do tipo de anjo. Quando nasci uns banjos galopantes disseram, a vida é brutal, sabias? Quero delicadeza.

Preciso comer. Preciso tomar as pílulas. Preciso comer. Preciso tomar as pílulas. Vou comer. Você não vai comer. Você vai ingerir as pílulas. Com bastante água. Preciso comer. Vou comer. Vou delirar. A boca pela tua pele até perder. Tudo. Tudo. Não quis deixar nada. O peixe morre pela boca.

Nada deixar. Nada. Cascatas de secreção tatuariam a pele triste. Lhe dei leitinho. Deixa. Jorros. Vindos do ventre besta desativar o credo em cruz, entre ferros. Fica. Mas fica sem pica. Desitalianizar-se. Desamericanizar-se. Desbrasileirar geral. Deixa. Deixa tudo. Não fica. Não volta.

*

BLISS: Apareceu a palavra corpo, e a gente tava antes falando na contracultura anos 70: é um corpo muito diferente, esse que se relaciona na poesia da linguagem, em que se relaciona o corpo com a filologia, daquele corpo celebrado nos anos 70?
I: Olha, eu tô falando em outro sentido. O que eu chamo de poesia da linguagem é o texto, é uma experiência da linguagem, é uma arte que tá relacionada com essa experiência profunda entre pode ser o corpo, mas poderia ser chamado também de interioridade, intimidade, subjetividade. Essa relação íntima entre o corpo e a filologia. Por que filologia? Porque é a linguagem nas suas mínimas filigranas, como que as palavras se relacionam entre si, como que eu posso relacionar palavras, como que elas se encontram, como elas se chocam. E ao mesmo tempo que é uma coisa completamente mental é uma coisa completamente oral. No momento em que ela se torna performática, ela já tá atravessando a fronteira pra cultura, mas, veja, num certo sentido – e é isso que eu critiquei, ou manifestei uma desconfiança quando apareceu, mas que hoje eu vejo que não é essa questão, ou melhor eles têm razão. Eu criticava muito essa posição. A poesia da linguagem, ela é uma reação, ela não é cultural. Porque contracultural é cultural, a contracultura é uma forma de estar na cultura de uma maneira contracultural, com drogas etc., e tal. Mas essa poesia da linguagem é quando a cultura letrada é uma reação ao mundo lá fora, é uma rejeição ao mundo lá fora. Eu acho que a poesia da linguagem tem esse elemento. Quando essa dimensão foi recuperada pela geração 90, eu estranhei isso, porque eu sou da contracultura. Então poesia, pra mim, é cultura. Eu queria ser Maiakóvski. Eu queria que o meu verso fosse lido numa assembleia de professores. Mas ao mesmo tempo de vanguarda: não é um galo tecendo a manhã, é uma coisa assim uma camisa amarela, um manifesto gay. Mas no bojo da cultura, no bojo do movimento, no bojo da vida. Mas a poesia da linguagem, não, ela é perversa, ela é erudita, ela é aquele encontro onde você rejeita, fecha as portas para tudo e vivencia tudo sublimado na linguagem. Então, eu tive uma reação geração 70 contracultural a essa geração 45 ao quadrado sublime, mas hoje eu vejo que não. Porque o sublime pode ser um ato político também bastante interessante. Eu tô vendo nos anos 00, ao mesmo tempo em que eles estão se dessublimando, do ponto de vista da forma poética, eu também tô tendo muito mais a necessidade da questão do sublime. Por exemplo, quer ver uma coisa que de vários anos pra cá é claro pra mim? Às vezes quando eu estou reescrevendo um poema, porque eles existem, apesar de eu estar completamente hibernando como poeta, eles existem, de vez em quando eu tenho tempo até escrevo ou reescrevo coisas, em um tempo, a minha utopia é ter tempo suficiente para mexer nos meus alfarrábios. Mas eu só mexo nos meus alfarrábios se eu tô com disponibilidade, eu não tenho tido essa disponibilidade. Eu substituo cu por ânus, eu elimino, eu já não, não acho tão interessante a linguagem... prefiro usar palavras não-baixo calão. Ou seja, é um movimento sublimante, quando você troca cu por ânus é um movimento sublimante. Principalmente quando você troca cu por orifício veludoso, aí nem se fala. Aí você já entra na metáfora, que também que acho que hoje o potencial metafórico, eu vejo assim poetas novos, como eles inventam, o potencial metafórico é uma coragem. É uma coragem letrada. Você criar metáforas explosivas em cima de uma folha de papel que só quem vai ler são aquelas três ou quatro pessoas que leem a Azougue, e aquilo, de repente, é um espaço de uma importância brutal. Do ponto de vista da cultura, é nada. Não tem mercado nenhum, não vende nada, ninguém conhece. A única coisa que você ganha de vez em quando é uma primeira página no jornal porque tem um valor de fetiche imenso, e é isso que alimenta o Narciso de todos, senão vira uma coisa totalmente privada num certo sentido.

