terça-feira, 25 de junho de 2013

Relicário em Estado de Bethânia, por Leonardo Davino de Oliveira

Quando a revista de número único foi lançada, pela 7letras, em 2009, ela vinha dedicada à Maria Bethânia Viana Teles Velloso. A sua figura concentrava não só as paixões dos três editores da revista, como também com bastante clareza uma série de questões quanto ao trabalho com a palavra que nos mobilizava. A fala que passa ao canto e então de volta à fala. A autoria no gesto do intérprete de selecionar, colar, retrabalhar materiais poéticos. O indecidido entre teatro, música, poesia. A limpidez do momento intempestivo na voz. Tudo isso atuava na nossa imaginação sugerindo uma compreensão mais concreta do que queríamos ao propor uma revista de poesia que partisse da ideia de Bliss, êxtase na tradução da poeta Ana Cristina César. Hoje, uma semana após seu aniversário, publicamos um ensaio de Leonardo Davino sobre a cantora.
Leonardo compõe os quadros de ouvintes que, mais atentos às palavras e a como elas se desenham nas canções, preferem contribuir com uma leitura atenta da textualidade específica do objeto cancional a entrar em discussões e disputas vazias que envolvem o velho e inepto debate ‘letra de música é poesia?’. Até o momento, ele publicou, a partir de sua dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, o livro Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso e conduziu/conduz dois projetos em formas de blog, o 365 canções, em que ouviu/leu uma canção por dia ao longo de 2010, e o lendo canção, em que ouve/lê a produção musical brasileira dos anos 00 em diante. Aqui, seu ensaio-relicário para Bethânia acompanhado de imagens de capas dos discos, e do vídeo dos extras do DVD Tempo tempo tempo tempo, que comemorou os 40 anos de carreira da intérprete.

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Bethânia-Rosa-dos-Ventos, Bethânia-Drama, Bethânia-Pássaro-Proibido, Bethânia-Doce-Bárbara, Bethânia-Pássaro-da-Manhã, Bethânia-Águia-Nordestina, Bethânia-Guerreira-Guerrilha: “Todas as vezes que eu canto é amor / Transfigurado na luz / Nos raios mágicos de um refletor / Na cor que o instante produz”1. Aqui te canto em Bethânia.

A certa altura do filme Os doces bárbaros (1978), de Tob Azulay, Maria Bethânia avisa a um jornalista desavisado: “Não me identifico com rótulo nenhum. Sou meio à margem. (...) Não participaria de nenhum movimento, não vou perder meu tempo, eu tenho que viver”. Mais tarde, em entrevista concedida à Violeta Weinschelbaum, Bethânia reforça: “Eu sou a filha caçula, a caçula é a revolucionária. (...) Sou geminiana, então tenho um espírito muito livre. (...) Eu não sou nada, sou livre, sou o que me der vontade naquela hora. Gosto de ver os movimentos passarem. Ao não ser nada posso ser tudo, posso brincar com tudo”2. “Nada é igual a cantar. Para mim cantar é me libertar. E fiz dois anos de análise e não consegui isso”, disse Bethânia ao Pasquim3.

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“Deusa d’água / Iemanjá de cacimba / Iansã Iara minha irmã / Curuminha cunnhatã”4. Aqui te canto em Bethânia.



As sereias contam ao homem comum aquilo que a Musa conta apenas ao poeta. Elas nos fornecem a fama: o calor de se sentir cantados. Médium da sereia e signo de elemento água, Maria Bethânia (Mar de Sophia, 2006) traduz em um canto (quase) devocional – tons graves e baixos – toda a infiltração do mito sirênico em nossa cultura. E tem na canção “Yemanjá rainha do mar”, de Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro, a melhor companhia.

Bethânia canta (evoca) os nomes da rainha do mar – “Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Iemanjá” – elencando a semiótica do mito em nosso imaginário. O sujeito da canção mistura mitos gregos e africanos e coloca o resultado disso para dançar no Brasil ao balanço do mar, ao som da moradora da “loca de pedra”: vaidosa, humanizada – íntima do marinheiro (brasileiro) ouvinte. “O que ela canta? / Por que ela chora? / Só canta cantiga bonita / Chora quando fica aflita / Se você chorar”, numa demonstração radical da relação interpessoal que vai da sereia ao ouvinte, e vice-versa. Num jogo lúdico que envolve prazer e dor, encanto e lucidez.

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Bethânia-Carcará, Bethânia-na-Boite-Barroco, Bethânia-ao-vivo, Bethânia-mel, Bethânia-Talismã, Bethânia-Alteza: “Todas as vezes que eu canto é a dor / Todos os fios da voz / Todos os rios que o pranto chorou / Na vida de todos nós”5. Aqui te canto em Bethânia.

