terça-feira, 28 de maio de 2013

Filmes de espiões, domingos no parque, 3 contos – Lucas Matos.

Lucas Matos, por Thiago Gallego

Quando conheci Lucas Matos, ele era meu professor substituto de redação. Então tinha dessas coisas que acontecem quando você está na escola: chegar atrasado; chegar pontualmente e dormir; chegar pontualmente e pensar em por que, independente de qualquer risada ou abraço, você se sente tão sozinho naquela sala. Enquanto isso, o professor substituto de redação lia algo sobre um cego no museu que, sendo cego, via Renoir, Van Gogh e o resto pelas descrições do amigo.

O irônico é que mais tarde fosse o ex-professor substituto de redação ser ao mesmo tempo tão amigo e tão mentor (breeega - exclama a torcida). Daí sai que quando leio Lucas, sempre a impressão de que ali tem algo inevitável, que vi surgir, junto com a admiração surpresa ao que sequer imaginava existir. Feito coisa que, embora eu não veja, ele insista: o filho do carteiro tem olhos azuis muito abertos, como que assustado.

*



dizendo domingo no parque (com remix augusto_dos_anjos_avassalador) no encontro Bliss não tem bis (Nov/2012)

começou com a ideia de fazer uma colagem. se não me engano, eu estava lendo na época um ensaio do haroldo de campos sobre o kurt schwitters. e ficava pensando como seria sair colando um no outro os versos que estivessem rondando, ou rodando pela minha cabeça no momento. peguei o título e os personagens de uma canção do gil (a primeira gravação – clássica, antológica – está no disco gilberto gil de 1968), partes da estrutura de um poema da angélica freitas (ver o epílogo da série com gertrude stein lá no rilke shake), uma paródia de uma imagem do drummond (ver o morte do leiteiro, no a rosa do povo), e um sintagma nominal do poema de que mais gosto da ana c. (ver aquele que começa com ‘olho muito tempo o corpo de um poema’, lá no cenas de abril). e daí o poema seguiu mais ou menos como aqui embaixo e foi publicado na bliss. isso em 2009. depois comecei a pensar em como o poema funcionaria ‘ao vivo’ e ‘falado’, diferentemente de na página. muita água rolou debaixo dessa ponte, e em 2012, na hora de apresentá-lo no encontro bliss não tem bis, realizado em parceria com a coart na uerj, eu achei que cabia mais coisas na colagem e fiz um domingo no parque (com remix_augusto_dos_anjos_avassalador). fiquei entre divertido e espantado de ver como as coisas pareciam funcionar. e acabei optando por considerar uma descoberta o fato de que se algum poeta merece a alcunha de avassalador, só pode ser mesmo o augusto dos anjos. no dia em que calhou de eu estar num estúdio – para gravar material para um outro projeto que estamos tocando – eu acabei fazendo uma nova versão de áudio (essa que está logo acima) inserindo novos textos. e desde então fico brincando com outras possibilidades, e com a própria maleabilidade da colagem, que vai recebendo outras dinâmicas e intervenções, crescendo em sentidos distintos, como se pudesse receber várias vozes e fragmentos de textualidades diversas. o que importa é ver até onde vai, antes de espedaçar, e talvez espedaçar, para tentar colar de novo, e ficar indo e voltando nesses passos/espaços que o poema cria.

Domingo no parque

os três na sala de espelhos
josé é joão é joão é josé
os três estão de costas
os três estão de quatro
de longe não dá pra ver
os três estão de bruços
os três estão de braços dados
os três estão onde estão
onde estão eles beijam

juliana estala um chicote e diz
muito zangada não me deixem pra trás
não me deixem de lado
eles ficam onde estão
onde estão eles beijam

na saída alguém bate uma
foto dos três
entre cacos de espelho
e o leite derramado

um filete de sangue no chão

*

Esse Cara



o poema abaixo é, na verdade, junção de dois que pertencem a uma série chamada esse cara. fiz um título para apresentá-los juntos. a imagem é uma colagem de um anúncio com o sean connery, em seus filmes de agente espião very macho man, e o rosto da clarice lispector. eu gostaria de dedicar a postagem do poema aqui à memória de aaron schwarz.–

Em que se narra as aventuras de Silas, cujo nome não sabemos ser verdadeiro ou falso porque se trata de um agente secreto, e tudo na vida de um agente secreto é segredo, e o que acontece quando ele é encarregado de assassinar a mulher que matou os peixes, mas não sabemos se, de fato, ele foi encarregado de assassinar a mulher que matou os peixes, nem se, de fato, alguma coisa acontece, porque se trata de um agente secreto e tudo na vida de um agente secreto é segredo.

