terça-feira, 27 de agosto de 2013

Clarice Lispector, Sheila Heti. Cartas sobre trabalho de escritoras: “Esse véu é minha vontade de trabalhar e de ver demais”. Correspondências Parte 3.

Em artigo recente, cujo título poderia ser traduzido como “Ser no feminino”, em que abordava o gráfico que mostra a disparidade da percentagem de resenhas sobre escritores homens e escritoras publicadas pela grande imprensa estadunidense, a poeta Eileen Myles começava dizendo algo como: “Quando eu penso em ser no feminino, eu penso em ser amada”, e terminava afirmando que a importância não estava em ser no feminino, mas em ser menor, porque queria ser amada, já que era. A reflexão tecida por ela ali é apenas um dos exemplos dos caminhos possíveis de serem trilhados a partir do momento – talvez fundamental ponto para entendermos e pensarmos o universo da escrita hoje – em que mulheres não só trabalham como escritoras, como buscam refletir e escrever sobre o que é trabalhar como escritoras, o que é um artista no feminino.
Nesta postagem, nosso antologista de correspondências fez-se a mesma pergunta, promovendo dois cortes completamente distintos, que nos permite ver, através de cartas, duas escritoras fazendo e escrevendo seu trabalho: temos, primeiro, 3 cartas da década de 1940, escritas por Clarice Lispector, endereçadas a Lúcio Cardoso. Nelas, Clarice comenta seu cotidiano de relação com a escrita e com a leitura e de que modo pensa e vive seu trabalho. Em seguida, quase setenta anos depois, em outra nacionalidade, a partir de outro meio, temos e-mails enviados pela canadense Sheila Heti. Autora de livros que vão de coletâneas de contos e romances a uma filosofia da conversação, ela tem participado do projeto de uma outra escritora, Miranda July, que está mandando 20 coletâneas de e-mails, ao longo de 20 semanas, para quem se subscrever em projeto miranda july we think alone. Neles, Sheila fala de/desenvolve dois projetos seus, embora não diretamente ligados a um texto de autoria sua, mas certamente relacionados a sua forma de pensar seu papel de escritora no mundo de hoje: um deles, desenvolvido em 2008, durante a decisão de qual candidato o partido democrata dos EUA escolheria para concorrer a presidência (Hillary Clinton ou Barack Obama), eram os blogues através dos quais ela coletou e publicou sonhos dos americanos com as duas figuras políticas, Hillary e Barack; o outro, desenvolvido em parceria com o escritor, ensaísta e dramaturgo Darren O’Donnell, buscava pessoas dispostas a participar de relacionamentos arranjados ao acaso – justamente para pensar, ou colocar a questão acerca do quanto a possibilidade da escolha influencia em nossa insatisfação com relacionamentos.
         De uma ponta a outra, modos distintos de pensar e de viver a escrita. Tanto a escrita profissional quanto a escrita de cartas. De uma ponta a outra, correspondências de escritoras que nos permitem sustentar, manter e recolocar a pergunta por artistas no feminino.

*       
De Clarice Lispector para Lúcio Cardoso.

Lúcio:

