terça-feira, 21 de maio de 2013

“Seus olhos se escondem ou sou eu que te procuro?” – Clarissa.


Clarissa por Marcio Junqueira.

Ela faz aniversário hoje. Ela é carioca, de Gêmeos. Ela fez Letras. Mas antes fez Cinema. Depois um Mestrado sobre revistas de poesia da década de 70 no Brasil e uma especialização sobre edição de livros. Na oficina do Carlito, ela era supercrítica. Tinha um olho/ouvido bom para imagens enigmáticas. Uma vez ela levou um poema que tinha questões de diagramação e eu achei: ok, legal. Depois ela apareceu com outros, muito diferentes, com uns cortes inusitados e conversas cifradas e eu comecei a prestar atenção. Foi ela quem convidou a mim e ao Lucas para a festa de aniversário – no Loreninha? – em que inventamos isso que temos vivido. Ela me parece a mais segura de nós três. Os poemas dela são bastante visuais. Tanto em relação à construção quanto às referências que invoca. Ela é dos amigos quem eu acho a melhor companhia para visitar uma exposição. Junto com ela me apaixonei certa vez por Carlos Contente e Rosana Ricaldi, no CCBB. Com ela estive pela primeira vez: dentro de um penetrável de HO, na prainha, na PUC-RJ, no Méier, num Chá da Alice, e no Instituto Moreira Salles. Ela tem muito interesse no objeto livro. Da construção à comercialização, passando por questões ontológicas e de diagramação. Ela sempre faz belos cadernos artesanais para os amigos (meu atual diário é um deles) e se imagina coroa, dona de uma editora em Paraty. Ela tem os pais mais tietes que eu conheço e quase uma centenas de parentes gaúchos sobre os quais ela conta (ou inventa?) histórias. Ela pode exasperar quem espera um e-mail dela.
Ela é a poeta da semana.


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As fotos de Sontag

Não sabia: foto é beijo com direito a abraço apertado. Dependendo do foco, é a possibilidade do beijo em eterna rotação.

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Aceso plano

Meu papel em branco abarrotado de ideias suspensas

Já foi caderno já foi tela já foi muro já foi ponte

Hoje é meu teto onde gira o ventilador

(a parede, a mesa, superfícies planas)

É quando cai o vento sobre mim


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Estudo 2 (poema-tela. caneta sobre papel. 2007).

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Cena 1

A paixão é um estado de urgência no qual só escapam os gatos.

Ela vem subindo a reticência e depara com aflição de ter conquistado e de ter perdido.

Ela debruça a maldade na mentira e quando atravessa a avenida vê o mascarado.

Ela deturpa a ação e no caos do amanhã pendura um jaleco velho e amarrotado.

Ela causa estrago e de estilhaços no vidro do carro sobrevive o dia após o outro.

Ela que nasceu da primeira camada e palpitação do que é sentir e respirar, vira a cara.

Ela distancia as virtudes e causa as maiores discussões quando passa do meio-dia.

A paixão é um estado de urgência que mata os gatos, as palavras e os homens.

*

Sol laranja

Para Iberê Camargo

Não é possível ver o sol
Nem sempre quando posso
Realmente visitar você não é te encontrar
Pouco com o tempo ouço
O som do trilho de Santa Teresa
Esse som cotidiano

Amor que volta, trepida
Já andamos por essa curva
Já construímos essa casa
Já bebemos dessa cor
Não sei, mas esse sol laranja
só me lembra você

*

Clarissa Freitas & Marcio Junqueira num penetrável de HO no Centro de Arte Hélio Oiticica, RJ


*

DUELO, ELO: POLEM
Para Lucas, Márcio e Marília


O encontro com as revistas de poesia não costuma ser espontâneo, objetos circulantes de poucos espaços e espaços para grupos restritos. Entretanto, não se nega a importância dessas joias raras, mais raras quando pensamos a produção poética de 70. Essa década contempla um surto de publicações, relíquias para muitos, e é impossível não citar Leminski nessa hora de apresentação:

“Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente. São revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromático de uma Navilouca? A força construtiva de uma Polem, Muda ou de um Código? O safado pique juvenil de um Almanaque Biotônico de Vitalidade? A radicalidade de um Pólo Cultural/Inventiva, de Curitiba? A fúria pornô de um jornal Dobrabil? E toda uma revoada de publicações (Flor do Mal, Gandaia, Quac, Arjuna), onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovela em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada”.
        