mas me informaram
que hoje em dia
graças a deus
vivemos na era da informação
isso porque hoje
a informação chega rápido
a informação chega em grande quantidade
a informação chega de todos os lados
agora
há muitas coisas
que hoje chegam rápido
que hoje chegam em grande quantidade
que hoje chegam de todos os lados
e que parecem com uma informação
e que estão vestidas de informação
e que se apresentam como uma informação
(olá eu me chamo informação qual o seu nome?)
mas que são qualquer coisa
assim como um chiclete

não me levem a mal
eu gosto de chicletes
eles são bons pra mastigar
eles são bons pra fazer bolas
eles são bons pra prender nos cabelos das garotas
pra grudar debaixo de mesas e cadeiras
chicletes são bons
acontece que os chicletes
mastigados perdem o docinho
fácil fácil
e fazem a clarice lispector escrever
sobre coisas complicadas
assim como o infinito
não me levem a mal
mas eu não sou a clarice lispector


na era da informação
as pessoas criaram agências
agências que trabalham
pra divulgar arquivar circular produzir
falsificar e barrar as informações
as agências de informação
podem ser públicas privadas ou secretas
as agências de informação públicas assim como as privadas
servem para informar de modo claro objetivo imparcial
qualquer um sobre assuntos de interesse geral
como a constituição das modelos e dos famosos dieta peso tamanho das partes do corpo, etc.
ou as leis do mercado para abrir um negócio de sucesso com receitas para quem está só começando
ou eventos espantosos do jogo do flamengo no sábado e dos últimos lançamentos
                                                                                                     [de produtos de alta tecnologia

as agências de informação públicas assim como as privadas
às vezes apresentam problemas
com a descarga
e certas informações acabam retidas
porque prejudicam interesses importantes
ou interesses de pessoas importantes
por isso existem agências secretas
as agências secretas trabalham
com informações que não devem
ser de conhecimento geral
são informações importantes
que devem ser conhecidas
somente por pessoas importantes
e as agências secretas se encarregam
de impedir que as informações importantes
se misturem com as outras
que chegam rápido
que chegam em grande quantidade
que chegam de todos os lados
e as agências secretas se encarregam
de impedir que as informações importantes
se misturem com chicletes
de outro modo qualquer um poderia
mastigar informações importantes
qualquer um poderia prendê-las
nos cabelos das garotas
ou grudá-las debaixo de mesas e cadeiras
e isso seria contra as regras
da escola da associação de moradores da polícia
e isso seria uma ameaça à segurança
nacional à segurança mundial à segurança da vovó

silas, por exemplo,
trabalha numa agência secreta
mas é melhor você pensar que não trabalha
mas é melhor você pensar que silas não é seu nome
mas é melhor você pensar que silas não existe
mas é melhor você pensar que cia é o nome de uma marca de chicletes
porque tudo numa agência secreta é
segredo
a não ser para pessoas importantes
que precisam saber informações importantes

a distinção entre informações
de interesse geral e informações importantes
é como a distinção entre pessoas
importantes e qualquer um
pessoas importantes normalmente têm pressa
pessoas importantes são sérias e não mascam chicletes
pessoas importantes se você pedir com jeitinho
usam um chapéu escrito importante
sem achar tão ridículo assim
pessoas importantes principalmente
têm formas de conseguir informações importantes
e são bem poucas segundo as pesquisas

pesquisas comprovam que
pesquisas comprovam
pouquíssimas coisas
pesquisas comprovam que
pesquisas pesquisam
pesquisas pesquisam
então por exemplo
se a mulher que matou os peixes
está mesmo morta
ou se os peixes mortos e
a mulher viva
ou os peixes mortos-vivos e
a mulher farta dizendo ok
eu só tenho mistérios
eu sou a agente 00gênero

pesquisas pesquisam
então por exemplo
por que os filmes de james bond
já não fazem tanto sucesso hoje
como nos tempos em que a cia
estava ocupada em
armar assassinar torturar
estava ocupada em ensinar a
armar assassinar torturar

mas hoje graças a deus
vivemos num mundo globalizado
você não precisa ser os estados unidos da américa
para adquirir o seu próprio agente secreto
mas hoje graças a deus
vivemos num mundo globalizado
você não precisa ter uma dívida com o fundo monetário internacional
para praticar de casa vodoo economics
mas hoje graças a deus
vivemos num mundo globalizado
você não precisa ser a união das repúblicas socialistas soviéticas
para ter os seus próprios silos de mísseis
mas hoje graças a deus
vivemos num mundo globalizado
a cada dia silas
ou qualquer um como silas
está diante da mulher
que matou os peixes
que recebeu ordens de
armar assassinar torturar

pesquisas comprovam que
pesquisas comprovam
pouquíssimas coisas
pesquisas comprovam que
pesquisas pesquisam
pesquisas pesquisam
então por exemplo.