Imagine que eu estava junto da mesa, pronta para escrever para você e contar coisas, quando bateram à porta e trouxeram-me, vindo do Rio, o que você publicou no Diário Carioca. [Lúcio tinha publicado um artigo sobre o livro de Clarice Perto do Coração Selvagem em 1944]. Isso valeu como se você tivesse respondido à minha primeira carta... Gostei tanto. Fiquei assustada com o que você diz – que é possível que meu livro seja o meu mais importante. Tenho vontade de rasgá-lo e ficar livre de novo: é horrível a gente estar completa. Sei que não é isso que você quis dizer. Quanto ao meu meio sucesso me perturbar, às vezes ele me deixa saciada e cansada. Às vezes, embora possa parecer falso, me desanima, não sei por quê. Parece que eu esperava um começo mais duro e, tenho a impressão, seria mais puro. Enfim, tudo isso é tolice minha. – Não tendo aqui a Agência Nacional e A Noite, estou numa liberdade deliciosa, há anos que não sentia isso. Às vezes mesmo passo uns dois dias sem fazer nada, sem mesmo ler, e com a impressão de que escrevi muito, de que li, de que trabalhei. Tenho trabalhado um pouco. Às vezes com uma facilidade que me desespera. Mas eu acho que com um pouco de paciência eu me amansarei, nem sei. Estou hoje um pouco confusa e sobretudo a fita da máquina não dá mais nada e está chovendo, eu não quero sair para comprar outra. Antes de começar a escrever eu tinha a impressão de que ia lhe contar como  eu tenho escrito e de como às vezes me parece sufocante de bom o que tinha escrito, e dois dias depois aquilo não vale nada, como eu tenho aprendido a ser paciente, como é ruim ser paciente, como eu tenho medo de ser uma “escritora” bem instalada, como eu tenho medo de usar minhas próprias palavras, de me explorar... Eu pensava em dizer tudo isso, estava num impulso de sinceridade e confissão que muitas vezes eu tenho em relação a você. Mas não sei, talvez porque você nunca tenha sentido em relação a mim esse mesmo impulso, eu fico apenas com as palavras que eu gostaria de dizer mas sem gostar delas. Eu hoje estou muito burrinha, especialmente hoje, e nem entendo direito o que quero dizer. O fato é que eu queria agora escrever um livro limpo e calmo, sem nenhuma palavra forte, mas alguma coisa real – real como o que se sonha, e que se pensa uma coisa real e bem fina. Lúcio, não se passa quase uma semana sem que eu pense numa coisa que você disse por uns minutos: que ia fazer um livro de muitas pessoas indo a um piquenique, e passeios, é isso? Sairia como os pedaços sobre os adolescentes do livro que você me deu. Não se pode encomendar livro a ninguém, mas esse você prometeu e eu fiquei esperando – a ideia me pareceu tão viva.
         Encontrei aqui pessoas muito interessantes. Paulo Mendes é professor de literatura, mas não um didático. Tem grande biblioteca, conhece um bocado de coisas, mas não ficou [.] sobre a cultura, é muito inteligente. É ótimo falar com ele sobre os livros dos quais a gente gosta. Ele me emprestou os Cahiers de Malte, de Rilke, e pedaços escolhidos de Proust. Ele falou de você de um modo que eu gostei de ouvir. Eu acho que você ainda encontrará outras fases – desculpe eu estar falando assim, de modo cru, eu sei que desagrada estar dividindo a gente em fases, mas não sei exatamente os termos que ele usou e você compreende. Junto dele está mais ou menos sempre um rapaz cego que faz poesias. Plínio, não sei direito o nome todo. Sabe como o Paulo Mendes descobriu ele? O Plínio era aluno do Paulo Mendes e, como ainda hoje se mostra, era muito calado e tímido, impossível de se conhecer. (Aliás, ele se parece um pouco com você, tem olhar meio de fantasma). Pois um dia o professor pediu aos alunos que escrevessem sobre um tema de literatura e lessem na aula. Todos escreveram sobre os clássicos temas de aula de literatura. O Plínio surgiu com um estudo sobre as poesias de Lúcio Cardoso. O professor ficou surpreendido: de fato ele lera em aula “romances de Lúcio Cardoso” mas não falara nas poesias porque naquele tempo só conhecia algumas coisas publicadas nos Cadernos da Hora Presente. Encontrando-se o professor e o aluno assim de repente, o professor convidou o aluno para casa e ficaram amigos. O professor descobriu logo que o aluno fazia poesias. Li umas duas. Entre muitas palavras que agora os poetas usam, há mesmo poesia. Ele fala de luar. “Durma ouvindo os teus passos de anjo pela noite”. Serve horrivelmente para um epitáfio e a ideia é de Paulo Mendes. Vou ver se Plínio conserva seu trabalho sobre as suas poesias. – Seria bom você ler, não é? é sempre curioso.
         Lúcio, você diz no seu artigo que tem ouvido muitas objeções ao livro. Eu estou longe, não sei de nada, mas imagino. Quais foram? é sempre curioso ouvir. Imagine que depois que li o artigo de Álvaro Lins, muito surpreendida, porque esperava que ele dissesse coisas piores, escrevi uma carta para ele afinal, dizendo que eu não tinha “adotado” Joyce ou Virginia Woolf, que na verdade lera ambos depois de estar com o livro pronto. Você se lembra que eu dei o livro datilografado (já pela terceira vez) para você e disse que estava lendo o Portrait of the artist e que encontrar uma frase bonita? Foi você quem me sugeriu o título. Mas verdade é que senti vontade de escrever a carta por causa de uma impressão de satisfação que tenho depois de ler certas críticas, não é insatisfação por elogios, mas é um certo desgosto e desencanto – catalogado e arquivado. Vou tentar completar a tinta o que a máquina negou ao papel. Um abraço para você, seja feliz.

Clarice

Central Hotel
Belém – Pará

*

Lúcio, espero que a cartinha ao seu amigo não pareça idiota. Ou melhor, é idiota. Mas eu fico encabulada. Diga a ele para me escrever sem falta. E assim eu me sinto perdoada pelo bilhete. Você está certo de que ele não é invenção sua?

Lúcio, caro:

