terça-feira, 3 de setembro de 2013

Poemas eróticos de Konstantinos Kaváfis: “O melhor momento do amor é quando o amante está indo embora de táxi”.

Há um belo de trecho de uma entrevista de Michel Foucault realizada por James O’Higgins em março de 1982, em que o francês começa procurando responder a uma pergunta acerca das diferentes formas do erotismo aparecer em uma literatura homossexual e em uma literatura heterossexual, e que desenvolve talvez alguns dos elementos fundamentais para o início de uma conversa sobre o homoerotismo na poesia do alexandrino Konstantinos Kaváfis, e tudo segue mais ou menos assim:

Foucault: (...) A experiência da heterossexualidade, pelo menos desde a Idade Média, foi sempre formada por dois quadros: de um lado o quadro da corte, no qual o homem seduz a mulher; e de outro o do ato sexual em si. Mas a grande literatura heterossexual do Ocidente se polarizou fundamentalmente em torno do quadro da corte amorosa, isto é, de tudo quanto precede o ato sexual. Toda a atividade do refinamento intelectual e cultural, toda a elaboração estética ocidental, se centrava na corte. Daí a reduzida valorização literária, cultural e estética do ato sexual em si.
         Por outro lado a experiência homossexual moderna não tem nenhuma relação com a corte. Naturalmente na Grécia antiga não ocorria o mesmo. Para os gregos a corte entre os homens tinha mais importância que entre homens e mulheres (pense em Sócrates e Alcibíades). Mas na cultura cristã ocidental a homossexualidade se viu repelida e teve portanto de concentrar sua energia no próprio ato sexual. Não se permitiu aos homossexuais elaborar um sistema de corte, uma vez que lhes foi negada a expressão cultural necessária a essa elaboração. A piscadela na rua, a repentina decisão de ir ao que interessa, a rapidez com que as relações homossexuais são consumadas, todos esses fenômenos têm origem numa proibição. Por isso é lógico que quando começam a se desenvolver uma cultura e uma literatura homossexuais elas se centrem no aspecto mais ardente e veemente das relações homossexuais.

O’Higgins: Lembrei-me da célebre frase de Casanova: ‘O melhor momento do amor é quando subimos as escadas’. É difícil imaginar um homossexual dos nossos dias fazendo essa observação.

Foucault: Exatamente. Em vez disso ele diria algo assim: ‘O melhor momento do amor é quando o amante está indo embora de táxi’.

(...)

Foucault: (...) É o momento em que o ato já se realizou e o rapaz vai embora e começa a lembrar o calor daquele corpo, o encanto do sorriso, o tom da voz. O que assume a maior importância nas relações homossexuais não é a antecipação do ato, e sim a lembrança dele. Essa é a razão pela qual os grandes escritores homossexuais da nossa cultura (Cocteau, Genet, Bourroughs) podem escrever com tanta elegância sobre o próprio ato sexual, já que a imaginação homossexual trata sobretudo de lembrar o ato e não de antegozá-lo. E, como lhe disse antes, tudo isso se deve a circunstâncias de caráter muito concreto e prático, nada nos dizendo sobre a natureza intrínseca da homossexualidade”.

(FOUCAULT, M. Um diálogo sobre os prazeres do sexo. Tradução: Maria Cristina Guimarães Cupertino. Sp: 2 ed. 2005).

         Se, desde o momento de Kaváfis viveu e escreveu seus poemas, e mesmo desde o momento em que Foucault concedeu essa entrevista, até hoje, operou-se uma série de deslocamentos nas formas de se viver/perceber/dizer o ato sexual e a sexualidade, isso não aponta para um esquecimento ou uma insignificância da prática e da poética de Kaváfis no mundo atual. Antes, a sua leitura nos permite colocar a questão acerca de que relações o erotismo, e a poesia erótica heterossexual e homossexual, tecem com as circunstâncias práticas e concretas em que vivemos e que diferenças nelas e com elas, ou a partir delas, se podem operar.
         Aqui, estamos publicando uma pequena seleção de seus poemas nas traduções de José Paulo Paes, e nas de Isís Borges da Fonseca, bem como revisitando o poema Ombro enfaixado, em tradução de Fernanda Lima, publicado na revista Bliss. Além disso, incluímos a apresentação com novos poemas traduzidos, elaborada pela mesma Fernanda Lima e por Luciana Póvoa, para uma publicação que apresenta 45 poemas eróticos do alexandrino (e que será, em breve, disponibilizada aqui para download). E deixamos rodando essa insistente pergunta, (de que modo ela retornará?), que enfeixa uma escrita do erotismo: qual o melhor momento do amor?