segundo fontes pouco confiáveis, esta é uma foto de silas disfarçado de lucas matos disfarçado de banheiro do circo voador disfarçado de show da orquestra imperial disfarçado de disfarçado


*

3 Contos.

isto não é um autor. (ceci n’est pas un freudisme)

Conto.

Eu uma vez conheci um casal de atores que trabalhava na Rede Globo de Televisão.
E quando ele queria elogiar a empresa, ele dizia que a Rede Globo era como uma mãe.
E uma amiga da minha época do colégio casou com um concursado da Petrobrás.
E quando ele queria elogiar a empresa, ele dizia que a Petrobrás era como uma mãe.
Agora, eles nunca mencionaram um teste de DNA.
Agora, eles nunca mencionaram qual dos nucleotídeos era o preferido.
Guanina, Adenina, Timina, Citosina.
Então, quando eu era criança, eu fui proibido de ver telenovelas.
Minha mãe era como uma empresa onde eu trabalhasse
E achou que a minha produtividade infantil diminuía
Se eu perdesse tempo ocupado com
O Edson Celulari transformando a Giulia Gam em ouro.
A gente morava numa vila da Tijuca onde a área dos fundos das casas vizinhas
Era contígua uma a outra. E em cima da nossa área tinha uma telha
Para proteger da chuva, do vento, do que quer que ameaçasse
A produtividade das crianças. A telha ficava logo abaixo da janela do meu quarto.
E eu combinei com a vizinha e toda noite eu pulava a janela
Eu pulava a janela toda a noite e ficava encima da telha
A vizinha assistia à novela e durante os intervalos ia para a área
Me contar o que tinha acontecido em cada bloco.
Então, quando eu era criança, eu preferia cair, porque gostava de ficar com o joelho ralado.
Então, eu tinha algo para mostrar para os outros.
Então, eu tinha algo para impressionar as garotas.
Mas às vezes elas simplesmente diziam:
Olha, eu sei que você é um homem muito ocupado.
Eu não quero tomar seu tempo. Mas às vezes elas simplesmente diziam:
Plim-Plim. Mas às vezes elas simplesmente diziam:
Houve uma reestruturação no seu setor. Não estamos contratando no momento.
Eventualmente, eu ficava triste porque a vizinha tinha muito sono e péssima memória.
E eu ficava com fiapos de telenovelas que nunca encaixavam direito uns nos outros.

*

Outro conto (com algumas coisas de Yoko Ono).

Quando eu estava crescendo era comum que eu brigasse com uma das minhas irmãs, ou que elas brigassem entre si.
A minha mãe não gostava disso.
Então, ela desenvolveu uma técnica que sempre fazia com que a briga parasse.
Primeiro, ela tentava simplesmente ordenar. Algo como “parem de brigar”. E podia ficar nisso um tempo, até se irritar e gritar. E então éramos três gritando. E gritando como se fôssemos muito mais.
Gritar nunca foi a minha coisa preferida, mas às vezes você pensa que não tem outras opções. Eu gostaria de saber por que os homens podem levar tudo a sério. Eles têm esta delicada e longa coisa suspensa para fora de seus corpos, que sobe e desce por vontade própria. Humor é provavelmente alguma coisa que o macho da espécie descobriu pela sua própria anatomia. Mas os homens são tão sérios. Então, ela ficava exasperada, realmente exasperada porque todo mundo pensa que mãe dá ordens e que ordens são coisas que são obedecidas, e é compreensível que alguém fique um pouco ou mesmo muito frustrado quando dá uma ordem e nada ou ninguém obedece. A não ser que a pessoa se exercite nisso para perceber o quanto algo como uma ordem pode ser enlouquecedor. Tipo tente dizer todo dia para o vento: “pare de ventar”. Ou para o pensamento: “pare de correr”. Tipo tente fazer todos que te conhecem e todos que não te conhecem e todos que não vão sequer ter a chance de te conhecer passarem a te chamar de King Lear.
Quando atingia o ápice da irritação e frustração, ela tirava a blusa. E em seguida o sutiã. E ficava ali, com os peitos de fora.
Eu não sei se você já tentou seguir brigando com alguém enquanto uma terceira pessoa se despe ao lado. Você pode fazer a experiência: convide alguém para brigar e uma outra pessoa para subitamente ficar sem roupa. Anote o que acontecer.
Ela repetiu isso várias vezes porque tinha uma época em que nós brigávamos muito, sempre com os mesmos resultados. Talvez pudéssemos adotar a tática para situações de conflito: treinar exércitos de pessoas desarmadas para irem a um campo de batalha se despir. Fazer dos policiais pessoas que diante de um crime se fizessem nuas.
Tem essa comédia antiga em que as mulheres tentam acabar com a guerra acabando com o sexo, mas é o contrário.
Algum dia todos vamos evaporar juntos.

