terça-feira, 1 de outubro de 2013

Miranda July: “Eu, você e todo mundo que a gente conhece”.

Talvez o que mais fascine no trabalho de Miranda July é uma certa divisão em dois momentos: no primeiro, o conto, ou o filme, ou a escultura faz a gente pensar “que coisa louca!” – e daí, quase sempre, seguem-se risadas e a impressão de bem, mas ninguém é/pensa assim – porém, conforme a gente vai lendo, ou assistindo o filme, ou olhando com calma a escultura, ou a foto que tiramos sobre, ou embaixo da escultura, a gente percebe que o que há de mais estranho e aparentemente louco tem eco fundo nas nossas sensações mais incômodas, nas que normalmente não gostamos de deixar à vista, e temos de admitir que somos/pensamos desse jeito, ou de um modo estranhamente parecido. É como uma fragilidade que emerge. E nos transforma. A partir de então, estamos acompanhados. Andamos por aí, aparentemente sozinhos, mas do nosso lado vai um falso documentário sobre como fazer botões. Vamos ao cinema, e tem uma moça buscando sua coreografia, e sem saber exatamente como faz e por que faz o que faz, com a gente. E quando acontece algo, que de novo mostra a vida ridiculamente bela, estranha, cruel, horrível, etc., de modo que nos sentimos forçados a descrevê-la para nós mesmos, mas não conseguimos! E, bem, estamos com ela, e podemos fazer um louco vídeo, ou uma pintura em que talvez você, ou talvez ela, ou alguém possa querer habitar.
         Aqui, um conjunto de traduções inéditas de materiais diversos: um conto de seu primeiro livro, No one belongs here more than you (lançado no Brasil pela Agir com o título É claro que você sabe do que eu estou falando), uma entrevista de quando ela montou a série de esculturas Eleven Heavy Things (Onze Coisas Pesadas) na Bienal de Arte de Veneza, e duas crônicas publicadas em The New Yorker. As traduções são assinadas por Lucas Matos. Grande parte da pesquisa foi feita por Clara Balbi, a quem agradecemos infinitamente.