Gilberto Salce Júnior, ou melhor, a transexual brasileira Gilberta foi assassinada na cidade do Porto, em Portugal, em fevereiro de 2006. Antes, durante dois dias, sofreu todo tipo de violência verbal e física, mantida sob cárcere, por um grupo de adolescentes (entre 12 e 16 anos de idade). A “Balada de Gisberta”, de Pedro Abrunhosa, restitui à personagem sua condição humana, destroçada; leva-nos, com tais informações extras, a pensar sobre as políticas públicas de segurança e respeito mútuo universais; e guarda de menores. Cantada em primeira pessoa, a canção, com suas porções generosas de fantasia, realidade e delírio, pergunta: Qual é a participação de cada um de nós (ouvintes: tocados e chocados) neste monstruoso assassinato? O que motiva tais gestos? Corpo profanado pelas crianças-carrascos, que dizem estar “brincando”, Gisberta exige resposta, ação e mudança coletiva e efetiva.

É com esta canção que Maria Bethânia fecha o primeiro ato de seu show Amor Festa Devoção (guardado em disco de mesmo nome, 2010). Transfigurada em Gisberta (a sem nome, sem sexo: só paixão e queda) a cantora imprime o tom mais que perfeito para marcar a saída de cena: quando perigo e encanto; alerta e convite nos envolvem. Moradora de rua, arrastada, depois da tortura, para ser arremessada dentro de um poço d'água e morrer afogada, Gisberta é símbolo e signo de nossa condição (des)humana. Aliás, ela seria queimada viva, mas a água, ao invés do fogo, pareceu ser um final “melhor”: já que o corpo afundaria, apagando para sempre a imagem de Gisberta e da “brincadeira infantil”. A água e seu mugido fez de Gisberta a sereia que não nos deixa esquecer o quão longe estamos do amor (potência sempre em desenvolvimento) coletivo. Se só o (trans)amor é real, Gisberta o chama: mesmo que ele esteja tão longe. O amor é tão longe! Há limite para a brincadeira? Qual? O fato de Gisberta ser soropositiva e toxicodependente, como sugeriram alguns advogados? Quem matou Gisberta? A água ou as crianças?, perguntou o Ministério Público. Homicídio ou afogamento? Importa mesmo saber? O fato é que todos (indistintamente) precisamos rever conceitos, pois, enquanto enche-se as micaretas LGBT, Gisbertas à mancheia morrem. Alguma coisa está fora da ordem faz tempo: militantes, ou não, precisam perceber isso.

“Perdi-me do nome, hoje podes chamar-me de tua”, diz a Gisberta que fala na canção. Ela é uma legião: carrega na voz a multidão de marginalizados, que servem apenas para dançar em palácios, oferecer-se a mil homens, e logo depois ser descartados. Urge responder à altura: dialogar e dizer a Gisberta que, acima dos fundamentalismos, ainda vale a pena e é possível sonhar e realizar dias melhores, sem juízos finais. Agora. Pois o céu da felicidade, de cada um e de todos, não pode esperar.

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Bethânia-Ciclo Bethânia-a-Beira-e-o-Mar, Bethânia-Dezembros, Bethânia-Maria, Bethânia-Memória-da-Pele, Bethânia-Olho-D'água, Bethânia-Âmbar, Bethânia-Imitação-da-Vida: “Tudo que eu canto é a fé, é o que é / É o que há de criar mais beleza / Beleza que é presa do tempo / E, a um só tempo, eterna no ser”. Aqui te canto em Bethânia.

Bhagavad Gītā (“Canção de Deus”) é o texto sagrado hindu. É o importante diálogo entre Krishna e o discípulo Arjuna, que procura a auto realização. "Gita", a canção, apresenta um sujeito (inspirado pelo livro) que expõe suas inquietações interiores. Na clássica interpretação de Raul Seixas (Gita, 1974), temos um sujeito cancional entre a passionalização e a exasperação, usando o poder de síntese da frase poética para dizer aquilo que lhe vai à alma. O “eu” fala se afirmando como aquilo que vai da luz ao medo, passando pelo sacrifício. A tese, a antítese e a síntese. Na interpretação de Maria Bethânia (Imitação da vida, 1997), o sujeito canta em tom mais irado. Bethânia usa as alturas melódicas (acima das usadas por Raul) para figurar (e exaltar) as autoafirmações: Eu sou! Obviamente, a pegada harmônica, na versão de Bethânia, é bastante volumosa, há uma pulsação perene e forte. Aliás, a impressão é de um canto "à beira do abismo"; de um canto que a qualquer momento irá violentamente se calar. Em contrapartida da baladinha gostosa e de tom profético-apocalíptico usada de modo sublime por Raul.