Que alegria receber sua carta, tão curta e tão apressada. Mesmo assim, grazie tante pela lembrança. Me faz bem receber qualquer palavra sua. Me entristeceu um pouco você não gostar do título, O lustre. Exatamente pelo que você não gostou, pela pobreza dele, é que eu gosto. Nunca consegui mesmo convencer você de que sou pobre...; infelizmente quanto mais pobre, com mais enfeites me enfeito.
         No dia em que eu conseguir uma forma tão pobre quanto eu o sou por dentro, em vez de carta, parece que já lhe disse, você recebe uma caixinha cheia de pó de Clarice. Talvez você ache o título mansfieldiano porque você sabe que eu li ultimamente as cartas de Katherine. Mas acho que não. Para as mesmas palavras dá-se essa ou aquela cor. Se eu tivesse lendo então Proust alguém pensaria num lustre proustiano (meu Deus, ia escrevendo proustituto!), numa dessas pequenas coisas a que ele dá tanto sentido mas sem dar nenhum valor sobrenatural. Se estivesse ouvindo Chopin, pensaria que meu lustre era um desses de grande salão, com bolinhas delicadas e transparentes, sacudidas pelos passos de moças doentes e tristes dançando. O diabo é que naturalmente eu venho sempre por último, de modo que eu sempre estou no já está feito. Isso muitas vezes me deu certo desgosto. Assim, eu estava lendo Poussière e encontrei uma coisa igual a uma que eu tinha escrito. E agora que estou lendo Proust, tomei um choque ao ver nele uma mesma expressão que eu tinha usado no Lustre, no mesmo sentido, com as mesmas palavras. A expressão não é grande coisa, mas nem sendo medíocre se chega a não cair nos outros. Mas isso não importa tanto. O que importa é trabalhar, como você tantas vezes me disse. E é isso o que eu não tenho feito. Minha impaciência chega a ser tão grande que às vezes me dói. Assim não tenho gostado verdadeiramente da Itália, como não poderia gostar verdadeiramente de nenhum lugar; sinto que há entre mim e tudo uma coisa, como se eu fosse daquelas pessoas que têm os olhos cobertos por uma camada branca. Sinto horrivelmente ter que dizer que esse véu é exatamente minha vontade de trabalhar e de ver demais. Um dia desses pensei com tristeza de como é genial a tortura da mediocridade... Sinto tanto, tanto ser tão fraca. Gostaria de tal, de tal forma poder trabalhar sem parar. Mas não consigo, as coisas me vêm esparsas – e além disso eu de tal modo desconfio de mim, com medo de escrever facilmente com a ponta dos dedos, que nada faço. Quer me animar, Lúcio? Não que eu mereça ser animada, mas mereço como qualquer pessoa ter os pés em cima da terra. Eu queria fazer uma história cheia de todos os instantes, mas isso sufocava o próprio personagem. Acho mesmo que meu mal é querer ter todos os instantes. Que eu estou idiota, você não precisa dizer, sei bem...
         Nem toquei no fato de você ler meu livro porque sei que você não gostará; e isso me entristeceria. Estou lendo À sombra das rap’rigas eim floire, como traduziram os portugueses, mas estou lendo em francês naturalmente. Eu pensava que ia gostar de Proust como se gosta das coisas esmagadoras; mas com grande surpresa vejo que tenho um prazer enorme e sincero em lê-lo, acho-o naturalíssimo, nada cacete, nada imponente, pelo contrário, de uma modéstia intelectual que nunca se sacrifica por um brilho, por uma imagem; você concorda? diga. Que é que você faz? Minha irmã Elisa mandou-me uma tradução sua de Emily Bronte, ainda não li de tão cheia de mil pequenas ocupações esses dias. Por que A Professora Hilda não aparece? O que é anfiteatro? é o anfiteatro com gente vendo espetáculo ou o anfiteatro escuro na hora da limpeza? que mistério. Explique, se é que você ainda me escreverá, tão desiludida é esta pobre moça. Que aliás vai posar (ia escrevendo pousar, mas a tempo corrigi minha natureza de pássaro) para uma pintora brasileira há muitos anos aqui, uma que tomou parte na semana de arte moderna, Zina Aita. Acha com certeza meu rosto “característico”, como já me disseram tantas vezes sem me dizer o que característico de quê. Com certeza é qualquer coisa feia. – Aqui as ruas são atapetadas de bambinos, principalmente os becos. A gente fica boba para passar entre eles (nos becos todos vivem na rua, cozinham até), crianças que engatinham, crianças que já têm ar sabido, imundas, com aspecto saudável na maioria, com a carinha vegetativa, sentadas ao chão. Tem feito bem frio, de vez em quando cai um pouco de neve. O Vesúvio está com as encostas brancas. Mas ainda não vi neve caindo propriamente dita, em flocos. A primeira vez o chaffeur do consulado veio me dizer que o carro estava com nevinha. Eu abri a porta saí correndo e peguei um punhado (fica um pedaço grudado a outro), quando veio Maury com um ar zangadíssimo, bateu na minha mão e eu fiquei com cara de boba. Então ele me lembrou que eu estava bem resfriada, que podia pegar uma pneumonia etc. Mas eu estava inconsolável. No dia seguinte, eu estava no quarto, Maury entrou com um papel dobrado, desembrulhou e mostrou um pouquinho de neve que ele tinha ido buscar para mim. A coisa estava derretida, horrorosa, e Maury com um ar de triunfo, mas era um presente mesmo. Hoje está fazendo um bom sol, mas minha janela está quebrada e eu não posso abrir. – A lavadeira de casa, uma signorina, está esperando um bebê e vive espionando a nossa cozinha e tremendo com os olhos enormes. Um dia desses fui pedir uma xícara de chá e só ela estava lá. Quando pedi que ela fizesse, ela tremeu de alegria e disse: faccio una anche per me! (anche é também) (e faccio não sei se escreve assim...) – Lúcio, me escreva as vinte páginas que você prometeu, ou mesmo, duas ou três apenas. Não seja egoísta nem preguiçoso, isso me ofende. Diga a Irmgaard que não escrevo por enquanto porque estou procurando os dois endereços que ela pediu.
         Um grande abraço para você da
Clarice

Lúcio, você quer alguma coisa daqui?
NÃO SEJA PREGUIÇOSO!!!!