BLISS: Mas essa poesia da linguagem parece ter uma certa capacidade de tomar e elaborar o que vem da poesia da cultura. Por exemplo, essa poesia que você chama de poesia da linguagem também tem uma coisa mais narrativa, também tem um aproveitamento da mídia.
I: É por isso que eu digo, são apenas categorias para ajudar a gente a pensar, mas nada disso é estanque, tudo se mistura. Agora, o que eu tô querendo dizer é o seguinte: o sublime é esse movimento onde o literário é uma afirmação da cultura letrada por oposição, uns poderão chamar de banalidade, eu prefiro dizer por oposição à cultura mesmo. A primeira vez que eu vi a oposição entre cultura e arte, que os franceses gostam de fazer, foi um fundamento vanguardista, a vanguarda é contra a cultura, mas não naquele sentido fraco da contracultura.

BLISS: Mas o Caetano tem isso, naquela música Livros. Acho, aliás, que você vê na trajetória dele exatamente isso que você tá falando, porque ele saiu de uma coisa muito contracultural, e ainda muito na cultura, e quando ele chega nos anos 90, mesmo com a aproximação dele do Jacques Morelembaum, que ele fala que foi um cara que fez ele perder o medo da Música, e em Livros ele fala que a ventura e a desventura são os livros e o luar contra a cultura.
I: É, nesse sentido que eu falei, não é um contra a cultura cultural, a contracultura como comportamento. Que é um sentido forte, mas fraco em relação a esse outro, onde a cultura seria mesmo a cultura erudita, pela lógica, ela é vista mesmo como a rejeição – tem até um poema do Carlito que fala ‘na mercancia da praça pública’ – como uma rejeição da praça pública, da palavra pública. Isso tudo é muito complexo. Agora, veja bem o meu posicionamento no final das contas é e sempre será muito via Maiakóvski. Não é à toa que pra mim o que interessa é o BNegão e o Black Alien. E por exemplo, já naquele artigo de 92, quando eu criticava o sublime, que eu falava numa retomada culturalizada da contracultura, o que eu queria era uma poesia que tivesse sintonizada com essa multiplicação de vozes no espaço público. A coisa mais linda que eu acho, o que eu mais gosto em poesia é quando você tem uma multiplicidade de vozes traduzida numa forma poética. Eu acho que o desafio que tá colocado pra poesia hoje é o desafio da fala, e da fala também como fala pública. E apesar da democracia no Brasil já ter, mas o problema da democracia não é só a democracia no Brasil, é a democracia como uma era humana, onde todos falam. Porque a poesia como parte da cultura letrada, ela é a expressão de uma arte onde alguns escrevem. E o problema da poesia hoje é outro: é como você vai fazer poesia, ou seja, como que vai ser essa relação visceral com a filologia num contexto onde todos falam, todos têm que falar, e é um falatório, uma algaravia total. É isso pra mim que tem que tá no poema. Uma coisa que a Célia Pedrosa falou da minha poesia que ela tem toda razão, eu gosto de uma dramaticidade na linguagem, daí eu acho que o poema metrificado, formal, ele é antidramaticidade. A não ser que você tenha grandes mestres, onde você tenha uma pulsação da forma. Os new critics gostam disso num poema, eles gostam do poema como uma coisa que pulsa pela forma. É toda uma forma amarradinha, autotélica, como dizem, voltada para dentro de uma totalidade, que é criada toda arrumadinha. A minha estética é outra, eu gosto de uma coisa aberta, que flerta com o desarrumado. Nesse sentido que o Kerouac é importante. Eu hoje tô meio digressivo... Vocês vão ter que editar muito. É o que eu digo: é um paradoxo, uma santíssima trindade, uma santíssima dualidade. Eu tô inteiro no espaço da poesia da linguagem, mas eu tô inteiro no espaço da poesia da cultura. Eu acho que eles não se negam. O que eu acho fascinante no Ricardo Domeneck, como figura, é exatamente o fato de que nele convivem as duas pulsões. Ele tem um trabalho de poesia, que é um trabalho de poesia da linguagem, e ao mesmo tempo, ele é um performer. Eu jamais serei capaz de criticar a poesia da cultura letrada. Isso eu não farei, porque a cultura letrada, tadinha, ela é uma pobrezinha. Ela é um aleijão, ela é uma anã, embora tenha um valor de fetiche brutal. Ela é uma míope, coitada, mas eu sou míope, né? (risos) Mas é verdade, você vai criticar a cultura... a cultura letrada é no máximo um refúgio, uma defesa perfeitamente legítima. Não é à-toa que a poesia é chamada de jardim da sensibilidade, é por isso, é um jardim da sensibilidade, mesmo. Agora, você sempre vai poder criticar a poesia da linguagem do ponto de vista da cultura. Sempre vai poder fazer essa crítica, vai chamar ela de alienada. Eu não tô nessa.