Não esqueçamos que “o andamento é o tempo qualificado”, como sugere Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia. Assim, a melhor chave para a leitura das diferentes interpretações está no final da canção. Ao invés de – quando canta “o início, o fim e o meio” – usar a descendente como Raul faz ao dizer “o meio”, Bethânia usa a ascendente-suspensiva. Isso altera radicalmente o sentido. A canção fica em aberto, como a vida que não tem fim; como a incompletude do sujeito. O jogo das alturas entoativas aponta para um sujeito que “vai”, portanto, “o meio” (desenhado por Bethânia), em contrapartida ao sujeito que “foi”, portanto, “o fim” (desenhado por Raul). “A entoação desvela os movimentos da alma”, como Bosi também aponta. Ao final, as duas interpretações são (algo) complementares. Cada qual potencializando diferentes ênfases da mensagem do texto e iluminando outros (des)vãos do “eu” do sujeito da canção.

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Bethânia-Deusa-da-Sabedoria. “Abre as asas sobre nós / Meninas e meninos nus // Ainda índios / Para sempre teus”6. Aqui te canto em Bethânia.

As dimensões verbal e musical não fornecem a energia de uma canção. Tal energia não se escreve, apesar de poder ser sugerida. É na forma da voz, na performance vocal que a canção se faz. O intérprete é o autor empírico. É a voz que sugere caminhos: bússola e desorientação; faz aquilo que é dito ter algum rastro de sentido; é o motor dos estímulos somáticos.

Quando Maria Bethânia canta – suas ênfases, pausas, alongamentos, timbre – presentifica o sujeito da canção: a voz que fala (interesse pelo que é dito) dentro da voz que canta (interesse por como é dito). Ela reforça seu projeto entoativo e cria o acontecimento. Guardada no disco Álibi (1978), “A voz de uma pessoa vitoriosa”, de Caetano Veloso e Waly Salomão, canta a presença daquela voz por traz da superfície dos versos. De tal voz, quando aparece cantando gloriosa, quem ouve nunca mais se esquece.

Quando Bethânia, em entrevista, afirma que a voz não é dela mas das sereias, demonstra a consciência com que exerce seu ofício. Através dela (personificada em sereia) os seres encantadores – barcos sobre os mares – voz que transparece uma vitoriosa forma de ser e viver. A voz que canta não pode fazer mal algum, ao contrário ela quer encantar, acalentar e ninar. Mas, ao mesmo tempo, faz isso singularizando o ouvinte, ou seja, desassossegando-o diante da existência vazia de sentidos. Ouvir a voz vitoriosa – das sereias: do canto sobre o canto – é ter um consolo dual: acalanto e motor de mobilidades.

O “assim” – “a voz de uma pessoa assim vitoriosa” – chama a atenção do ouvinte para a voz de quem está cantando: “assim como eu – vitoriosa”. Eis um recurso metacancional que dispara a importância do indivíduo enunciador: do intérprete, também autor-cancionista. Tudo isso, dito da forma risonha e feliz com que Bethânia o faz, como extensão do próprio corpo, enche a canção de sentidos e faz o ouvinte se contagiar a querer ser e estar para além das quinquilharias do dia-a-dia: entre a escuridão e a claridade; pois sabe que aí “coração arrebenta, entretanto o canto aguenta”: “em pleno corpo físico”7.

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Bethânia-Força-que-Nunca-Seca, Bethânia-Diamante-Verdadeiro, Bethânia-Pirata, Bethânia-Mar-de-Sophia, Bethânia-Encanteria, Bethânia-Tua, Bethânia-amor-festa-devoção, Bethânia-Oásis: “Tudo que eu sei aprendi / Olhando o mundo dali / Do patamar da canção / Que deixa descortinar / O cenário da paixão / Aonde vejo a vagar meu coração”8. Aqui te canto em Bethânia.

Que outra cantora reuniria em uma canção (“Carta de Amor”), e com a mesma dignidade e instinto caraíba: Zumbi, Besouro, o chefe dos Tupis, os erês, caboclo Boiadeiro, Jesus, Maria, José, todos os pajés, a rainha do mar, o ouro de Oxum, o raio de Iansã, a forja de Ogum, o corpo vivo de Xangô? E que diante do progressivo avanço do neopentecostalismo com sua vontade de limpeza étnica gravaria um disco como Brasileirinho (2003): um salve às nossas muitas manifestações populares de extração Tupi e Iorubá, uma festa de amor e devoção às místicas mestiças que compõem um retrato feliz do Brasil?