*

Nápoles, 26 de março de 1945

Lúcio:

Há quanto tempo estou para lhe escrever... (Naturalmente não conto o tempo que você “demora” para escrever para mim). Li seu livro numa só tarde, naturalmente sem interromper. A princípio tinha dificuldade de lê-lo tão trágico me parecia porque é escrito na primeira pessoa e eu tinha a impressão de que o rapazinho era você. E como você é mesmo impossível podia ser você. Aos poucos fui me acostumando e afinal separei você de seu livro. Você começa com um estilo tão excitado como um passarinho... E no começo tem uma coisa que você parece nunca ter usado (sobretudo no começo): quase bom humour, quase ironia. (Não fique irritado, é bom humour no bom sentido...). O fato é que gostei de Inácio com tanta curiosidade e tanto interesse como dos seus outros. Ele é uma mistura (nesse livro mais, me parece) de coisas em que a gente sempre toca, como a Duquesa fazendo café à moda da roça e a flor “sem serventia nenhuma”, com coisas que a gente nunca toca, como Inácio, meu Deus... Quando chegou o momento em que o rapazinho diz finalmente: eu queria saber como minha mãe e você se conheceram, eu parei e fiquei descansando uns 15 minutos. E quando ele fica louco, que alívio. Quando dá a gargalhada, a gente respira: o livro todo prepara a gargalhada. O livro podia se chamar Lucas Trindade, mas no momento em que Inácio aparece com o xadrez e o lenço perfumado, com a cara de boneca velha, então só podia se chamar mesmo Inácio. Gostei muito de Inácio ter ido à Feira de Amostras com aquelas jovens; é uma situação tão rica e tão desenvolta, e como audaciosa. Gostei muito de vários pedaços de conversas do rapazinho com Violeta. É que... suspirou a dama. (tão gentil...). O modo como Stela e Lucas se divertiam sufocando de riso é uma maravilha, nem sei lhe dizer como emociona sobretudo quando se sabe a verdade das relações dos dois. Gostaria de ler críticas a respeito. Como não sou crítica, nem um pouco, minha opinião se condensa melhor depois de ler uma crítica (quer dizer, minha opinião falada), qualquer que seja minha opinião, contrária a qualquer crítica. Compreende? Você deve estar com a professora Hilda nas livrarias. Não quer me mandar? se você soubesse com quanto interesse leio seus livros haveria de me mandar.
         Comigo nada há de novo. Tania me avisou que a Editora Agir publicará meu livro; estou esperando confirmação. Quanto ao mais, não sei. Diz santa Terezinha que cansa recolher os sentidos que “como estan acostumbrados a andar derramados, es harto trabajo” recolhê-los, como tirar água do poço, diz ela num espanhol mais ortográfico do que a minha citação. Pois estou um pouco cansada de retirar água do poço, tão espalhada anda ela e tão harto é o trabalho. Mas o pior é que a água do poço quando não se tira em vez de acumular desaparece. Estou simbólica como no Jornal das Moças, o que afinal dá no certo porque sou uma moça. Tania fez sérias restrições ao Lustre. Inclusive quanto ao título. Vai assim mesmo embora ela tenha razão. Nada ali presta realmente. Minha dificuldade é que eu só tenho defeitos, de modo que tirando os defeitos quase que resta Jornal das Moças. – Estou trabalhando no hospital americano, com os brasileiros. Visito diariamente todos os doentes, dou o que eles precisam, converso, discuto com a administração pedindo coisas, enfim sou formidável. Vou lá todas as manhãs e quando sou obrigada a faltar fico aborrecida, tanto os doentes já me esperam, tanto eu mesma já tenho saudade deles.
         Lúcio, me escreva e conte coisas. Ou então, não escreva, que posso eu fazer? Um dia desses fui ver a lava do Vesúvio. Tenho um pedaço feio de lava para você. Depois de um ano ainda estava quente; é uma extensão enorme, negra, de vinte a trinta metros de altura; a gente anda sobre casas, igrejas, farmácias soterradas. A erupção foi em março de 1944 e quando chove sai fumaça ainda. Com certeza eu já lhe disse que o mar aqui é absolutamente azul; mas como estou com a porta do quarto aberta para o terraço, vi o mar e me lembrei de dizer de novo. E certamente já lhe falei em Posilipo, que é um lugar. Em grego quer dizer pausa da dor. A dor realmente fica um instante suspensa, tão doces são as cores, tão sem selvageria, tão belo, tão belo é o lugar com mar, árvores, montanha. A minha impressão é quase ruim: há coisas bonitas em excesso, eu parece que não tenho tempo ou força, o fato é que ficaria mais calma com uma.
         Dê lembranças a Octávio, a Lêdo Ivo, a Adonias. Um abraço para você da

Clarice


Perdoe a carta tão mal escrita. É que detesto recopiar, sempre que copio transformo.