BLISS: Eu queria perguntar um pouco dessas formas de falatório, desses poemas dramatizados com diferentes vozes. Em geral, o que está se dando nessa poesia: que sujeito está aparecendo? Quem é o eu dos poemas? Eu estou pedindo para você fazer uma generalização, mas que sujeito se constrói?
I: Eu não tenho uma teoria da questão do sujeito, de jeito nenhum. Eu sou capaz de lendo um autor ou lendo um poema descrever e discutir como que a subjetividade se coloca ali. E eu tenho algumas visões genéricas da questão da subjetividade tanto na esfera da cultura, quanto na esfera da linguagem. E eu acho que elas acabam se cruzando uma à outra. Então eu sou interessado muito por esses temas: da performatização do eu, da autoficção. Eu acho que no campo da cultura letrada, você se dissolve totalmente. Eu acho que o exercício poético da linguagem é constantemente um exercício de subjetivação. Eu vejo poesia como uma subjetivação permanente. Mas a subjetivação pode ser uma dissolução. Não acredito, eu acho que é ideológico, eu não acredito nesse princípio mallarmaico do apagamento do eu. Agora, acho que outros conceitos como a subjetividade em devir, de Deleuze. Eu gosto muito também da máscara. No fundo no fundo, eu fico mesmo com a máscara, com a ideia da persona. Na minha poesia, não tô querendo dizer que ela seja uma grande poesia, não, mas eu vejo muito isso, eu gosto assim de ser o cachorro, de ser... entendeu? Essa coisa dionisíaca básica. Acho que a linguagem poética, você coloca a máscara de um bicho, você vira aquele bicho. Você coloca a máscara do outro, você vira aquele outro. Então, eu gostaria muito mais de pensar em processos de personificação. Talvez dessubstancializar a questão do sujeito em função duma noção de produção do sujeito, de personificação, de máscara. Seria por aí que eu iria.