*

Longe

Quisera referir essa lembrança...
Mas já se apagou tanto... visto que nada se mantém –
pois longe, nos primeiros anos de minha adolescência, ela jaz.

Uma pele como feita de jasmim...
Aquela noite de agosto – era agosto? – aquela noite...
Mal me lembro agora dos olhos – eram, creio, azuis...
Ah! sim, azuis: um azul de safira.

(KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas de K. Kaváfis. Tradução, estudo e notas de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo: Odysseus).

*

Volta

Volta outras vezes e domina-me,
frêmito amado, volta outras vezes e domina-me –
quando a memória do corpo despertar,
quando ao sangue retornar o desejo de outrora
e os lábios e a pele lembrarem e as mãos
sentirem-se como que tocadas de novo.

Volta outras vezes e domina-me, quando a noite
fizer com que os lábios e a pele se lembrem.

(In: PAES, José Paulo. (org.: seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).

*

O espelho da entrada

À entrada da mansão
havia um grande espelho muito antigo
comprado pelo menos há mais de oitenta anos.

Um rapaz belíssimo, empregado de alfaiate
(e nos domingos atletas diletante)
estava ali com um pacote.

Deu-o a alguém da casa, que o levou para dentro
com o recibo. O empregado do alfaiate
ficou sozinho, à espera.

Acercou-se do espelho e mirou-se
para ajeitar a gravata. Após cinco minutos,
trouxeram-lhe o recibo e ele se foi.

Mas o antigo espelho que vira e revira
nos seus longos anos de existência
coisas e rostos aos milhares;
mas o antigo espelho agora se alegrava
e exultava de haver mostrado sobre si
por um instante a beleza culminante.

(In: PAES, José Paulo. (org.: seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).

*

Desejos

Como belos corpos de mortos que não envelheceram
e foram encerrados, com lágrimas, em magnífico mausoléu,
com rosas nas cabeças e jasmins nos pés –
assim se lhes assemelham os desejos que passaram
sem se realizar, sem que nenhum
alcançasse uma noite de prazer, ou sua manhã luminosa.

(KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas de K. Kaváfis. Tradução, estudo e notas de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo: Odysseus).

*

O ombro enfaixado

Disse que bateu em um muro ou que caiu.
Mas provavelmente a razão seria outra
para o ombro ferido e enfaixado.

Por conta de um movimento um tanto brusco
em direção à estante, para descer algumas
fotos que queria ver de perto,
soltou-se a faixa e um pouco de sangue escorreu.

Novamente enfaixei o ombro, e demorei-me
um pouco nesta tarefa, pois não doía
e agradava-me ver o sangue. Coisa
do meu amor era aquele sangue.

Assim que saiu, encontrei sobre a cadeira em
frente
um pano das ataduras manchado de sangue,
pano que parecia dever ir direto pro lixo
e que sobre os meus lábios mantive eu,
e que beijei por longo tempo –
o sangue do meu amor nos meus lábios.

(Tradução de Fernanda Lima. In. Bliss. Editores: Lucas Matos, Clarissa Freitas e Márcio Junqueira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009).