A vocoperformance de Bethânia constrói uma ponte afetiva entre passado e presente, aqui e agora, Greco-Iorubá, Mama-África e caraíba, Aristóteles e terreiro de Oxum, baseada no culto, cultivo e colheita de uma intimidade tropical brasileira. Ao justapor extratos culturais, o canto de Bethânia gera um eterno retorno do gesto de descobrimento do Brasil. Bethânia é brasileira, que nem eu, nós. É esta consciência que faz da cantora um espelho onde se reflete aquilo que nos move. Além da cantora há a intérprete assinando a vida dos sujeitos cancionais que ela interpreta, sendo eles, na voz, no corpo vivo do palco: parede da memória desfiada, desafiada – encantada.

Incorporada dos sujeitos das canções, Bethânia cria sujeitos cancionais em que o ouvinte se reconhece no que ela vocaliza com seu sotaque de sereia baiana, prenha de instantes vividos junto do mar e das águas doces. O conjunto da obra de Bethânia constitui o mar sofismático do qual ela é a sereia e a abelha rainha: feita na Bahia, num terreiro de Oxum: predestinada pra cantar assim – iluminada, confirmada.



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1. Versos de “Amor tanto viver”, Gilberto Gil.
2. WEINSCHELBAUM, Violeta. Estação Brasil: conversas com músicos brasileiros. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 186.
3. O som do pasquim. Rio de Janeiro: Codecri, 1976.
4. Versos de “Águia”, de Chico César.
5. Versos de “Amor tanto viver”, Gilberto Gil.
6. Versos de “Águia” de Chico César.
7. Verso de “Um índio”, de Caetano Veloso.

8. Versos de “Amor tanto viver”, Gilberto Gil.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Tanta cor, quanto som – Bliss não tem Bis Hoje! Hoje! 18/06/2013: Auditório Cartola/ COART – UERJ.

Clarissa Freitas e Lucas Matos fazem a curadoria deste segundo encontro no Rio.  Bliss não tem Bis.
Hoje, 18/06/2013, teremos o terceiro encontro “Bliss não tem Bis”, o segundo na cidade do Rio de Janeiro, feito em parceria com a COART/UERJ. Vozes e imagens se entrelaçam, num modo de dizer isso que vivemos, o dia que atravessamos. Os poemas embaralhados, leitores, poetas, coisas-corpos-palavras num mesmo espaço.
Estamos muito felizes em anunciar os artistas que conseguimos reunir nessa edição: além de dois dos editores desse blogue, Marcio Junqueira e Lucas Matos, contaremos com a presença de Angélica Freitas, Dimitri BR, Leonardo Gandolfi, Marília Garcia e Thiago Gallego.
         Até lá, a gente se vê.

*
Thiago Gallego

 O que se passou a Carolina durante os sete dias de refúgio no meio do mato.

I

Fechada a porta
dois passos fora de casa, é incrível
como até aqui zero ineditismo e
nunca, no entanto, me senti tão longe.
O meio do mato a dois passos fora de casa
e tanta gente falando em Petrópolis-Teresópolis.

II

a mim não importam quantas cajadadas ou coelhos desde que morram
desde que morram desde que possam ser assados
estou há dois dias no meio do mato e dois coelhos um coelho tanto faz
não estou de dieta, veja bem, não há com o que economizar

III

É engraçado o tipo de coisa que a gente traz quando vem pro meio do mato
Alface a gente não traz, porque já tem planta demais
Ainda que seja minha comida favorita – parece
água crocante. Eu trouxe um espelho,
água não reflete bem.
Ainda que seja minha bebida favorita, parece
não faltar no meio do mato.

Daí não trouxe. Viemos só
Eu e espelho.

IV

Em pequena, me espantavam os super amigos
com necessidade de anunciar tudo que se passa
“veja só! um cavalo gigante ataca Troia! me transformarei em machado para destruí-lo!”
Hoje converso com cada planta sobre o clima agradável

Xuxa em Lua de Cristal, bêbado de botequim, já não os condeno.

V

Até agora me limitei a cortar os pés; catar
frutas; instalar espelho em tronco de árvore.
Em sete dias, Deus criou a vida, o universo e tudo o mais.
Invejo a produtividade.

Todo dia, desde que cheguei, miro
(não mais que três vezes) o espelho.
Nada mudou, a Lua continua
a mesma, tatuado o coelho que eu não soube caçar.

VI

[Nessa parte anterior à última, o autor frustrado se pergunta como dar fim à viagem de Carolina. Poderia usar a sempre nova revelação: a menina nunca deixou a casa; passou todo esse tempo deitada na cama sob o cobertor (com, talvez, uma lanterna um espelho). A ida à floresta representa um encontro com a própria natureza, um conhece-te a ti mesmo, a mais longa masturbação da história. Ou não.]

E no sexto dia,
Carolina se masturbou.