*

A Equipe de Natação

Esta é a história que eu não te contei quando era sua namorada. Você insistia, perguntando e perguntando, e os seus palpites eram tão sensacionalistas e específicos. Eu fui mantida por um amante? Belvedere era como Nevada, onde a prostituição foi legalizada? Eu fiquei nua um ano inteiro? A realidade começou a parecer estéril. E com o tempo eu percebi que se a verdade soava vazia, o nosso relacionamento provavelmente não duraria muito mais.
         Eu não quis morar em Belvedere, mas não suportaria pedir dinheiro aos meus pais para a mudança. A cada manhã eu levava um choque ao lembrar que morava sozinha nessa cidade que não era nem uma cidade – de tão pequena. Eram só casas perto de um posto, e então um par de quilômetros abaixo, uma loja e fim. Eu não tinha carro, não tinha telefone, estava com 22, e toda semana escrevia para os meus pais e contava histórias sobre trabalhar num programa chamado L.E.I.T.U.R.A. Nós líamos para jovens em conflito com a lei. Era um programa piloto, financiado pelo governo. Nunca consegui decidir o que as letras L.E.I.T.U.R.A. significavam, mas toda vez que escrevia “programa piloto”, eu meio que me maravilhava com minha habilidade de bolar essas expressões. “Prevenção jovem” era outra das boas.
         Esta não será uma história muito longa porque o incrível sobre esse ano era que nada acontecia. Os cidadãos de Belvedere achavam que meu nome era Maria. Nunca disse que era Maria, mas de algum modo isso pegou e eu me sentia sobrecarregada com a tarefa de contar a todas aquelas três pessoas meu nome verdadeiro. Todas aquelas três pessoas eram Elizabeth, Queila e José José. Não sei por que José duas vezes, e não estou completamente certa do nome Queila, mas era algo que soava assim, e esse era o som que eu fazia quando queria chamar seu nome. Conhecia essas pessoas porque eu lhes dava aulas de natação. Aqui está o filé mignon da história porque é claro que não havia corpos d’água perto de Belvedere e nem piscinas. Eles estavam falando sobre o assunto na loja um dia, e José José, que deve estar morto agora porque ele era muito velho mesmo, disse que não tinha questão tudo isso porque de qualquer modos ele e Queila não sabiam nadar, daí eles estariam propensos a acabar se afogando. Elizabeth era prima de Queila, eu acho. E Queila era a mulher de José José. Eles eram todos octogenários, no mínimo. Elizabeth disse que havia nadado muitas vezes num verão ao visitar uma prima quando criança (obviamente não a prima Queila). A única razão por que entrei na conversa foi que Elizabeth afirmou que era preciso respirar debaixo d’água para nadar.
         Não é verdade, gritei. Eram as primeiras palavras que eu falava em voz alta em semanas. O coração disparou como se eu estivesse convidando alguém para um encontro. É só você prender a respiração.
         Elizabeth fez uma careta de raiva e então disse que estava brincando.
         Queila disse que ficava com muito medo de prender a respiração porque tinha um tio que morrera por ficar sem ar por muito tempo em um concurso Prenda-a-Respiração.
         José José perguntou se ela acreditava mesmo nisso, e Queila, Sim, sim, acredito, e José José disse, Seu tio morreu de derrame, não sei de onde você tira essas ideias, Queila.
         Então a gente ficou lá parado em silêncio por um tempinho. Eu estava apreciando mesmo a companhia deles e torci para que durasse mais um pouco, o que aconteceu porque José José disse: Então, você já nadou.
         Contei para eles de quando fui de uma equipe de natação no ensino médio, que competiu até em estaduais, mas fora derrotada logo cedo pelo São Vicente, um colégio católico. Eles pareceram muito interessados na minha história. Nunca tinha pensado nisso como uma história antes, mas agora eu via que era na verdade uma trama emocionante, cheia de drama e cloro e outras coisas de que Elizabeth, Queila e José José não tinham a mais breve notícia. Foi Queila que disse quem dera tivesse uma piscina em Belvedere, porque eles eram obviamente muito sortudos de ter uma professora de natação na cidade. Nunca disse que era uma professora de natação, mas entendi o que ela queria dizer. Era uma pena.
         Então uma coisa estranha aconteceu. Eu estava olhando pra baixo, meus sapatos contra o chão de linóleo marrom, e pensando aposto que esse chão não é lavado há milhões de anos e de repente senti que ia morrer. Só que em vez de morrer eu disse: eu posso ensinar vocês a nadar. E não precisa de piscina.