*



De desejos e silêncios: 45 poemas de (i)legal prazer   

Fernanda Lima e Luciana Póvoa

                                                                    
                                                                                         
Estético, sensível, sensorial, sensual: são esses quatro adjetivos que Konstantinos Kaváfis, poeta de língua grega radicado em Alexandria, no Egito, carrega na tinta expressa das linhas engavetadas. É um αισθητικός voltado para um homoerotismo particular que abriga pinceladas de όμορφος e ηδονή, de belo e prazer amalgamados por uma poética do desejo.
As cenas, os encontros e o entrelaçamento de corpos são preenchidos por pura plasticidade, ponto em que a compaixão pelo ego torna-se uma compaixão pelo ser homoerótico-universal. Este, por sua vez, vive sob a satisfação adiada e o desejo reprimido. E é a tensão entre a vida consciente do ego e a repressão da busca pelo “prazer preliminar” – o poder da forma artística que transpira nas linhas e silêncios kavafianos modelando e plasmando a essência de um amor entre iguais fugitivo das garras repressoras-centrífugas – que molda a clave dos constituintes da criação kavafiana, como é perceptível no poema Muros: “Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora. Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.”
O ambiente retratado pelo poeta é o oposto de um mundo de plenitude, sem faltas ou exclusões de qualquer tipo: existe um hiato, um abismo hiante entre significante e significado, entre o eu e o tu. A aposiopese, muitas vezes utilizada por Kaváfis, carrega uma distância estruturada ad infinitum de um significante para outro. É a partir daí que se estabelece a ponte com o desejo, e, para que isso aconteça, se faz necessário um processo de omissão e deslize constantes da significação. Sem isso, a preservação saudável do eu-poético seria consideravelmente dificultada.

Quando surgirem

Poeta, empenha-te para que as retenha
enquanto são poucas as que se estancam
as quimeras do erotismo teu.
Incute-as, levemente encobertas, nos versos teus.
Poeta, avigora-te para que as retenha,
quando surgirem em tua mente,
à noite ou ao resplandecer do meio-dia.

Pode-se dizer que a omissão e o deslize do significante, a revelação e o ocultamento são uma espécie de parapraxis forçada, lapsos linguísticos propositalmente incitados. O trabalho sobre o gênero do ser desejado é um exemplo: o ocultamento de gêneros e nomes é fundamental para que o deslize das epifanias seja concretizado.
Com isso, o processo da tessituraο ato textual – deve ser despido de sua própria composição para que haja estímulo de reflexão crítica sobre as maneiras particulares pelas quais elas construíram a realidade cotidiana de Kaváfis e de seus amantes – desejos poéticos – de forma a reconhecer que tudo aquilo poderia ter acontecido de modo distinto. Assim, há uma demanda de atos e suposições de muitos olhares atentos para que o processo estético possa ser recepcionado de maneira adequada. E produtiva:

Mas para nós da Arte,
por um instante, habita a alma, e de fato
por curto tempo, engendramos o prazer
que fantasio como se fosse real  

São esses olhares atentos os responsáveis pela particularidade do poeta em questão: “as atividades dos olhos kavafianos”, assim como a das câmeras de Hollywood, devem ser destacadas de modo que o espectador, tanto das imagens quanto das entrelinhas, não possa somente efetuar uma observação dos objetos através da interferência dessa operação, mas sim deitar as suas sinapses refletivas e refletoras sobre as lições de poesia e desejo que esses olhos criptografados querem dizer:

Vitrine de Tabacaria

Perto da vitrine iluminada
de uma tabacaria pararam em meio a muitos outros.
Por acaso, seus olhares se encontraram
e o ilegal desejo das suas carnes
se revelou timidamente, hesitante.
Depois, alguns passos ansiosos pela calçada ¾
até que sorriram e trocaram acenos discretos.

E depois, na carruagem fechada...
O sensual aproximar de corpos;
as mãos que se penetram, os lábios que se penetram.