O trecho retirado de um artigo do poeta Paulo Leminski intitulado O Veneno das Revistas de Invenção coloca para o leitor diversos títulos de periódicos ressaltando uma voz possível para os poetas num período complicado para publicação devido à censura.
Por hoje, vou falar da Revista Polem que saiu em 1974 com apenas um número pela Editora Lidador. A revista é lançada antes da mãe Navilouca, trazendo permanências e deslocamentos. A partir do atraso do lançamento da Navilouca, Polem chega ao público antes e em formato menor (18x25cm), com a proposta de misturar poesia experimental com outras áreas de produção artística, notoriamente artes plásticas. Quando se fala em poesia experimental entendem-se a agregação de diferentes artistas, normalmente classificados pela crítica historiográfica em correntes separadas, a saber: os concretos, que iniciaram suas pesquisas na década de 1950 (Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos), os tropicalistas de 1960 (Torquato Neto, Rogério Duarte, Caetano Veloso e Hélio Oiticica) e os marginais da década de 1970 (Waly Salomão, Chacal, Ivan Cardoso, Luis Otávio Pimentel). A eles, integram-se artistas plásticos como Carlos Vergara, Antonio Dias, Rubens Gerchman e Iole de Freitas.

Capa, Polem, 1974
A participação de Iole de Freitas chama muita atenção, pois sua intervenção através da imagem mostra a montagem de diferentes poéticas da década de 70. Um remix ajustado ou desajustado daquilo que se pensava como linguagem poética. A imagem destacada no poema abaixo apresenta as propostas cortantes de gerações distintas que duelam, mas estão lado a lado dando a liga necessária para se pensar a poesia de forma a garantir o elo. Se com relação à perspectiva da câmera, as mãos se encontram em posições distintas, não é difícil notar um jogo de espelhamento entre elas. O duelo é do poema consigo, da própria linguagem que abre veios em si mesma e faz mover suas variadas lâminas. O elo entre leitor-autor, duelo. O duelo entre autor e leitor, elo. Através da revista se espalha e fecunda posteriormente um outro ser-produto que garantirá a vida dos dias por vir. Não se quer eliminar e, sim, multiplicar através do “pólen”. A linguagem é essa abelha vespertina.




É necessário entender que, se tomamos como ponto de partida a identificação da revista com um referencial da poesia concreta, certamente isso não significa uma filiação ortodoxa às diretrizes da vanguarda concreta. Tal constatação é imediata quando observamos a primeira página:


O verso simples e descontraído como um assobio mostra-se mais perto da construção poética dos poetas marginais. As revistas da década de 70 apresentam como emblema a primeira página que vem em forma de manifesto ou carta de apresentação, e nesse caso como um poema-gesto. O rigor e o frescor, o formal e o informal, o apelo gráfico e as nuances da caligrafia são alternados pela roleta que aparece na contracapa e capa (imagem abaixo), num jogo esperto do projeto gráfico da revista desenvolvido por Ana Maria Silva de Araújo.



Na participação de Chacal, a escrita espontânea da carta com seu registro a próprio punho faz parte desse lugar poético, a caligrafia, a vida do momento.


Já de forma mais enigmática, a palavra quase indecifrável, é preciso vasculhar um poema-escultura da folha para se apreender alguma possibilidade de sentido. O poeta Ubirajara lança uma pergunta: o quanto da palavra é apenas imagem?



Depois, chega-se a uma ode de Augusto de Campos a Duchamp intitulado Marcel Duchamp: o lance de dada. Revela uma poesia discursiva, contaminada com o espírito da revista e na defesa desse trabalho dos próprios anos 70. Evidencia-se que o filtro de leitura usado para dialogar e fazer valer as experiências da vanguarda foi a ideia de variação contínua, e seleção organizada (?) pelo acaso. Qual o lance do poema/do poeta na roleta? Que invenção se faz, e, ao se fazer, faz-se simultaneamente anônima? Não à-toa, Augusto diz em seu poema que o que interessa é o lance inventivo. Malgrado qualquer tentativa de narrativas historiográficas, e de divisões, polaridades instaladas e que geram campos minados reproduzidos sucessivamente, o lance inventivo pode assumir “estratégias diversas”, não tem que “se limitar a compartimentos e comportamentos estanques”.