         A gente se encontrava duas vezes por semana no meu apartamento. Quando eles chegavam, tinha três bacias de água morna uma do lado da outra no chão, e então uma quarta bacia defronte a elas, a bacia da professora. Eu salgava a água porque supostamente é saudável quando entra água do mar pelo nariz, e deduzi que havia de entrar um pouco de água pelo nariz acidentalmente. Mostrei para ele como colocar as narinas e bocas dentro d’água e como respirar de lado. Então, acrescentamos as pernas, depois os braços. Admiti que aquelas não eram as condições perfeitas para aprender a nadar, porém, ressaltei, era assim que nadadores olímpicos treinavam quando não havia uma piscina por perto. Sim sim sim, era uma mentira, mas precisávamos dela porque éramos quatro pessoas deitadas no chão da cozinha, chutando ruidosamente, como se com raiva, como se furiosos, como se desapontados e frustrados, e sem medo de demonstrar. A semelhança com a natação deveria ser reforçada com palavras fortes. Queila levou várias semanas para aprender a colocar o rosto debaixo d’água. Tudo bem, tudo bem! Eu dizia. Vamos começar com uma prancha. Passei um livro para ela. É absolutamente normal resistir à bacia, Queila. É o corpo te dizendo que não quer morrer. Ele não quer, ela disse.
         Eu ensinei todos os nados que conhecia. O borboleta foi incrível, uma coisa que nunca se viu. Eu pensava que o chão da cozinha ia ceder e virar líquido, e lá iam eles, com José José na liderança. Ele era precoce, para dizer o mínimo. Ele se movia, na verdade, chão afora, bacia de água salgada e tudo. Chegava quicando de volta à cozinha por uma curva do quarto, coberto de suor e poeira, e Queila olhava para ele, apoiando-se em seu livro, e simplesmente se iluminava. Nade para mim, ele dizia, mas ela ficava assustada demais, e de verdade, requer muita força muscular nadar na terra.
         Eu era o tipo de professora que fica ao lado da piscina ao invés de entrar na água, mas estava ocupada o tempo todo. Se posso dizer isso sem ser imodesta, eu estava lá ao invés da água.  Eu fazia tudo seguir. Falava constantemente como um professor de spinning, e usava um apito a intervalos precisos para demarcar o fim da piscina. Eles faziam a virada em uníssono e prosseguiam para o lado oposto. Quando Elizabeth se esquecia de usar os braços, eu gritava: Elizabeth! Seus pés estão lá no alto, mas sua cabeça está afundando! E ela começava a dar braçadas loucamente, se endireitando com rapidez. Com meu meticuloso método de ensino mão na massa, todos os mergulhos começavam com a postura perfeita, posados na escrivaninha, e acabavam numa barrigada na cama. Apenas uma medida segurança. Ainda era um mergulho, ainda era ceder do orgulho mamífero e abraçar a gravidade. Elizabeth acrescentou a regra de que todos tinham que fazer um som ao cair. Era um pouco ornamental demais para o meu gosto, mas estava aberta a inovações. Eu queria ser o tipo de professora que aprende com os alunos. Queila fazia o som de uma árvore serrada ao meio, se a árvore fosse mulher. Elizabeth fazia “ruídos espontâneos” que soavam sempre iguais, e José José dizia, Olha a bomba! No final da aula, a gente se enxugava com toalhas, e José José apertava minha mão e ou Queila ou Elizabeth me deixava uma refeição, como um cozido ou um espaguete. Era essa a troca, e assim eu nem precisava arrumar outro emprego.
         As aulas duravam apenas duas horas por semana, mas todas as outras horas eram em função delas. Nas terças e nas quintas de manhã eu acordava e pensava: treino de natação. Nas outras manhãs eu acordava e pensava: nenhum treino de natação. Quando via um dos alunos pela cidade, digamos no posto ou na loja, dizia coisas como: Você treinou aquele mergulho com pirueta? E eles respondiam: Estou trabalhando nisso, Prof.!
         Sei que é bem difícil para você me imaginar como alguém chamada de “Prof”. Eu tinha uma identidade bem diferente em Belvedere, por isso foi tão complicado falar com você. Nunca namorei lá; não fiz arte, não era nem artista. Eu era totalmente uma atleta – era a treinadora da equipe de natação. Se eu achasse que isso pudesse de algum modo ser interessante, teria te contado antes e talvez a gente ainda estivesse junto. Faz três horas desde que dei com você na livraria com a mulher de casaco branco. Você já está completamente feliz e realizado, apesar de a gente ter terminado duas semanas atrás. Eu nem tinha certeza absoluta do término até te ver com ela. Você parecia incrivelmente distante, alguém do outro lado de um lago. Uma mancha tão pequena que não chega a ser homem ou mulher, ou jovem ou velho, é simplesmente um sorriso. De quem eu sinto falta esta noite? Elizabeth, Queila e José José. Eles estão mortos, eu sei. Que tristeza tremenda. Eu devo ser a professora de natação mais triste do mundo.