*

Conto final (com algumas coisas de Laurie Anderson).

ultimamente, eu venho pensando nas coisas que deixo de fazer.
por algum motivo, em algum ponto da vida, elas superaram as coisas que faço – em níveis percentuais.
admito alguns fracassos.
primeiro, admito alguns fracassos seria o título do meu reality show predileto.
então, toda semana, qualquer um, um dentista, um chofer de caminhão, uma cantora pop, uma presidenta da república, ou a isabela – que na sétima série chorava no banheiro do colégio por causa de acne, e hoje ocupa um cargo público importante para o sistema judiciário.
então, buenas noches señores y señoras. bienvenidos. la primeira pregunta es: ¿quién es más macho, abacaxi ou faca? la segunda pregunta: ¿ qué es más macho, lâmpada ou transporte escolar? e cada um falaria de uma cagada ou outra. sem maquiagem, sem música de fundo, sem a crença de que é tudo coisa do passado, vamos relaxar e respirar ar puro agora. gracias. a gente volta depois dos comerciais.
quando eu tinha quatorze anos eu peguei otite e pensei “só pode ser aids”. eu nunca tinha feito sexo. eu nunca tinha compartilhado seringas. eu nem tinha me masturbado até ejacular. bem, eu tinha um sonho e nele eu ia para uma cidade do interior e todas as garotas na cidade se chamavam betty.
as aulas sobre suores noturnos e gânglios inchados tinham deixado uma impressão forte sobre mim. os murmúrios de aidéticos cuspindo nas suas retinas, costurando armadilhas nas poltronas dos cinemas, também. eu estou de volta a quando eu era uma criança, de volta a bem antes quando eu era um bebê, quando eu era um embrião, uma manchinha, um ponto só. quando eu era uma barra de chocolate garoto no bolso de trás do jeans do meu pai. eu não era bem informado.
ninguém gosta de ouvir quando alguém insiste em falar sobre sonhos ou memórias embaraçosas, o que é quase sempre a mesma coisa. eu também prefiro piadas.
a saúde precisa de silêncio.
a saúde precisa de fotos de enfermeiras brancas com batom vermelho e os indicadores sobre os lábios. ei, olha lá. bem ali. é o antonio carlos jobim sentado numa cadeira. e ele está soprando anéis de fumaça perfeitos no ar. e ele está cantando: céu, tão grande é o céu e bandos de nuvens que passam ligeiras. toda vez que eu vejo esses anéis de fumaça penso que você está ali. 
ultimamente, eu venho pensando nas coisas que deixo de falar.
eu não gostei do que você fez, ou eu vejo um iceberg e lembro de você.
eu não te quero mais e ainda sinto ciúmes, ou eu vejo anéis de fumaça e penso que você está ali.
eu te odeio, ou eu te odeio.
eu queria saber o que você achou, ou eu queria saber por que sempre acho que você não gosta de mim.
olá.

*


terça-feira, 21 de maio de 2013

“Seus olhos se escondem ou sou eu que te procuro?” – Clarissa.


Clarissa por Marcio Junqueira.