*

fotos de Clarice Lispector e de Lúcio Cardoso


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De Sheila Heti para K.; e para Darren O’Donnell.

De: Sheila Heti
Data: Qui, 28 Fev, 2008 às 11:27 AM
Assunto: Sonho com Hillary... Sonho com Barack
Para: K.

Olá Kristen!

Não vejo nenhuma razão para você não escrever a seu amigo hoje. Mais uma vez obrigado por me ajudar com isso... Bj.
Aqui vão detalhes:
Segunda-feira passada, eu comecei “Sonho com Hillary… Sonho com Barack” – dois blogs, um recolhendo sonhos que as pessoas têm com Hillary Clinton, o outro apresentando sonhos sobre Barack Obama.
Eles são estranhos e reveladores! Os sonhos com Barack são completamente diferentes dos com Clinton. Por exemplo, em dois dos sonhos com Clinton, aparece um abacaxi. Não há abacaxis nos sonhos com Barack. 
Meu sonho com Hillary favorito é este:

“Eu sonhei que estava no pequeno apartamento quarto-e-sala da Hillary, e ela tinha um restinho de coca sobrando, tipo uma carreira, e eu matei e ela ficou com furiosa comigo”.

Na próxima terça, The Chicago Tribune vai publicar uma matéria grande sobre os sites. A New Yorker vai falar sobre os sites na seção Talk of the Town. A New York Magazine vai republicar alguns dos sonhos. Amanhã, eu falo na rádio nacional da Irlanda. The American Prospect e The New Republic blogaram sobre o assunto.
As pessoas estão mandando sonhos...

www.idreamofhillaryidreamofbarack.com

Eu acho que seria ótimo se alguns dos apresentadores dos humorísticos noturnos soubessem do projeto. É tão engraçado, tão esquisito. É a primeira pesquisa metafísica sobre os candidatos do partido democrata. Nós sabemos o que Hillary e Barack significam para as pessoas, mas o que eles SÃO para elas? É isso que esperamos responder.

da sempre amiga,
Sheila


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De: Sheila Heti
Data: Sáb, 2 Jan, 2010 às 9:52 AM
Assunto: R.A.
Para: Darren O'Donnell


Oi Darren,

Eu entrei em contato com 20 pessoas – enviando o email em anexo.
Depois de pensar na ideia mais um pouco (e ainda conversando com Misha) e pensando sobre o nosso último diálogo, parece melhor mesmo começar modestamente – e considerar tudo como um projeto artístico a princípio. No mínimo, se nós pensarmos nisso como um projeto artístico e fizermos meia dúzia (ou uma dúzia) de vezes no total, de maneiras bem modestas, então a gente pega os questionários das pessoas, e poderemos escrever um livro bacana sobre a experiência.
Você pode mandar um email para os seus contatos mais diversos e prováveis (atraentes, interessantes, curiosos) amanhã ou depois?
Eu vou continuar procurando por um local. Me mande outras ideias de local que você tiver.
         Além disso, eu falei com Bem sobre o contrato. Me mande qualquer observação sobre o que deve ter no contrato. Se tem algum parágrafo que você quiser incluir, me mande igualmente.
         Eu preferi não revelar a taxa de participação por enquanto. Eu acho que melhor a gente ver quantas pessoas estariam realmente interessadas na proposta mesmo – quantos contatos a gente recebe – antes de estabelecer um preço. Se três pessoas nos mandarem o email, não dá para fazer de qualquer jeito. Eu espero que você não ache que isso vai soar suspeito para as pessoas que receberem esta mensagem. Acho que a gente precisa apurar o nível de entusiasmo primeiro.
Meu amigo Matt MacFadzean respondeu assim:
         “Eu vou repassar isso, e meio que fazer uma tentativa, mas a não ser que a pessoa fosse bonita e interessante, parece completamente infernal. Vc vai fazer mesmo isso? Claro que não”.
         Vamos ver o que acontece agora…
         Você está se divertindo em Londres?

Sheila

Olá.