Esses olhares refletem em linhas pontilhadas o desejo na esfera (in)consciente do ser direcionado ao Outro de uma forma nunca plenamente satisfatória, em função da impossibilidade de percebê-la: Χαρά é um ato – ou um fato, como preferirem – momentâneo. E Kaváfis tem plena consciência desse caráter tão intrínseco aos trinta e dois cromossomos, sejam eles gregos ou não. Humanos, pois.
A partir das atividades dos olhares atentos na poesia kavafiana, o indivíduo em seu caráter masculino-homoerótico é levado a fermentar sua exegese em âmbito amplo e restrito, geral e particular, tendo como âncora a estética epifânica e propositalmente omissa de fugazes e (i)legais prazeres.
Talvez se possa conjecturar uma singela semelhança estrutural de transpirações poéticas entre Luis de Camões, poeta português do século XVI e Konstantinos Kaváfis, o polidor de versos alexandrino de língua grega moderna do século XIX: ambos recorrem ao empirismo pessoal voltado ao prazer como dínamo para a busca de conhecimento interior que fomenta a chamada experiência hipotética. É tempo de pluralidade de verdades e de amores em sua esfera carnal, epidérmica e sensória para que sejam efetivados questionamentos, tentativas de resolução de dúvidas que emergiram na mente humana. 
A suspensão dos signos linguísticos, aquilo que a obra não diz, pode ser tão importante quanto o que ela venha a expressar, e o que está à margem, escondido ou maquiado, ambivalente ou dicotômico pode constituir o portão de entrada para a Troia do poeta. A obra pode observar não só o que o texto realmente diz – ou o que pretende dizer -, mas também o seu funcionamento, o seu modus operandi, as palavras que não são ditas, que são retiradas com excepcional frequência, duplicações e lapsos de linguagem – é a criação do subtexto, do subliminar poético. Assim, em cada simbologia do não-dito, Kaváfis expressa a sua tríade epidérmica – desejo, prazer e repressão.
“Por completo o ilegal prazer se deu” e “Ruído ou som de pedreiros não ouvi outrora, de mundos imperceptivelmente me excluíram”: a partir de trechos como esses, percebe-se que existe algo fora do lugar, fora de um centro voltado para uma espécie de δόξα – senso comum –, e a expressão do desejo. Este só não pode ser verificado porque somos colhidos por relações linguísticas, sexuais ou sociais, ou seja, em todos os campos do “Outro” que geram esse desejo. Há uma censura da agressividade burocrático-comedida impulsiva ou libidinosa, todavia aceitável em função da forma, do jogo verbal e do δαιμονισμένος textual – aquele que atua no processo de inspiração de linhas e expiração de entrelinhas pelos poros da caneta: “As miseráveis leis da sociedade (...) impediram-me de dar luz e emoção aos que são como eu”.
Uma mesa, uma cadeira, um quarto em um apartamento: tentativas de recriar o ambiente em que o poeta vivia na sua antiga residência, que hoje abriga o museu Kaváfis, na Alexandria do Egito. Antes, o poeta dividia o espaço do sobrado com um prostíbulo no térreo, onde, algumas vezes, podia vislumbrar jovens que a ele mais pareciam anjos em busca dos prazeres da carne. Muito escreveu Kaváfis sobre os prazeres do amor proibido, sobre o desejo entre iguais, de modo velado, na maioria das vezes, pois o tempo em que viveu não permitia a visibilidade. Todavia, sua poesia se construiu a partir de uma estética da subversão, que falava do proibido, reconhecia-o como tal e, ao mesmo tempo, exaltava-o.
O pensamento sonha, disse o poeta. Sonho é simbologia camaleônica, realização dos desejos inconscientes. E é através da roupagem da iconografia poética que o material é expresso – caso contrário, a objetividade impulsiva poderia ser chocante e perturbadora a ponto de desligar o receptor da área da ποιήσις, transportando-o para o campo ativo da πράξις. A simbologia precisa ser decifrada, todavia paulatinamente, em processos de metáfora – a condensação de significados em conjunto – e metonímia – deslocamento de um para o Outro, transposições de realidades de um εγώ, de um eu, para um υμεις, para um vós.
Um possível enfraquecimento da ordem simbólica é dado através da própria linguagem do semiótico em Kaváfis: não se trata de uma alternativa à estrutura de simbologias, à língua que poderia ser utilizada no lugar de um λόγος, de um discurso próprio – é um processo que ocorre dentro dos sistemas convencionais de signos do autor, cujos limites são possivelmente questionados e ultrapassados. Desse modo, as dicotomias pré-estabelecidas no sistema podem vir a ser desconstruídas: lícito e ilícito, adequado e inadequado, meu e teu, sadio e insano, obediência e autoridade nas quais uma sociedade baseia os seus princípios e seta, define os seus parâmetros.
Kaváfis se auto-recria por meio de uma veleidade expressiva de um polidor de versos mais forte: “para corpos covardes não foi feito prazer de tamanha intensidade.” É, para si mesmo, heroica e demasiadamente humano: por ter a humanidade dionisíaca, paradoxal em sua essência, que se permite auto-recriar em busca do verbo λύνω (soltar, desatar) presente nos libambos do Externo. É uma salvação por meio de letras ordenadas com alto poder de persuasão de si mesmo e do Outro apaixonante através do tom, do ritmo e do material valorizados. Desse modo, passa a haver a criação de um impulso no texto que ameaça romper com os significados sócio-metrificados existentes na esfera homossocial.
É assim que o poeta modela a chamada Influência Tranquilizadora de sua escrita, em que há um combate à ansiedade e à glorificação da ordem, do cotidiano vital e do prazer: Kaváfis é εραστής, ερωμένος – amante – e έρωτας – amado, mesmo em sua fantasia, em seu simbolismo do inconsciente, no imaginário (não impresso) expresso por seus silêncios.