BLISS: Porque, na poesia, pelo menos na década de 80/90 vem bem forte esses sujeitos novos, também, né? A mulher, o gay, o negro.
I: Aí é o que eu digo: a poesia é um território próprio, é um território circunscrito. Quer dizer, você pode fazer uma boa poesia panfletária, não tô negando aqui o meu parâmetro maiakovskiano, não. A coisa mais bonita do mundo é isso, por exemplo num momento revolucionário – o momento revolucionário que eu digo é uma subjetividade coletiva explodindo, rompendo, com alguma transgressão – quando irrompe a arte. Sempre tem o poeta, o que fala, o que é músico. Então, não tenho nada contra a poesia panfletária, não. Não tenho nada contra poesia ruim. Não, gente, eu tô tomando a Bastilha, aí chega um cabeludo e fala uma bosta de um poema panfletário: péssimo poema, maravilhoso poema naquele momento, naquela performance. Agora, bota no papel, né? Pode ser um documento histórico, pode ser. Eu acho também que a crítica poética brasileira é muito ingênua nesse sentido, é muito provinciana e estreita. E acho que os argentinos também acreditam demais nisso tudo. Então, você começa a estabelecer critérios estéticos assim: vamos agora então ver quem são os eleitos da humanidade e quem são os excluídos da humanidade. Sabe, você tem um movimento da palavra. Claro que assim você tem o bom, o maravilhoso, aquilo que você vai preservar, que você vai guardar. Onde é que a gente tava?

BLISS: Sobre esses sujeitos novos.
I: Sujeitos alternativos. Então, veja bem. Existe a poesia panfletária, a poesia que vai ser em prol do movimento feminista, da libertação da mulher, do gay, do negro, do etc. e tal. Mas do ponto de vista mesmo do que eu gosto no final das contas, que é essa poesia da linguagem, a gente então ficando restrito no quadradinho [passa os dedos por sobre a capa da edição de um ensaio de Ricardo Domeneck, intitulado De figurinos possíveis em um cenário em construção e lançado junto com o primeiro número da revista Modo de Usar & Co.; nela, se vê em um quadrado destacado uma mão segurando uma melancia], boa essa capa! Ela corresponde exatamente ao que eu tô querendo dizer. Eu acho que é difícil você fazer alguma coisa realmente interessante, do ponto de vista de uma poética erótica – eu não quero ser também aqui taxativo demais – mas do ponto de vista de uma poética erótica ou amorosa, eu acho que hoje em dia você fazer isso em cima de uma heteronormatividade é meio sem graça, é muito codificado. Então, por exemplo, eu dou muita importância a uma poética homoerótica porque eu acho que ela tá desbravando fronteiras na própria linguagem. Porque por mais livre que a linguagem poética seja e tenha sido, ela é muito presa. Então eu valorizo atualmente, por exemplo, na poesia contemporânea, eu valorizo muito uma poesia homoerótica. Não só porque eu faço poesia homoerótica, ou talvez por isso, talvez só por isso. Então, por exemplo, como é que uma poesia feminina vai me pegar? Eu acho que ela vai me pegar – ela vai ser revolucionária pra mim – na medida em que ela também tá saindo de uma heteronormatividade. O poema panfletário, ligado ao movimento feminino, ele vai trabalhar um clichê de mulher, assim como existe o clichê de homem, que é dominador, aí vem o clichê da mulher dominada que reclama e se liberta. E procura uma igualdade, e que depois que conquistou a igualdade, afirma a sua diferença. Essa ordem de questões eu acho ela menos interessante para a poesia. Porque aí acho que a poesia, ela tem que ser idiossincrática mesmo, ela tem que ser idioletal mesmo. Se ela tá promovendo um conceito social de homoerotismo, um conceito social de feminilidade, um conceito social de negritude, eu acho ela menos interessante. Ela é ruim. Volto a repetir, eu não tenho nada contra a poesia ruim. Mas é poesia ruim. O que eu quero nesse nível, aqui da poesia da linguagem, é uma outra coisa, é o idioleto mesmo. É uma vivência. Agora, veja bem, o idioleto não necessariamente precisa ser a expressão de um fetiche autoral, porque eu acho muito interessante, embora eu nunca tenha me interessado, quando me fizeram proposta de escrever poesia a quatro mãos, em dupla, eu nunca quis. Mas também acho interessante você trabalhar a quatro mãos, trabalhar num coletivo poético, como os surrealistas criaram, como os concretistas faziam, como todas as vanguardas fizeram, se dissolver. Então eu tô falando do ponto de vista do idioleto, porque eu tô falando do sujeito na linguagem, porque é isso também que acontece, a partir do momento que você faz o poema, aí tem uma questão da subjetividade colocada no poema, pelo poema, para o poema.