Nós (Sheila Heti e Darren O’Donnell) estamos criando um evento chamado Relacionamentos Arranjados. A proposta é que pessoas solteiras serão unidas uma a outra ao acaso, depois de concordarem contratualmente que vão sair com essa pessoa escolhida ao acaso por um mês. (Mais especificamente, elas vão se comprometer a conversar com essa pessoa todo dia e se encontrar duas vezes na semana. Elas não têm nenhuma obrigação de algo físico e são autorizadas a namorar, sair com outras pessoas).
         Nós estamos escrevendo para pedir por nomes e endereços eletrônicos de pessoas solteiras que você conheça e que sejam mais ou menos desejáveis (razoavelmente gentis, razoavelmente atraentes, razoavelmente inteligentes), que tenham talvez espírito esportivo.
Nós vamos então enviar a essas pessoas um convite genérico para participar – sem dizer quem foi que nos deu o nome delas. (Você pode, é claro, informá-las que as indicou, ou pedir a permissão delas).
         Para o primeiro evento, estamos procurando por heterossexuais entre as idades de 25 e 35 anos (ou perto) que morem em Toronto. Observe-se que há uma taxa de participação (a ser discutida através de correspondência com os interessados em participar).
         O propósito dessa experiência é determinar a grandeza de fator que o elemento da escolha desempenha em nossas insatisfações com relacionamentos. Somos mais tolerantes, ou nos sentimos mais relaxados para curtir a pessoa, quando a escolha é tirada da equação? Nós nos treinamos para ser excessivamente críticos, avaliar o outro muito rápido? Nós não damos oportunidade suficiente para o outro? O que acontece quando se impõe a forma cultural dos casamentos arranjados de culturas não-ocidentais? É possível gostar de um encontro com alguém que você não escolheu? As nossas escolhas são motivadas por desejos pessoais que podem, paradoxalmente, não ser o melhor para o nosso interesse? Se você é forçado/a a passar tempo com alguém, você é capaz de se adaptar e achar alguma coisa em comum? A atração pode se desenvolver de algum modo, se o destino ou o acaso forçar em algum aspecto o contato?
Participantes são obrigados a comparecer a um evento em Janeiro, e um segundo momento em Fevereiro, no qual nós vamos nos reencontrar para ver como foi a experiência de todos. Data e local a combinar.
Por favor, nos envie os endereços eletrônicos de quaisquer homens e mulheres que você pense que nós devemos contatar, incluindo você mesmo/a, se estiver interessado, ou encaminhe este email para eles para que possam entrar em contato diretamente conosco através do arrangeddating@gmail.com.

Muito obrigado,

Sheila and Darren

www.sheilaheti.net


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foto de Sheila Heti

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Adrienne Rich: “Ninguém dorme neste quarto sem o sonho de uma língua comum”.

Uma mulher nasce. Uma mulher cresce. Uma mulher sonha ser poeta. Uma mulher lança um livro (tutelada por um importante poeta do período, no estilo desse poeta).  Uma mulher casa. Uma mulher lança um segundo livro. Uma mulher tem 3 filhos em 5 anos.  Uma mulher começa a se perguntar: “o que é ser mulher?”.  Uma mulher investiga a si. Uma mulher investiga o meio.  Uma mulher lança um terceiro livro, com o resultado dessa investigação (livro que rompe, de formas distintas, com os dois anteriores). Uma mulher se separa. Uma mulher ama outras mulheres. Uma mulher se declara judia (mesmo tendo nascido de pai judeu e mãe não-judia) e se lança numa cruzada contra as muitas formas de opressão exercidas pelo Estado mais rico e  poderoso do planeta. Uma mulher sonha um outro mundo.  Uma mulher sonha uma língua comum e se pergunta se a poesia pode ser “impulso de estabelecer ligação”. Uma mulher se torna ensaísta, ativista política, com diversos livros publicados sobre feminismo, poesia e política. Uma mulher trama um poema possa ameaçar o status quo.
É a partir do lançamento do seu terceiro livro, Instantâneos de uma nora (Snapshots of a daughter-in-law, 1963), que a obra de Adrienne Rich passa a ser uma investigação (e auto-investigação) das condições e implicações de ser mulher no mundo.    Na introdução de “Uma paciência selvagem”, antologia portuguesa da poesia de Rich (na qual se baseia essa postagem) as tradutoras Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade nos informam:

“Oito anos foi quanto Rich levou até publicar o terceiro livro de poemas. Em Snapshots of a Daughter-in-law [Instantâneos de uma nora] (1963) reflecte-se a experiência de vida de Rich, que em 1953 se casara com um jovem economista de Harvard e tivera três filhos em cinco anos. A dura vivência do doméstico, enquanto esposa prioritariamente destinada a apoiar a carreira universitária do marido, ameaça-a de fracasso como mulher e como poeta, e por isso lhe aguça as antenas políticas. Nos anos sessenta do século passado, as mulheres começavam a entender plenamente que o ‘pessoal é político’ e que a heterossexualidade não é, necessariamente, um destino obrigatório. Rich é, a esse respeito, exemplar. Em A heterossexualidade compulsória e a existência lésbica (1981), Rich reflete sobre a heterossexualidade como uma instituição patriarcal que historicamente foi mantendo as mulheres sob o domínio dos homens, ao deliberadamente suspender a possibilidade da existência lésbica. A existência lésbica, ou o continuum lésbico, explica Rich, define uma experiência vinculada pelo ser-mulher, e não por referência ao homem como identificação. No entender de Rich, mais do que o domínio masculino, mais do que a desigualdade sexual, ou mesmo mais do que os tabus contra a homossexualidade, o factor que tem mantido as mulheres subordinadas na estrutura social dominante é a obrigatoriedade da heterossexualidade como forma de realização feminina. Em 1970, Rich separa-se do marido e empenha-se numa luta feminista que tem como prioridade dar visibilidade ao lesbianismo como possibilidade de realização.                 