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Miranda com duas meninas na Bienal de Veneza. Os dizeres das esculturas: "A Culpada"; "A Mais Culpada"; "A Mais Culpada de Todas".


Entrevista publicada na Interview Magazine.

Miranda July ocupou um jardim na Bienal deste verão em Veneza, e fez do público uma parte complementar de suas esculturas. July, que se divide entre trabalhar como cineasta, atriz, artista performática e escritora de ficção, parece querer que sua obra faça parte da vida das pessoas – e espera que elas façam o mesmo favor de volta.

Observe-se o título de seu filme de 2005: Eu, Você e Todo Mundo Que a Gente Conhece (lançado em português como Eu, Você e Todos Nós). Ou de sua primeira coletânea de contos. Ninguém Se Encaixa Melhor Aqui Do Que Você (na tradução lançada pela Agir, o título ficou É Claro Que Você Sabe Do Que Eu Estou Falando). Claramente, Miranda July está tentando nos envolver em algo. Sua última tentativa, “Onze Coisas Pesadas”, na Bienal de Veneza com curadoria Daniel Birnbaum deste verão, é outro passo na direção de trazer o público para dentro da obra e também deixar a obra ser levada embora junto com o público (aqui na forma de fotografias). No pequeno jardim lateral da seção Arsenale do festival, a artista de 35 anos erigiu 11 esculturas de aço inoxidável e acrílico que foram projetadas especialmente para serem escaladas, para se posar sobre ou abaixo delas. Muitas das peças vêm com frases carregadas de July, como A CARA QUE FAÇO QUANDO ESTOU MENTINDO, ou NÃO NOS CONHECEMOS. ESTAMOS NOS ABRAÇANDO PARA A FOTO. QUANDO ACABAR, VOU SAIR DE FININHO. ESTÁ QUASE NO FIM. Parte da ideia era que o projeto só estaria completo nas fotos dos visitantes que foram até Veneza pela arte, e então trouxeram de volta para casa algum registro da obra de July. Nesse sentido, a artista é um meio de polinização criativa. July não quer que sua arte seja contemplada em silêncio, quer antes que ela ganhe uma vida nova, que respire junto com você, até te acusando às vezes de alguma indecência (note-se que há uma escultura que é um bloco branco com um pequeno furo, e sobre o bloco uma seta apontando para o buraco e os dizeres NÃO É O PRIMEIRO BURACO EM QUE ENFIEI MEU DEDO/NEM SERÁ O ÚLTIMO). Neste momento, July é uma mulher bastante ocupada. Ela está trabalhando no seu próximo filme, e em seu primeiro romance. Mas em uma tarde, durante o final de semana de abertura da Bienal de Veneza, a Interview se juntou a ela e convidou um grupo de pessoas presentes para posar para um ensaio exclusivo numa colaboração a-arte-encontra-o-mundo. Para “20 Questões”, de curadoria de Matthew Higgs, amigos e colegas da artista foram convidados a propor uma única pergunta a July. Aqui está o que eles perguntaram e o que ela respondeu.

1. Cindy Sherman: Qual a situação mais assustadora em que você já se colocou, diante de um público?

Miranda July: Nada que eu possa bolar nos dias de hoje é tão assustador quanto abrir shows de bandas punk, em bares, antes de qualquer pessoa saber quem eu era. Às vezes, o público ficava tão confuso, era tão pouco familiar para eles a ideia de “performance”, que eles ficavam enfurecidos e começavam gritar enquanto me apresentava. Eu me lembro de ficar buscando no meio da multidão os olhos uma mulher que parecia quem sabe entender o que eu estava falando. Eu fazia a performance para ela, era o que me fazia chegar ao final daquilo.

2. Spike Jonze: Por que nós estamos aqui?

Miranda July: Nós, humanos? Ou só eu e você? Nós, humanos, estamos aqui porque nada pode ser perfeito. Tem que ter sempre umas coisas vivas que estão insatisfeitas, se cutucando, se esforçando mais que o necessário. Se fosse tudo simplesmente animais e pedras e alface, os deuses iam sentir que não eles não têm mais o que fazer.

3. Dave Eggers: Como alguém que trabalha com diferentes mídias, quando você vê ou ouve alguma coisa que acha que pode usar numa obra de arte de algum tipo, você sabe automaticamente para que mídia vai destinar o material?

Miranda July: Normalmente, sim. Eu escrevo a ideia no meu computador e então eu ponho uma letrinha no canto da página e circulo. C para contos, R para Romances, F para filmes, A para Artes, P para Performances, N para negócios. Isso me faz parece muito rígida. Mas eu também sou bem divertida. Loucura total! U-huul!

4. Michel Gondry: Você estabelece um parâmetro para o quão clara a ideia, ou conceito, está sendo transmitida no seu trabalho, e você muda conscientemente esses parâmetros ao passar da arte para os filmes?

Miranda July: Eu tenho pensado muito nisso, ultimamente, conforme fico para lá e para cá, entre um romance, um roteiro, e criar esculturas. Parece que cada meio tem um grau diferente de refinamento, e o truque é saber honrar isso. A literatura é a mais refinada; é como trabalhar com as pequenas ferramentas de relojeiro. Então eu começo a trabalhar num roteiro, e eu sinto como se estivesse com luvas grossas e desajeitadas, mas luvas desajeitadas são boas para criar um movimento simbólico. E então arte – é como não ter mãos – é simplesmente deixar o mistério inarticulado. Que é uma forma de precisão própria, quando funciona.

5. Debra Singer: O que você fez no seu aniversário este ano?

Miranda July: Meu aniversário é em fevereiro, e eu estava numa região montanhosa, então eu acordei e a primeira coisa que eu fiz foi esquiar. Eu me lembro de decolar de uma altura considerável e me esborrachar bem fundo na neve, pernas e braços por todo lado, pensando: se ter 35 é assim, está tudo bem.