VII - A neblina (ou “deus ex machina”)

Desistira de falar, ao fim da viagem.
Desistira de lamentar também.
“Vou passar sete dias longe de casa, de mim mesma. Sete dias
para que possa suportar todo o resto.”
Expectativa boba, insossa, alface.
Superada.

O céu estava bonito e ela podia sê-lo por uns segundos
Podia ser céu bonito e não Carolina que empreendeu um refúgio fracassado.
E mesmo ela, céu bonito, não suspeitaria a vinda de tão densa neblina.
Densa de tomar tudo: terra água ar
fogo amor ódio vulcão e sandálias.
A ponto de Carolina (ou neblina densa,
já que não mais céu bonito)
não enxergar para além de seus braços, mãos e espelho
nelas acoplado.
Foi então que, meio ao nada
, estendidos os braços, espelho
a encarar, Carolina
(ou meio do mato, céu bonito, neblina densa, pouco importa)
recriou-se
à sua imagem e semelhança.

*

Pôr no

Preciso dum novo personagem. Preciso
dum novo personagem, que Carolina foi
embora. Tendo ido Carolina, se não outro,
eu só.

Chamo o ator.
Aquele, por quem me apaixonei, o ator
pornô. Vexame, sei, mas paixão
é paixão e não se nega não se esconde
é fogo mas não
arde – uma lástima -
nem dói.

Sai desse site, homem! Vem
pro bar, pra esquina o metrô
apertado. Sai dessa página desse player
essa quadradice, homem. Sai
do armário.
E arda.
E doa.
(o cu,
que o braço fatiga)

***

Angélica Freitas

micro-ondas

explicar o brasil a um extraterrestre:
tua cara numa bandeira. te saberiam líder
e te dariam cabo: parte suja
da conquista.
mas já foi, de outra maneira: vista aérea
da amazônia, vinte e tantas
hidrelétricas
pros teus ovos fritos no micro-ondas.
e te dariam cabo: parte certa
da conquista.
e se vieram mesmo
pra conhecer as cataratas?
ou pra aprender com a nata
como se faz uma democracia?
as naves tapam o céu completamente.
todos os escritórios
e todas as lojas de comidas rápidas
decretam fim de expediente.
baratas e ratos
fugiram antes.
é natal, carnaval, páscoa
nossa senhora aparecida e juízo final
tudo ao mesmo tempo.
amantes se comem pela última vez.
caixas eletrônicos vomitam a seco.
o supermercado era um cemitério!
os shoppings, os engarrafamentos!
explicar o casamento igualitário
a uma iguana, explicar
alianças políticas a um gato, explicar
mudanças climáticas
a uma tartaruga de aquário.
já está. agora espera.
toma um activia.
mora na filosofia. imagina!
num país tropical. péssimo!
não rio mais. trágico!
piores que gafanhotos
suas maravilhas hidrelétricas serão
vistas, em chamas, de sírius:
“o meu país era uma pamonha
que um alien esfomeado
pôs no micro-ondas.”
queime-se.
é um epitáfio possível.

*

metonímia

alguém quer saber o que é metonímia
abre uma página da wikipédia
depara com um trecho de borges
em que a proa representa o navio

a parte pelo todo se chama sinédoque

a parte pelo todo em minha vida
este pedaço de tapeçaria
é representativo? não é representativo?

eu não queria saber o que era
metonímia, entrei na página errada
eu queria saber como se chegava
perguntei a um guarda

não queria fazer uma leitura
equivocada
mas todas as leituras de poesia
são equivocadas

queria escrever um poema
bem contemporâneo
sem ter que trocar fluidos
com o contemporâneo

como roland barthes na cama
só os clássicos


***

Dimitri BR



*



*






***


Leonardo Gandolfi

Todas as minhas coisas são tuas
(segundo Burt Bacharach)

Quando fiz Do you the way
to San José preparei algumas variantes
que acabaram ficando de fora da versão final
gravada em 1968 por Dionne Warwick.
A mais importante delas talvez tenha sido
uma pequena quebra de andamento
mais ou menos na metade da música
indicada sobretudo por uma mudança de nota
nos três trompetes que naquele instante
preenchiam os espaços em branco.
Isso apesar de rápido sempre me remetia
a um tempo em que meu pai me levava
ao bar a meio quilômetro de nossa casa.
As cordas de um piano que eu nunca mais
ouviria. Anos depois toda vez que toco
Do you know the way to San José penso
no meu pai. A música que fiz com certeza
não fala disso, a suspeita a um só tempo
oportuna e desacreditada que nos separa
dos nossos. Frio antigo e úmido que
como depois percebi da ação até a demora
não leva nem mesmo alguns segundos.