Na postagem desta semana trazemos 3 séries poéticas  da autora sobre  e o link para o ensaio Heterossexualidade compulsória e existência lésbica  na tradução de Carlos Guilherme do Vale (professor do departamento de Antropologia da UFRN), além de dois vídeos com a autora lendo seus poemas. 


O que está em jogo na poesia de Rich é um questionamento da posição do poeta com relação à palavra, e a sua materialidade específica. Não será impunemente que a poesia poderá se esquivar de uma escuta necessária da fala pública de seu tempo. Ainda mais no tempo em que tudo aquilo que escrevemos será usado contra nós ou contra aqueles que amamos. É por meio desse conjunto de perguntas, de como as palavras no situam numa história, num tempo e espaço, por assumir essa responsabilidade diante de um leitor, diante de quem vier a ser seu leitor, que se faz a escrita da poeta. Foi assim que ela disse: “A arte não significa nada se simplesmente decora a mesa de jantar do Poder que a mantém refém”. E é assim que num dos trechos finais do poema Fontes [sources] podemos ler uma quase carta de intenções da sua poesia:

“É por isso que quero falar contigo agora. Para dizer: ninguém, homem ou mulher, a tentar assumir responsabilidade pela sua identidade, deveria ter de estar tão só. Tem de haver aqueles entre os quais nos possamos sentar e chorar, e mesmo assim sermos considerados guerreiros (Preparo para ti esta encomenda estranha e cheia de ira, entrelaçada de amor). Penso que pensaste não haver lugar nenhum como esse para ti, e talvez não houvesse nenhum então, e talvez não haja nenhum agora; mas teremos de o fazer, nós que queremos o fim do sofrimento, que queremos mudar as leis da história, se é que não queremos entregar-nos”.

***

TEMPO NORTE-AMERICANO

I       

Quando os meus sonhos deram sinais
de  começarem a ser
politicamente correctos,
sem imagens rebeldes
a escapar dos limites,
quando, caminhando pela rua, encontrei os meus
temas fabricados  para mim,
soube o que não relataria
com medo do uso dos inimigos,
foi então que comecei a interrogar-me

II

Tudo que escrevemos
será usado contra nós
ou contra aquele que amamos.
São estas as condições,
É pegar ou largar.
A poesia nunca teve hipótese
de  se  pôr  fora da história.
Um verso dactilografado há vinte anos
pode ser escarrapachado a tinta na parede
para glorificar a arte como distanciamento
ou tortura daqueles que
não amámos mas também
não quisemos matar

Nós seguimos        mas as nossas palavras ficam
tornam-se responsáveis
por mais do que tínhamos na intenção

e  isto é privilégio verbal

III

Experimenta sentar-te à máquina de escrever
uma calma tarde de verão
numa mesa junto a uma janela
no campo, experimenta fingir
que o teu tempo não existe
que tu és simplesmente tu
que a imaginação simplesmente foge
como uma traça enorme, sem intenção
tenta dizer-te
que não tens que responder
pela vida da tua tribo
pelo respirar do teu planeta

IV

Não importa o que pensas.
As palavras são tidas como responsáveis
tudo o que podes fazer  é escolhê-las
ou escolher
ficar calada.    Ou, nunca tiveste escolha,
e é por isso que as palavras ficam mesmo
são responsáveis.

e isto é privilégio verbal

V

Suponhamos que queres escrever
sobre uma mulher entrançando
o cabelo de outra mulher  –
tranças simples, ou com contas e conchas
tranças de três madeixas ou tranças corridas  -
é bom que saibas a espessura
o comprimento   o modelo
por que razão decide ela fazer tranças
em que país acontece
e que mais acontece nesse país

Tens de saber estas coisas

VI

Poeta, irmã: as palavras –
quer queiramos, quer não –
existem num tempo que lhes é próprio.  
De nada vale protestar Escrevi isso
antes de Kollontai ter sido exilada
Rosa Luxemburgo, Malcolm,
Ana Mae Aquash, assassinados,
Antes de Treblinka, Birkenau,
Hiroshima, antes de Sharpeville,
Biafra, Bangladesh, Boston,
Atlanta, Soweto, Beirute, Assam
- esses rostos, nomes de lugares
rasgados do almanaque
do tempo norte-americano

VII

Estou a pensar isto num país
onde se roubam palavras das bocas
como se rouba o pão das bocas
onde os poetas não vão para a cadeia
por serem poetas, mas por terem
a pele escura, por serem mulheres, pobres.
Estou a escrever isto num tempo
em que o que quer que escrevamos
pode ser usado contra aqueles que amamos
onde o contexto nunca é dado
embora tentemos explicar, vezes  sem conta
Em nome da poesia pelo menos
preciso saber estas coisas


VIII

Por vezes, planando à noite
num avião sobre Nova Iorque,
tenho-me sentido como uma mensageira
chamada a entrar, chamada a arrostar com
este campo de luz e escuridão.
Uma ideia grandiosa, nascida do voar.
Mas por baixo da ideia grandiosa
está o pensamento de que aquilo com que tenho de arrostar,
depois de o avião rugir sobre a pista,
depois de trepar as minhas velhas escadas, de me sentar
à  minha velha janela,
está destinado a destroçar-me o coração e reduzir-me ao silêncio.