6. Daniel Birnbaum: Que horas são no sol?

Miranda July: Meio-quente em ponto.

7. Kate & Laura Mulleavy: Qual foi a última palavra que você apagou?

Miranda July: Meio-quente. Não sabia se levava hífen ou não.

8. Hans Ulrich Obrist: Você pode falar um pouco mais sobre seus projetos não realizados?

Miranda July: Eu, na verdade, não tenho um número grande de ideias supérfluas. Algumas vão se desenvolvendo bem lentamente ao longo dos anos, mas eu confio que todas as que me interessam de algum modo vão se tornar algo que eu acabe realizando eventualmente. Talvez isso seja ingenuidade, entretanto. Talvez, de fato, eu acabe sem nunca ter minha própria performance/programa de entrevistas de vanguarda na TV, que seria uma mistura de Frederick Weisman, Mister Rogers, e American Bandstand.

9. Khaela Maricich: O que você aprendeu nos últimos dez anos?

Miranda July: Eu dei um passo em direção a aprender como lutar. O tipo de luta em que eu escuto. Eu não concordo, mas eu escuto. E, quer você queira quer não, escutar muda você.

10. Harrell Fletcher: O que faz qualquer coisa – uma obra de arte, um filme, um livro, uma tigela de sopa, uma canção, uma caminhada – ser realmente boa, no seu ponto de vista pessoal? Talvez o que eu esteja querendo perguntar é se tem um conjunto de coisas que você considera boas, como a lista da frase anterior, tem uma qualidade que todas elas possuem e que faz com que você goste delas? Ou a qualidade é diferente caso a caso?

Miranda July: Eu acho que existem algumas qualidades intergêneros, mas a minha preferida é esta: Primeiro, você odeia a coisa. E então de repente você se expande, você cresce e o livro, a tigela de sopa, a canção, a caminhada, se tornam algo de valor – o primeiro exemplo do seu novo modo de ver, mais brilhante.

11. George Saunders: Por que arte? Por que escrever histórias, fazer filmes? Qual o propósito de fazer arte, no seu ponto de vista?

Miranda July: Acho que vou dar um salto total no escuro nessa e dizer que nós fazemos porque a vida é tão ridiculamente bela, estranha, cruel, horrível, etc., que nos sentimos forçados a descrevê-la para nós mesmos, mas não conseguimos! Não conseguimos! E então fazemos arte.

12. Jarvis Cocker: Você comparou a eleição de Barack Obama a uma primeira menstruação dos EUA. Você poderia desenvolver a ideia?

Miranda July: Eu estava tentando explicar como era ao mesmo tempo algo muito simbólico e muito real. Que nós o tenhamos elegido foi chocante para mim, e mudou minha percepção do futuro. Tive um sentimento de responsabilidade novo e emocionante. Realmente, não foi tão diferente de como me senti quando menstruei pela primeira vez, mas não mais uma coisa privada – agora como nação! Uma menstruação nacional. Mas eu não sei se a metáfora consegue se segurar por muito tempo... Nós queremos engravidar como nação? Cólicas? O.B.? Hã?

13. Chan Marshall: Se você fosse presa, qual seria o seu crime?

Miranda July: Eu vou responder literalmente: eu fui presa uma vez, quando eu estava com 18, por furto. (Oi, mãe!). Eu estava roubando um tubo de pomada antibiótica Neosporin; tinha escondido na minha meia. Quando o segurança agarrou o meu braço, eu fiquei aterrorizada que eu fiz me mijei toda. Eu estava usando um vestido, então foi tudo direto pro chão formando uma poça. Isso não fez com que eles parassem, no entanto. Fui levada para a delegacia, fichada, a coisa toda. Depois, eu comprei um picolé de laranja e sentei na sarjeta, comendo e chorando.

14. Matthew Higgs: Que pergunta você faria para você mesma?

Miranda July: A gente pode dar um tempo?

15. Carrie Brownstein: Que ritual diário que você faz que te deixa mais segura? E por quê?

Miranda July: Eu como um ovo toda manhã, e quando termino, eu quase sempre penso: Pronto. Agora mesmo que me capturem e eu passe fome, serei capaz de sobreviver com a proteína desse ovo por um tempo.