marcel duchamp é um nome bem conhecido
mas poucos conhecem bem marcel duchamp
muitos fizeram duchamp sem saber q o estavam fazendo
(eu também)
mas como poderíamos saber?
duchamp é o maior inventor anônimo do século
aos poucos
ele foi sendo desenterrado: debaixo da montanha picassiana
sob o brilhante arabesco dos kless ou kandinskys sob os cristais perfeitos de mondrian
lá estava ele
intacto
no meio do refugo e dos detritos (...)
revisto agora
“tel qu’em lui-même”
desencarnado de dada
livre da maquilagem surrealista
duchamp revolve a mallarmé
e não me digam q vejo mallarmé em tudo
lebel johncage octavio paz (e o próprio duchamp
também o viram (...)
do verbal ao não verbal
da não-figura à figura
duchamp
deshierarquizou a arte
o que interessa é a “descoberta”
o lance inventivo
q pode assumir as estratégias mais diversas e não tem q se limitar
a compartimentos ou comportamentos estanques
(“a” literatura, “o” verso, “a” pintura)
nem ao “status” do suporte
(quadro, livro em q a invenção é projetada
dados os dados
duchamp nos dá
uma opção-estratégia
aparentemente viável
ante o bloqueio massacrante
do dilúvio informativo
a ação na raiz das coisas
sem suportes apriorísticos:
um livro ou um vidro
uma capa ou um copo
um postal ou um disco
um dado ou um vaso
um xeque ou um cheque
ou o silêncio
mas tudo ou nada
entre o visível e o invisível
o imprevisível
choque

(CAMPOS, 1974, 35 – 50)

A inclusão de Caetano Veloso nas revistas e na discussão poética dos anos 70 possui uma força singular, não só pela aproximação entre a vanguarda concreta e o movimento da Tropicália, mas pela sua colaboração constante com os periódicos da época, e sua participação num pensar entre o canto e o verso. O tríptico abaixo evidencia isso, com um poema visual, em que palavra e fotografia dividem e pensam o espaço da página, em que o três é tanto a base dos triângulos de texto e foto, quanto o número de letras da palavra voz e a repetição, rima do poema. Nos lábios da foto, como se movimenta o ar? Como canta, faz cantar em silêncio, o poema retangular na leitura de cada um, dividida com a lábia da fotografia?


A arte popular do profeta Gentileza em fotografia ilumina com susto e surpresa, especialmente se pensávamos que a linhagem de experimentação com referências concretas se daria dentro de um quadro de hiperracionalismo e de informação prioritariamente literária. Fato é que os movimentos advindos da/ na poética concretista explorada nos anos 70 não são fechados ou centrados. Como o Tropicalismo traz associação entre arte popular e erudita, certamente abre portas para gozo estético mais abrangente.


Parece que as revistas experimentais sempre revelam um elemento surpresa, no caso da Polem é uma HQ de Ivan Cardoso que mostra as máscaras sociais, revela elementos míticos e assustadores, como vampiros e lobisomens. A utilização da história em quadrinhos revela a influência da poesia marginal e o trabalho da linguagem poética que extrapola o campo da literatura.
Há também a publicidade do disco dos baianos, galerias de arte em Ipanema com obras clássicas e caras, livro de Torquato Neto intitulado Os últimos dias de Paupéria e uma página de propagandas antigas que mostram o caráter sofisticado, mas também diversificado de referenciais do da revista e de seus leitores. Algo lembrado por Millôr Fernandes no seminário Imprensa Alternativa e Literatura: os anos de resistência, após as perguntas de Carlos Lima: Quais os destinos da imprensa alternativa? Esse destino será sempre a classe média? Resposta de Millôr: Eu acho que não há possibilidade de você ter uma imprensa alternativa que não seja de classe média.
Certamente, alguns questionamentos atravessam décadas, a vontade de se fazer poesia, mostrando que não é linhas estanques nem de territorialidades cifradas que se faz um poema, a vontade de promover encontros permanece. Bem-vindas são Modo de Usar & Co., Coyote, Inimigo Rumor e nessa estrada vamos. Misturando.

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