*

Pedro e o logro

Esta história envolve diretamente um gato
e um pássaro. O gato chama-se Colignon,
mora conosco há alguns anos. O resto
importa pouco ainda mais daqui a um tempo
quando a diferença entre início e fim
se esfumaçar. Tínhamos nos mudado
para a casa nova há menos de dois meses
e o pássaro (uma rolinha) só entra na história
porque fora jovem o suficiente para ter sido
alvejado pelas unhas afiadas do Colignon,
felino com quem aprendemos em tempo devido
o amor em seu registro mais negligente e filial.
Nunca gostei exatamente de poesia, muito
menos de Manuel Bandeira ou passarinhos
mas acertar as contas custa caro, tem custado
- seja na direção do gato seja na dos livros
não importa: trata-se de um caminho
sem retorno. Camadas de datas esquecidas
ou por esquecer sob pontos de vista de gente
que podemos ou não gostar (dá no mesmo)
até chegarmos com o acúmulo ao pequeno e fundo
abismo do como e porquê um dia nos embrutecemos.
E pensar que haverá sempre rolinhas cruzando
o céu do meu bairro. E pensar que haverá
sempre casas novas de gente que mais ou menos
se ama e ama o próximo. E pensar tanta coisa.
Mas o que me impressiona mesmo é saber
que o passarinho foi apenas a primeira
coisa a morrer naquela casa nova bem
presa no chão e com um gato tão bonito.

***

Marília Garcia

Duas vozes

I. O que se esconde atrás de uma voz

sofre em alguma parte
em silêncio. entre eles
na mesa de vidro do café apenas
um círculo de água
e quanto tempo mais dura
uma noite terrível? pela janela
tudo escuro não há luzes piscando lá fora
não há som, só a fumaça sob os pés
um território lunar, alguém
disse. e se você olha para um lugar qualquer
como algo estranho acaba por poder retê-lo
na memória por um tempo indefinível. não
este lugar, pensa bem. um abraço do alto
da escada antes de tudo dos corredores
paralelos da chave azul
sobre a mesa.
o que se esconde por detrás de algo
se você olhar bem pode ser que veja.
(sentado no banco
durante todas as horas).

II. En extrañeza de mundo

no carro metal-chispante
seus cílios riscando o ar
denso e cada um ensimesmado.
estranharam-se em silêncio durante
tanto tempo (esta cidade nasceu
de uma série de erros e derrotas) na
película pareciam dizer: como você
suportou todos esses anos?
voltar é sempre um estado de
concreção nebulosa, uma negatividade
em aceitar o aceitável

dizer aterrar é melhor do que
aterrizar nesse lugar
e ficar parada numa esquina
à espera do código.

*

Inferno musical

I.
o que explicou sobre a melodia
de sistemas não fazia sentido pois
dessa vez não havia
                            som algum.
- é uma deformação, quase um inferno
musical que,
                   ao transbordar,
congela,
            como o mármore, o tombo ou
o tapa. poucos usam a palavra anti-
harmonia ou anti-
densidade (nada se acopla
com nada aqui)
a vida se divide em
duas partes móveis e você pode
entrar numa melodia circular
atrás da configuração correta.

II.
- ezeiza es um sitio que no
existe mas chegar é repetir o
gesto inexistente, como dizer uma
frase sem som ou se tornar o mesmo
uma semana depois no momento em que
a aeronave se desloca com
mais esforço.
                     no desenho tenso da esteira
a única mala – para tomar a estrada
de noite no deserto asfixiante

e escuro.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Quando todas as pontes se encontram – Bliss não tem Bis 18/06/2013: Auditório Cartola/ COART – UERJ.



Terça-feira da semana que vem, dia 18/06/2013, teremos o terceiro encontro “Bliss não tem Bis”, o segundo na cidade do Rio de Janeiro, feito em parceria com a COART/UERJ. Perguntar o que é, ou o que pode ser um encontro de poesia, é perguntar pelo que pode acontecer quando poetas e leitores se veem frente à frente. Com sorte, um certo modo de silêncio, uma qualidade da atenção e, então como em um susto, alguma alegria. Aqui todos os detalhes contam: o espaço, a forma do corpo transformá-lo, a forma do som preenchê-lo. Aqui todos os detalhes cantam.
         Estamos muitos felizes em anunciar os artistas que conseguimos reunir nessa edição: além de dois dos editores desse blogue, Marcio Junqueira e Lucas Matos, contaremos com a presença de Angélica Freitas, Dimitri BR, Leonardo Gandolfi, Marília Garcia e Thiago Gallego.
         Hoje e semana que vem, a postagem é dedicada para eles. Muito obrigado.