16. Monet Zulpo-Dane: Você está fazendo uma cápsula do tempo que vai enterrar no seu quintal e desencavar quando no aniversário de 90 anos. Quais são as 5 coisas mais importantes para colocar nela?

Miranda July: 1. A sensação de um dia normal aos 35. 2. Uma conversa entre mim e Mike [Mills] sobre o que fazer pro jantar. 3. Meus pais. 4. Meus dentes. 5. A cápsula do tempo que eu e você enterramos quando tínhamos 7 anos.

17. Lorrie Moore: Como você está se saindo com o italiano – e não estou falando do gondoleiro?

Miranda July: Molto Male.

18. David Shrigley: Qual é o seu insulto preferido, ou qual a sua interjeição obscena favorita?

Miranda July: Eu soltava “cacete” por aí um bocado, e fui me dar conta só recentemente que significava pênis. Para exclamações, “fodão”. Que acabei pegando de um amigo. Às vezes acrescento um “Senhor fodão”.

19. Jonathan Lethem: Se alguém te contasse que você teria de viver dentro de uma obra de arte, qual você escolheria?

Miranda July: Uma pintura de Mama Anderson chama Leftovers (Sobras). Dá para encontrar na internet. Três garotas num apartamento zoneado bacana. Eles parecem relaxadas; uma delas está nua.

20. Joanna Newsom: Por favor, diga uma coisa a que as outras pessoas pareçam dar muita importância, mas para a qual você não liga, bem como algo com que você se importa muito mas parece insignificante para os outros.

Miranda July: Parte 1: Álcool. Parte 2: Erratas de livros. Eu as coleciono desde que era menina, provavelmente porque meus pais administravam uma editora. Uma errata é uma folha de papel com uma correção anexada a um livro já publicado. É uma coisa bacana de colecionar porque não tem como você ir atrás delas, você simplesmente dá de cara com elas. Em 25 anos, eu só encontrei duas.

Leftovers, Mama Anderson

Visitantes em esculturas de Eleven Heavy Things, Miranda July (2009).


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2 crônicas

Atlanta (Publicada em The New Yorker em 11/06/2007).