IX

Na América do Norte o tempo vai tropeçando
sem se mover, apenas libertando
uma  certa dor norte-americana.
Julia de Burgos escreveu:
O meu avô ter sido um escravo
é a minha dor:                tivesse ele sido um senhor
essa teria sido a minha vergonha.
Palavras de uma poeta, penduradas numa porta
na América do Norte, no ano de
mil novecentos e oitenta e três.
A lua quase-cheia ergue-se
intemporal, falando de mudanças
lá no Bronx, o Rio Harlem
as cidades inundadas dos Quabbin
os montes funerários pilhados
os pântanos tóxicos, os locais dos testes

e começo a falar de novo

1983 – retirado do livro Tua terra, tua vida [Your Native Land, You Life].

*

ORIGENS E HISTÓRIA DA CONSCIÊNCIA

I

Vida nocturna. Cartas, diários, uísque
entornado no copo. Poemas crucificados na parede,
dissecados, asas decepadas
como troféus. Ninguém vive neste quarto
sem viver uma crise qualquer.

Ninguém vive neste quarto
sem confrontar a brancura da parede
por trás dos poemas, pranchas de livros,
fotografias de heroínas mortas.
Sem por fim chegar a ponderar
a verdadeira natureza da poesia. O impulso
de estabelecer ligação. O sonho de uma língua comum.

Pensando em amantes, na sua fé cega, nas suas
crucificações vividas,
a minha inveja não é simples. Tenho sonhado com ir para a cama
como entrando em água clara circundada por um bosque coberto de neve
branco como lençóis frios, pensando, Vou enregelar ali dentro.
Os meus pés nus estão já entorpecidos pela neve
mas a água
é mansa, afundo-me e flutuo
como um animal anfíbio quente
que rompeu a rede, correu
pelos campos de neve sem deixar marca;
esta água faz desaparecer o cheiro –
Estás a salvo agora
do caçador, do armadilheiro
dos carcereiros da mente –
porém o animal quente continua a sonhar
com outro animal
nadando debaixo da superfície da lagoa salpicada de neve,
e acorda, e volta a adormecer.

Ninguém dorme neste quarto sem
o sonho de uma língua comum.

II

Foi simples conhecer-te, simples tomar os teus olhos
nos meus, dizendo: estes são olhos que conheço
desde o principio... Foi simples tocar-te
contra o fundo retalhado, ao arrepio de tudo o que
tínhamos sido, as escolhas, os anos... Foi até simples
tomarmos as vidas de cada uma de nós nas nossas mãos, como corpos.

O que não é simples: acordar de se afogar
de onde o oceano batia dentro de nós como placenta
por esta mesma particularidade aguda,
estes dois eus que caminharam meia vida sem se tocarem –
acordar para algo enganosamente simples: um copo
suado de orvalho, a campainha do telefone, o grito
de alguém espancada lá ao fundo da rua
fazendo cada uma de nós ouvir o seu próprio grito interior

sabendo da mente do assaltante e da assaltada
como tem de saber qualquer mulher para conseguir sobreviver a esta cidade
a este século, a esta vida...
tendo cada uma de nós amado a carne na sua beleza cerrada ou solto
melhor do que árvores ou música (porém amando estas também
como se fossem carne – e são – mas a carne
de seres ainda por sondar na nossa vida mais ou menos literal ).

III

É simples acordar de dormir com uma estranha,
vestir, sair, tomar café,
entrar numa vida de novo. Não é simples
acordar para a proximidade
de alguém que nem é estranha nem chegada
em quem se escolheu confiar. Confiando, não confiando,
até este ponto chegámos, descemos mão
após mão como por uma corda trémula
sobre o que ficou por buscar...fizemos isto. Concebidas
uma da outra, concebemo-nos uma à outra numa escuridão
que recordo como encharcada de luz.
                                                                     A isto quero chamar – vida.
Mas não posso chamar-lhe vida até começarmos a ir
para além deste secreto círculo de fogo
onde os nossos corpos são sombras gigantes arremessadas contra uma parede,
onde a noite passa a ser a nossa escuridão interior, e dorme
como um animal, a cabeça pousada nas patas, a um canto.

1972-1974 – retirado do livro O sonho de uma língua comum [The Dream of a common language]

*

E AGORA

E agora enquanto ledes estes poemas
- vós cujos olhos e mãos eu amo
- vós cuja boca e olhos eu amo
- vós cujas palavras e mentes eu amo –
não penseis que estava a tentar defender uma cauda
ou construir um cenário:
Procurei escutar
a voz pública do nosso tempo
procurei sondar o nosso espaço público
o melhor que pude
- procurei lembrar-me dos pormenores e
ser-lhes fiel,  registrar
exatamente como o ar se movia
e onde estavam os ponteiros do relógio  
e quem tinha a seu cargo as definições
e quem se limitava a acatá-las
quando o nome compaixão
foi mudado para o nome culpa
quando sentir como um humano estranho
foi declarado obsoleto.

1994 – retirado do livro Campos negros da República [ Dark Fields of the Republic].

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