Angélica Freitas

Ela nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, e quando está na Argentina, é uma poeta argentina. Publicou até o momento dois livros de poemas, Rilke Shake (pela Cosac Naify em 2007) e Um útero é do tamanho de um punho (pela Cosac Naify, 2012). Edita, junto de Marília Garcia e Ricardo Domeneck, a revista Modo de Usar & Co. que chega este ano ao quarto número.

queria morar em ouro preto

mas tinha que ser à la sec. XIX
mijar em penicos de louça
comer cocadas quentinhas
catar feijão no alpendre
vestir algo branco e fofo
ser uma sinhazinha new-style porque tem bicicleta
uma bicicleta de louça
as ruas de pedras conhecerão o meu ardor
escreverei poemas nos miradores
meu pai era pobre
sim mas era um ídolo da independência
mudarei meu nome para incentivar
as artes detetivescas
comprarei uma casa velha e a chamarei
casa abobrina
convidarei amigas americanas
que me escrevem cartas
e vivem em trailers
e assaltaram supers
mas aqui não importa
somos todas fugitivas
mas aqui não importa

daisy oh daisy como era o nome
daquele bastardo
que você sustentava
com o dedo podre do seu pé direito?
era john ou era camilo?

daisy acocorada sobre uma cocada
sorrindo chapa & palato dirá

era lombardo
morreu todo cagado
de medo da polícia

riremos feito convenção das bruxas.

*

fim

keats quando estava deprimido
se sentindo mais pateta que poeta
vestia uma camisa limpa
eu tomei um banho
com os dedos ajeitei os cabelos
vesti roupas limpas
olhei praquele espelho
o suficiente pra
sem relógio caro
fazer pose de lota
e sem pistola automática
pose de anjo do charlie
então eu disse: “é, gata”
rápida peguei as chaves
saí num pulo
só fui rir no elevador.

*



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Dimitri BR

brasileiro, ele é um homem de letra & música, que cria sons, textos, vídeos e jogos de tabuleiro. canções já compôs centenas, mas só uma virou trilha de novela. outras 40 podem ser vistas – em forma de videocanções – ou ouvidas nos álbuns pop rock tropical (2007), música sólida (2011), amorrr (2013) e balanso (2013) e no site de seu duo diahum [diahum.com – inserir link]. também trabalha com outras linguagens, como a dos quadrinhos, e cartoons.



*

*

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Leonardo Gandolfi

Poeta, carioca, nascido em 1981, se desdobra entre aulas de literatura, e já publicou dois livros de poemas No entanto d’água (pela 7Letras, 2006) e A Morte de Tony Bennet (pela Lumme editor, 2010).

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O espião janta conosco

Como os antigos mas sem sua elegância
a coisa começa bem na metade. Zé Ramalho
fez a canção que talvez seja a canção mais
Roberto Carlos que já ouvimos. Aquelas Ondas.
Quanto tempo temos antes de voltarem? Pelo sim
pelo não Roberto acabou deixando-a de lado.
O mesmo aconteceu com Gilberto Gil,
Se eu quiser falar com deus também não fez
a cabeça do rei – folgar os nós dos sapatos
e da gravata não acontece da noite para o dia.
1976, contracapa do disco San Remo 1968:
O Show Já Terminou da dupla Roberto e Erasmo
esconde uma historinha particular só agora
revelada por RC, diz Big Boy. Então sobre a que talvez
seja sua mais bela canção assim fala Roberto:
Sou fã incondicional de Tony Bennett – quando
fiz essa música eu já imaginei inclusive a versão
dela em inglês com Tony Bennett cantando – e
comecei a fazer a música especialmente para ele
– é lógico que depois eu cantei do meu jeito – mas
ela começou de uma ideia pensada na voz do Tony
que na minha opinião é o maior cantor do mundo.
Também acho Tony Bennett o maior cantor
do mundo. E embora bem menos do que gostaria
também acredito na possibilidade de uma ideia
pensada na voz do outro mesmo que do nosso jeito.
Não importa quem gravou o quê nem para quem
fazemos o que fazemos. Que bom que uma ideia
pensada na voz do outro ainda é uma ideia pensada
na voz do outro. Aliás uma vez me disseram
não lembro quem que vítima e carrasco disputam
o mesmo tempo. Pouco importa, queridos fantasmas,
dezembro está aí e evitar mal-entendidos é que é bom,
venho repetindo isso para mim mesmo todos os dias
embora eu não consiga abrir mão de duas
ou três segundas intenções que até hoje, acho,
nunca fizeram mal a ninguém. Muito pelo contrário,
é justamente isso o que mais tem nos aproximado.