Pelas manchas no colchão era claro que pessoas tinham morrido naquela cama, lentamente, durante o curso de uma vida. Que ótimo, pensei. Que maravilhoso fazer parte de uma história tão grande. O que eu faria nessa cama? Nesse quarto? Que fluidos liberaria? Eu procurava por pistas. Uma cozinha miniatura ocupava uma parede. Abri os armários e as gavetas, que estavam vazias, exceto uma que estava travada. Alguma coisa estava presa ali. Tive uma sensação boa, enquanto procurava como abrir. Essa coisa, o que quer que fosse, era importante. Ela me diria o que faze rem seguida. Isso pode soar um pouco como uma revisão româncita do momento, mas não. Eu sou supersticiosa hoje, e era ainda mais aos vinte e dois, parada no meu primeiro apartamento pela primeira vez. A gaveta abriu com um Bum. A coisa era uma fita. Era “A Trilha Sonora Original” do filme do 007 “Contra a chantagem atômica”. Eu olhei para a figura na capa do álbum com dois homens lutando debaixo d’água, e o meu coração disparou como uma explosão atômica. Levantei rapidamente, e a o sangue fluiu para a minha cabeça, como uma explosão atômica. Eu sabia o que tinha que fazer; era palpável e inevitável, como uma explosão atômica. Eu tinha uma trilha sonora; agora tudo que eu precisava fazer um filme para ela.
         Para este, meu primeiro filme, fui buscar inspiração naquele verão. Era 1996, e as Olimpíadas estavam acontecendo em Atlanta. Eu morava em Portland, Oregon, mas, como Atlanta, na minha cidade fazia calor. Especialmente em meu novo conjugado quase sem janela. Eu ficava todos os dias de biquíni e não podia imaginar vestir outra coisa mais. Então o filme se centrava em uma entrevista com uma nadadora olímpica de doze anos e sua mãe ultra exigente e acamisolada. Eu fiz os dois papéis, apertando “Record” numa câmera emprestada e então correndo pra frente das lentes e improvisando respostas para um entrevistador invisível. Fiz umas cenas em locação num A.C.M. Cenas da piscina com a jovem nadadora se aquecendo antes de entrar na água. (Para falar a verdade, eu não sabia nadar). As gravações duraram mais ou menos três dias.
         Adicionei a trilha sonora colocando para tocar a fita de “Contra a chantagem atômica” enquanto a câmera rodava. Escolhi a faixa 06 do lado B, “Mr. Kiss Kiss Bang Bang” [N. do T.: algo como Sr. Beijinho Beijinho Tchau Tchau]. Eu nunca vi “Contra a chantagem atômica”, então na minha cabeça essa música maravilhosa de John Barry só podia fazer par com meu retrato de uma mãe fazendo uma inapropriada dancinha indecente para sua filha pré-pubescente.
         Alguém tinha me dito que havia uma máquina de edição de vídeo no porão da biblioteca da Faculdade Reed. Eu não era uma aluna da Reed – tinha acabado de trancar a U.C. Santa Cruz no ano anterior – mas consegui adquirir uma carteirinha de estudante da Reed fora da data de validade. A estudante a quem ela pertencera meio que parecia gostar de mim, no sentido de que ela também estava provavelmente dando uma chance ao lesbianismo e tinha cortado todo o cabelo. De qualquer modo, ninguém nunca usava a máquina, e eu raramente tinha que dar uma carteirada ao passar pela recepção.
         Como eu queria que eu tivesse me dado ao luxo de comprar uma VHS em branco para o corte final. Não tinha nenhum interesse pela qualidade do registro na época; estava muito feliz com minha engenhosa reciclagem de uma fita que tinha pego na Goodwill. Portanto, quando meu curta acaba, o vídeo faz um chiado até voltar ao filme em cima do qual eu tinha gravado: “Super-Homem”. Meu público muitas vezes reclamava quando eu tentava desligar o aparelho nessa hora, então acabei assistindo “Super-Homem” de novo e de novo, menos as coisas do início sobre Krypton. Em tempo, meu filme era a história da origem do Super-Homem.
         Uma noite bem tarde, eu saí desabalada da biblioteca Reed com meu filme pronto nas mãos. Sorria condescendente para os alunos no foyer e passei direto por eles e caí na noite. Finalmente. Finalmente. Não era mais só um amontoado rebelled de esperanças. Eu tinha prova concreta que me dava suporte. Era como um novo diploma, mas mais rápido; como um emprego, mas mais divertido; como um amor, mas para sempre. Com dez minutos, o filme fica com uns cinco minutos em excesso. Eu o chamei de “Atlanta”.
         Neste verão, estou escrevendo meu segundo longa-metragem. Parece muito mais difícil dessa vez, com toda a pressão, real e imaginada, e é fácil sentir que tenho ficado menos livre devido ao excesso de trabalho, que é tudo morro abaixo desde “Atlanta”. Mas vendo de novo, pela primeira vez em anos eu me dei conta de que esse filme, feito com nada e para ninguém, é todo sobre pressão. A personagem principal está competindo nas Olimpíadas; ela vai tentar a medalha de ouro, e está com doze. Ela ainda não fez nada na sua vida inteira a não ser treinar para esse momento. O que ela não percebe é que esse momento vai vir de novo, e de novo, e de novo.


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É tudo FREE (Publicada em The New Yorker em 10/10/2011).