BLISS: Mas é desse sujeito que eu estava perguntando.
I: Com relação a esse sujeito que você tava perguntando, eu acho isso. Eu acho que a linguagem poética, no limite, ela é idioleto, sim, ela é de uma singularidade radical. Ela só me interessa se tiver singularidade radical. Se ela não tiver singularidade radical, ela é poesia média, poesia ruim. Todas merecem aplausos. Todas são filhas de deus. Mas tem que ter o idioleto radical.

BLISS: Adorei essa, tem que ter o idioleto radical.
I: Então tem que ser mulher idioletica ou seja idioticamente. Porque a poesia poética, a poesia boa é uma poesia idiota. É uma idiotia da linguagem. Claro! Do ponto de vista do senso comum, a linguagem poética é totalmente idiota. Do ponto de vista do engenheiro que tem que construir pontes e da dona de casa que tem que alimentar as crianças, tudo que a gente acha bom é uma idiotia em certo sentido. Eu acho que essas questões são fundamentais, questão da negritude, questão do homoerostimo, questão da mulher, mas idioleticamente falando, do ponto de vista estético e linguístico. E não como panfleto, não é para promover uma subjetividade social. É por isso que sempre vai ter o conflito, a complementaridade e o conflito entre o espaço da arte e da cultura, naquele sentido, que eu odiava os franceses falarem, mas hoje eu reconheço isso. Tem um espaço da arte, que por mais que ela vá ser apropriada socialmente e ela o será necessariamente, mas por mais também que você tenha essa necessidade normativa e essa realidade normativa de tudo que é dito, você também tem sempre o espaço, ou seja, já há uma expectativa para o abalo disso de alguma maneira. Um abalo até silencioso, no caso de boa parte da poesia. Então é difícil pegar, porque é uma coisa paradoxal, são valores muito opostos que no final podem ser também complementares.

BLISS: Na poesia homoerótica contemporânea, quem você acha que consegue ser idioleticamente idiota?
I: A maioria. Eu acho que a poesia homoerótica especificamente não faz muita panfletagem, não. Eu acho que, é o meu caso, inclusive, nunca quis fazer... também a minha biografia é muito complicada, eu acho que a palavra gay não define a minha biografia. Basta dizer que eu sou avô nesse momento. Então muito complicada. Mas eu acho o seguinte, eu acho que quem tá optando por escrever sobre a questão homoerótica na poesia é porque também não tá afim de ir pro movimento, entendeu? Ou tá querendo tá no movimento através da sua poesia. Eu não vejo muita panfletagem, não. No caso da poesia da mulher, eu acho que o problema da poesia da mulher – também acho que as nossas grandes poetas são muito legais – só as fracas são aquelas que ficam contando o cotidiano da mulher. Hoje tô cozinhando, hoje caiu um ovo, hoje gozei. Eu acho que muita poesia feminina tem a tendência às vezes até sofisticada de descrever o cotidiano feminino. Eu acho que é uma coisa que já cansou, que já ficou meio clichê. Mas eu acho que tem muita gente legal assim. A própria Cláudia Roquette-Pinto. Eu acho que tem lá coisas que você pode até questionar esteticamente, mas eu acho que ela já tem uma sofisticação na exploração do feminino que eu acho que é por aí.