*

Espiões em apuros

Escreviam cartas como se cortassem
as unhas. Atenção e cuidado redobrados.
         Minha estátua de sal já está pronta,
seria preciso pelo menos outros 27 anos,
agora de diligência para a gente começar
pensar em algo como lealdade ou mentira.
         Aliados ou não, foram indispensáveis.
         Ao meu filho, além de um revólver,
eu deixo certa propensão tocante
para o embaraço e o arrependimento.
         Em vários outros momentos podemos
perceber essa mesma ponta de felicidade
resignada se abater sobre cada um deles.
O que – verdade seja dita – já é alguma coisa
numa época em que nada se abate sobre nada.

***

Marília Garcia

Ela nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. Um de seus poemas é de 15 passos. Publicou os livros 20 poemas para o seu walkman (Cosac Naify, 2007) e Engano geográfico (7letras, 2012). É tradutora e coedita a revista Modo de usar & co.

*

Aquário por Rodolfo Caesar & Marília Garcia.




*


Código Morse

por só esse instante esperou toda
vida durante a espera olhando para
os lados, o ruído constante do morse
e uma faixa fluorescente saindo
de dentro do aquário. a escada
na lateral do prédio não sabe
onde vai dar
                   todos os corredores aqui são
paralelos mas você parece não
lembrar que numa noite foi até seu quarto
e ficaram parados enquanto chovia. você
parece não lembrar que os dias da semana
se perdem neste lugar
(um sinal breve e dois longos) e não tem a chave
para o naufrágio verde, esquece
sempre os dias e a língua (voy olvidando el
português) mas esse instante. é como
ficar no por enquanto é como o barco
que afunda sem apagar as luzes como
esse dia (perder a mala e não saber.
nos momentos mais elétricos
se cala e observa)

*

Escorpiões e a esquiva

pela quarta ou quinta vez
tenta dar uma cronologia: me
deitei e parecia um deserto aquela
areia salgada.
                   – mas estamos em méxico city, diz,
estamos no ponto mais próximo
da esquiva.

eles vêm de noite, no campo,
quando uma nuvem se forma
e tudo está perdido. rente ao chão.
me deitei e tratei de ouvir os ruídos
dos escorpiões

mas não havia ruídos,
só o vento e os clarões.

tratei de ouvir
o barulho da fábrica
mas não ouvia nada
(conhecer pode
ser destruir)
só um eco ou
algo que
se esquiva.

*




***

Thiago Gallego

Ele tem 20 anos, estuda cinema na PUC-RJ. Já quis ser escritor e gostaria de dizer que trabalha na produção de seu quarto filme - mas ainda não começou o primeiro.

*

Quando escrevo sobre um livro que li,
escrevo sobre o que li num livro.
Jamais sobre o que um autor escreveu,
porque leio jamais o que um autor escreveu.
Leio num livro o que leio num livro;
em mais nada elucubração.

Toda leitura é apropriativa, uma vez ouvi.
Toda leitura de lábios é apropriativa
(com som sem som com ou sem lábios).
E me vem gente falar transmídia
como quem fala teleporte, classe c, felicidade

Grite relativista quem quiser,
grite chato que eu respondo,
escrevo, sobre o que li em relativista
quando os lábios gritaram e eu li relativista.

*

pai de kiwi

"Tem até a história desse cara japonês, que era arquiteto - nunca quis ser, mas disseram que era uma boa e ele foi. Ele tinha um cachorro akita que era cego, surdo e mudo. Todo dia o cachorro ia trabalhar e o arquiteto o acompanhava até a estação de trem. Voltava no fim da tarde pra buscá-lo. Certa feita o cachorro se meteu num lance de roubar trem e nunca mais voltou; teve que fugir pro Rio de Janeiro - e ficou até famoso, gravou episódio do Balão Mágico com os Sex Pistolls e tudo.

Já o cara passou aquela noite inteira na estação esperando. E todo fim de tarde desde então voltava lá pro aguardo canino. Sufocado numa tristeza, numa agonia (que vem do grego "falta de criação") sem fim ele teve uma ideia: largou de pegar instrumento de trabalho e soprar a poeira e taca o escalímetro pra cá e traça reta pra lá e faz ângulo e rebola curva e assopra e levanta a folha e diz "ufa". Mandou o trabalho pro governo japonês e de pronto acharam genial.

Desataram a construir. E contrata engenheiro pra fazer engenho e contrata pedreiro pra fazer pedra e contrata Chico Buarque pra fazer música e em dois tempos tá lá o projeto todo em 3D no mapamundi. Um prédio lindolindo em forma de barco. Todo mundo comentava, elogiava, uma falação só. O arquiteto ficou contente todavida, superrealizado. E nem é papo de entrevista não, tava mesmo. Mas, não pôde ir na inauguração porque eram seis da tarde e ele tinha que ir lá pra estação esperar o cachorrinho. Que não chegou".