Lembra, Corpo...

Corpo, lembra não só o quanto foste amado,
não só os leitos em que deitaste,
mas também os desejos que por ti
brilhavam nos olhos, claros,
e tremiam na voz – e alguma
barreira do acaso os frustrou.
Agora que tudo já é passado,
parece que àqueles desejos
também te entregaste - como brilhavam,
lembra, nos olhos que te fitavam;
como tremiam na voz, por ti, lembra, corpo.
        
Assim, a vida pessoal se torna matéria poética, elaborada, como faziam os Antigos, aqueles dos quais o poeta moderno nos falará em vários de seus poemas, velados ou nem tanto, mas com muita sensualidade, uma sensualidade misturada à lembrança das experiências eróticas evocadas, sentidas por uma memória que teima em se apagar:


Janeiro de 1904

Noites outonais de janeiro,
ao assentar-me e recriar com a mente
aqueles momentos e te encontrar,
e ouço as minhas derradeiras palavras e ouço as primeiras.

Desesperadas noites outonais de janeiro,
como escapa a visão e me deixa só.
Como foge e se desfaz célere –
todas as árvores,  ruas, casas,  luzes.
Apaga-se e se dissipa a tua erótica beleza.

Interessa-nos perceber como o poeta arquiteta a sua arte, trazendo um homoerotismo velado em muitos de seus poemas, denunciado simbolicamente apenas por uma gravata que é comentada, por um termo utilizado, pelo local em que se dá a troca de olhares. Não obstante, outras peças nos dão quadros completos, evidentes e vivos de momentos de êxtase, de tensão erótica, de respeito entre amantes.
No processo de amante-amado kavafiano, Mnemosýne é fundamental: o presente é constituído a partir de lembranças de um passado sem o qual a sua poesia perderia a essência. O παρών, o presente, está intimamente ligado ao παρελθόν, ao passado, em busca de reminiscências vitais a serem transportadas ao papel com ares, como o próprio autor menciona, de ilícito: são os apegos inquietos, o έρωτας, que são servos do impulso da suspensão de vida momentânea durante o processo do “ilegal prazer”: 

Inícios

Por completo o ilegal prazer
se deu. Do leito se levantam,
e com pressa vestem-se sem nada dizer.
Saem desunidos, escondidos, da casa; e seguem
assim inquietos pela rua, como se
temessem que algo neles denunciasse
em que tipo de cama há pouco deitaram-se.