BLISS: E Adélia Prado?
I: Olha, Adélia Prado eu acho uma poeta básica, assim, é o que eu chamo de poeta essencial. Tá um pouco acima do bem e do mal. Mas também muito assim, muito Bagagem, os primeiros livros dela. Depois já não acho que ela seja tão interessante assim. Mas ela é sempre muito interessante, mas ela é interessante até porque ela fala um pouco de dentro da situação da mulher comum, e ela não seria clichê, ela escreve muito o cotidiano feminino, mas ela tem sempre uma perspectiva um pouco perversa. Sempre ela tá olhando para esse cotidiano da dona de casa, mas sempre com alguma coisa... Eu valorizo Adélia Prado, eu gosto de Adélia Prado, apesar de ela ser uma poeta popular entre aspas, eu acho ela uma poeta legal, eu gosto. É disso que digo que o meu universo estético se moveu muito, hoje eu sou uma pessoa que posso gostar de uma Adélia, posso gostar de um Manoel de Barros. Desde aqueles primeiros tempos do Metalinguagem, que é...

BLISS: Eu queria falar sobre isso. Você tem um artigo em que você fala que existiria no Brasil duas pedagogias do poema básicas. Já tem algum tempo. Que seria a do Antonio Candido e a do cânone modernista básico e a do Concretismo. Você se considera formado numa pedagogia do poema concretista?
I: Num primeiro momento, sim. Mas aí toda minha vida foi uma desconstrução disso. Desconstruir sempre é uma ampliação. Porque eu acho que a poética concretista é muito baseada num recorte de exclusões então eu tive que aprender esteticamente a ser cada vez mais... entendeu?

BLISS: E você acha que ainda hoje no Brasil teriam essas duas pedagogias ou você acha que já mudou isso?
I: Não. Eu acho que ainda existem os herdeiros do Concretismo, que são dogmáticos. Eu acho que ainda existe uma pedagogia uspiana, que é dogmática, mas é burocrática, acadêmica, universitária. Mas eu acho que tudo que eu falei vai contra isso. Essa geração dos núcleos, a Azougue, Inimigo Rumor, ela tá partindo de outros pressupostos. Por exemplo, Carlito e o pessoal da idade dele, que chegou nos anos 90, eles chegaram criticando a polarização. O ponto de partida já foi uma tentativa de conciliação. Então eu acho que inclusive essa tentativa de conciliação e essa abertura para uma diversidade faz parte do contexto político e filosófico mais amplo que afetou a América Latina e a intelectualidade brasileira, principalmente, menos na América Hispânica, que é essa coisa liberalizante. Ficamos mais liberais. Éramos ideológicos, ou você era concretista, ou você era comunista, ou não era mais nada. Na esfera da poesia, o primeiro movimento da geração do Carlito foi o movimento da conciliação. Poderíamos analisar essa história da conciliação enquanto conciliação, mas o que foi importante é que a partir dali, ele se tornou o A do ABC do jovem poeta brasileiro. Quer dizer, não tenho partido. Não sou modernista contra o concretista. Eu quero o concretismo, eu quero o modernismo e eu tô com tudo. Já foi a mudança total a partir daí, a partir dos anos 80/90. E aí, nós tamos vivendo já nas consequências disso. Um outro contexto. Os cadáveres estão mais do que enterrados. De vez quando, sobe um de repente, se agita, faz beicinho, entendeu? (risos) E o Arnaut Daniel? Mas eu acho que todo mundo tá partindo de um outro terreno e sobretudo cheio de gringo. Você não ouve um jovem poeta hoje falar: ah, eu amo Drummond. Ah, eu amo o Bandeira. Ouve? Os poetas falam isso? Não. Não sei. Vocês veem isso? Eu tô enganado? Eu tô errado? Ninguém fala eu amo Murilo Mendes, eu amo Jorge de Lima. Não. A minha geração sim. Eu amo Drummond. Hoje em dia, não. Hoje em dia, as pessoas partem, sei lá, um é Andy Nachon, o outro é Carlito Azevedo, é Ana Cristina César, muito. Forte. Porque a Ana Cristina é uma que a linguagem dela já vai além dessa polarização. A Ana Cristina tem um perfil parecido com o de todo mundo hoje. Porque junta tudo, mistura referências eruditas e populares, pops, já tá num terreno que é concreto e é modernista e é muito cheio de estrangeiro povoando o imaginário dela. Então acho que ela tem essa presença simbólica forte.

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