Não lembro a primeira vez que fiz, mas lembro a primeira vez que me pegaram fazendo. Eu era uma caloura na U.C. Santa Cruz, a loja se chamava Zanotto’s, o produto era Nosporin. Tirei da embalagem, me agachei como se para coçar o tornozelo, e prendi o tubo da pomada com triplo-antibiótico na minha meia soquete branca. Quando o guarda agarrou meu braço, fiquei tão assustada que mijei no chão. Enquanto esperávamos a polícia chegar, tive que ver o zelador lavar meu mijo com um esfregão. Fui levada até a delegacia e formalmente presa: digitais, foto 3x4 – eles realmente queriam ensinar uma lição àquela punk vestido-transparentosa de 19 anos. A lição que aprendi era agora que eu era legalmente maior de idade não precisava me preocupar com os meus pais serem avisados. Eu estava livre – até os meus crimes não pertenciam só a mim.
         Com o tempo, me aperfeiçoei. Descobri que furtar requer uma energia casual, dispersa, uma espécie de unidade com o ambiente, como surfar ou treinar cavalos. E uma vez que eu sabia como fazer, me sentia com uma estranha obrigação. Lembro de me sentir culpada por não furtar, como se eu estivesse desperdiçando dinheiro. Depois que tranquei a faculdade e me mudei para Portland, Oregon, tornou-se parte do meu sustento. Eu olhava para a minha lista de compras como uma dona de casa estressada, deliberando sobre quais produtos roubar e quais comprar com tíquetes para comida. Minha bolsa preferida era gigante e discretamente rígida, como uma pasta. Eu a recheava com pedaços de queijo, pães, e muitos produtos de soja, porque era vegetariana.
         Mas não era uma questão de supermercado – o mundo inteiro era um assalto gigante. Desnecessário dizer que eu usava ímãs para apagar meu cartão de cópias Kinko até zero, e carregava tesouras comigo para tirar as etiquetas das roupas. Todo mundo que eu conhecia fazia essas coisas. Não uso isso como desculpa, mas só para que você visualize uma legião de enérgicas e inteligentes jovens criminosas. A qualquer hora que um conhecido nosso visitava Portland a gente pressionava para que ele pagasse seguro-bagagem e nos deixasse roubar sua mala da esteira rolante. O amigo visitante então tinha que atuar no papel de queixoso e registrar o roubo para receber um bocado do dinheiro do seguro. Alguns amigos topavam; outros achavam que era falta de hospitalidade pedir algo assim.
         Meus primeiros empregadores em Portland eram da Goodwill, que, sim, é organização de caridade, e, não, eu não tinha nenhum problema com empurrar livros, roupas e enfeites para dentro da bolsa. Por que o que é o dinheiro, afinal? É só um conceito que um babaca forjou. Eu também colocava etiquetas vermelhas de vendido em eletrodomésticos e mobílias inteiras para a sala de estar, e me sentia magnânima quando minhas amigas animadamente empacotavam suas vans. Um dia, uma colega estava admirando uma blusa rosa que tinha acabado de chegar. Eu a encorajei a pegar, e quando ela se negou, botei a blusa numa bolsa da Goodwill e saí correndo da loja gritando: “Senhor! Senhor! Você esqueceu sua bolsa!”. Então, escondi a sacola nos arbustos. Na hora de fechar, eu pesquei de volta com um distraído “Mas o que é isso?” e passei para a minha colega regrada. Regrada e ingrata, no fim das contas. Fui chamada no escritório do chefe na manhã seguinte; a blusa rosa estava em cima da mesa. “A boa notícia é que não vamos dar queixa”, ela disse. Chorei enquanto andava sobre o rio até o lugar em que minha namorada trabalhava dando banho em cachorros. Eu nunca tinha sido demitida antes. Foi bem parecido com trancar a faculdade ou ser presa. Todas essas instituições, de uma forma crua e um pouco desajeitada pareciam dizer, Você não precisa de nós, nós nunca vamos entender você, e é muito importante que não espere isso de nós.
         Levei a mensagem a sério. Trabalhei obsessivamente em buscas criativas que elas jamais reconheceriam, passando batido por sistemas e hierarquias como se nada que já existisse fosse relevante para mim. Fiz performances em faculdades e examinava nas salas o que eu poderia levar. Até uma caixa de giz, colocada no meu bolso me reassegurava que eu ainda tinha minha liberdade – a liberdade de roubar, de me autodestruir, de arruinar tudo.

         Teve um momento preciso em que eu decidi desistir. Estava sentada no colo de um cara e a gente tinha acabado de determinar que eu era “sua garota”. Quando nos beijamos, pensei, Bem, quem sabe eu tenha que parar de roubar agora. Como se a ideia de ter um namorado, de ser hetero, exigisse que eu me normatizasse em outros sentidos. É possível que estivesse procurando uma desculpa; é possível que eu tenha me dado conta que não preciso ser criminosa para ser uma artista. A própria arte pode ser o crime – pode ser assustadora e perigosa o suficiente para ombrear minha revolta. Depois de um tempo, também parei de entrar em brigas, trabalhar em peep shows, tingir meu cabelo de branco, e usar meias-calças sobre os sapatos. Ainda assim, durante muito tempo pensei que meu grande golpe era levar todo mundo a acreditar que era uma cidadã honesta, uma menina doce. Então, só há um par de anos atrás, que percebi que todo mundo se sente secretamente fraudulento. É a sensação de ser um adulto.

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