Mas a vida do artista se enriquece
Amanhã, no outro dia, anos mais tarde, serão escritos
os versos fortes que tiveram aqui seus inícios.

As linhas e os silêncios kavafianos são fonte de hedonismo, tanto para quem emite a obra em gestos de liberação por poros quanto para quem as recepciona: é uma “estética da recepção” prazerosa para as duas extremidades: quem escreve também se auto-recepciona em doses homeopáticas de desejo poetizado todo temperado de arte. O διαφανής, o límpido impera.
Essa dinâmica do prazer e do desprazer politicamente forçado é investigada devido à repressão e ao adiamento do ato de satisfazer-se que um ποιητής (verbo ποιώ + sufixo τής), um poeta engajado em desconstruções de δόξα através de uma relação entre πράξις e ποίηση pode tolerar, já que a sociedade na qual ele é inserido desvia o desejo de finalidades consideradas moralmente aceitas para outras que o menosprezam e degradam. O desejo entre iguais é um exemplo: o homoerotismo é transviado para uma esfera falsamente exposta como promíscua e degradante, fora do normal, um “prazer ilícito, estéril, perigoso, doente”1.

Passagem

As tímidas coisas que o estudante imaginou
estão abertamente reveladas diante
dele. E busca e vela
e deixa-se levar. E como é
(para minha arte) verdade,
seu sangue, novo e quente,
o prazer que enleva. O seu corpo vence
a ilegal embriaguez erótica; e a juventude
se rende à sua brandura.

E, assim, um rapaz simples
torna-se digno de ser visto, de sua superioridade
o Mundo da Poesia um instante toma, este ¾
o sensual menino, com seu sangue novo e quente.

Os poemas kavafianos (de)mo(n)stram todo o lirismo presente no caráter humano desse Έρως, fazendo com que os sentimentos expostos borbulhem em nossa epiderme, ao degustar cada lição de poesia e desejo de um ser dionisíaco, em que corpo e mente se entrelaçam entre quartos, ruas e cafés – palavras de Fernanda Lima - , em um espaço homossocial, público, onde a intensidade do encontro de linhas pontilhadas oculares e corporais pode – e deve – ser efetivada.
A moral de Kaváfis reconhece, mas rechaça, as noções de dever, de consciência, de mérito e de erro em nome da imponência do prazer, da libido, do desejo em relação ao Outro dificultado pelas normas. É puro empirismo de Eros, de carnes mareadas pela cobiça, banquetes de regozijo servidos por Afrodite.
Ao passar a retina afiada pelas linhas do poeta, é visível que ele entregaria o próprio coração para ser mordido, quereria sair dos limites de sua própria vida como suprema crueldade, como disse Clarice Lispector. Os “apesar de” são introjetados nos constituintes de βουστροφέδον do seu sentir, as sombras com as quais conviveu passam a se mostrar, dizer que ocupam, sim, um lugar no kósmos e demonstram que ninguém se perderá no sistema vetorial de dar e receber prazer. Mesmo que em um ato glorificado de iluminação do eu.
Kaváfis ultrapassa a simbologia de um Zeus hesiódico, aquele que exerce um controle do homem nos seus transbordamentos e paixões – a poesia kavafiana apresenta uma ficção paidéitica às avessas. A covardia do corpo não pode ser tolerada. A mente que usa antolhos, rédeas e cabrestos, igualmente. É um constante ato de ηδονή άφθαρτη, de prazer imperecível da inseparabilidade entre moral e destino, de um futuro no qual o poeta confiou.
“Mas a vida do artista se enriquece. Amanhã, no outro dia, anos mais tarde, serão escritos os versos fortes que tiveram aqui seus inícios”. Que as alegrias e mirras kavafianas possam sempre transcender o gozo dos amores da rotina.


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1 LIMA, Fernanda Lemos de. “Entre quartos, ruas e cafés: imagens da poesia homoerótica de K. P. Kaváfis”. Rio de Janeiro: Nonoar, 2007. 

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