Ela faz aniversário hoje. Ela é carioca, de Gêmeos. Ela fez Letras. Mas antes fez Cinema. Depois um Mestrado sobre revistas de poesia da década de 70 no Brasil e uma especialização sobre edição de livros. Na oficina do Carlito, ela era supercrítica. Tinha um olho/ouvido bom para imagens enigmáticas. Uma vez ela levou um poema que tinha questões de diagramação e eu achei: ok, legal. Depois ela apareceu com outros, muito diferentes, com uns cortes inusitados e conversas cifradas e eu comecei a prestar atenção. Foi ela quem convidou a mim e ao Lucas para a festa de aniversário – no Loreninha? – em que inventamos isso que temos vivido. Ela me parece a mais segura de nós três. Os poemas dela são bastante visuais. Tanto em relação à construção quanto às referências que invoca. Ela é dos amigos quem eu acho a melhor companhia para visitar uma exposição. Junto com ela me apaixonei certa vez por Carlos Contente e Rosana Ricaldi, no CCBB. Com ela estive pela primeira vez: dentro de um penetrável de HO, na prainha, na PUC-RJ, no Méier, num Chá da Alice, e no Instituto Moreira Salles. Ela tem muito interesse no objeto livro. Da construção à comercialização, passando por questões ontológicas e de diagramação. Ela sempre faz belos cadernos artesanais para os amigos (meu atual diário é um deles) e se imagina coroa, dona de uma editora em Paraty. Ela tem os pais mais tietes que eu conheço e quase uma centenas de parentes gaúchos sobre os quais ela conta (ou inventa?) histórias. Ela pode exasperar quem espera um e-mail dela.
Ela é a poeta da semana.


*



As fotos de Sontag

Não sabia: foto é beijo com direito a abraço apertado. Dependendo do foco, é a possibilidade do beijo em eterna rotação.

*

Aceso plano

Meu papel em branco abarrotado de ideias suspensas

Já foi caderno já foi tela já foi muro já foi ponte

Hoje é meu teto onde gira o ventilador

(a parede, a mesa, superfícies planas)

É quando cai o vento sobre mim


*

Estudo 2 (poema-tela. caneta sobre papel. 2007).

*

Cena 1

A paixão é um estado de urgência no qual só escapam os gatos.

Ela vem subindo a reticência e depara com aflição de ter conquistado e de ter perdido.

Ela debruça a maldade na mentira e quando atravessa a avenida vê o mascarado.

Ela deturpa a ação e no caos do amanhã pendura um jaleco velho e amarrotado.

Ela causa estrago e de estilhaços no vidro do carro sobrevive o dia após o outro.

Ela que nasceu da primeira camada e palpitação do que é sentir e respirar, vira a cara.

Ela distancia as virtudes e causa as maiores discussões quando passa do meio-dia.

A paixão é um estado de urgência que mata os gatos, as palavras e os homens.

*

Sol laranja

Para Iberê Camargo

Não é possível ver o sol
Nem sempre quando posso
Realmente visitar você não é te encontrar
Pouco com o tempo ouço
O som do trilho de Santa Teresa
Esse som cotidiano

Amor que volta, trepida
Já andamos por essa curva
Já construímos essa casa
Já bebemos dessa cor
Não sei, mas esse sol laranja
só me lembra você

*

Clarissa Freitas & Marcio Junqueira num penetrável de HO no Centro de Arte Hélio Oiticica, RJ


*

DUELO, ELO: POLEM
Para Lucas, Márcio e Marília


O encontro com as revistas de poesia não costuma ser espontâneo, objetos circulantes de poucos espaços e espaços para grupos restritos. Entretanto, não se nega a importância dessas joias raras, mais raras quando pensamos a produção poética de 70. Essa década contempla um surto de publicações, relíquias para muitos, e é impossível não citar Leminski nessa hora de apresentação:

“Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente. São revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromático de uma Navilouca? A força construtiva de uma Polem, Muda ou de um Código? O safado pique juvenil de um Almanaque Biotônico de Vitalidade? A radicalidade de um Pólo Cultural/Inventiva, de Curitiba? A fúria pornô de um jornal Dobrabil? E toda uma revoada de publicações (Flor do Mal, Gandaia, Quac, Arjuna), onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovela em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada”.
        
O trecho retirado de um artigo do poeta Paulo Leminski intitulado O Veneno das Revistas de Invenção coloca para o leitor diversos títulos de periódicos ressaltando uma voz possível para os poetas num período complicado para publicação devido à censura.
Por hoje, vou falar da Revista Polem que saiu em 1974 com apenas um número pela Editora Lidador. A revista é lançada antes da mãe Navilouca, trazendo permanências e deslocamentos. A partir do atraso do lançamento da Navilouca, Polem chega ao público antes e em formato menor (18x25cm), com a proposta de misturar poesia experimental com outras áreas de produção artística, notoriamente artes plásticas. Quando se fala em poesia experimental entendem-se a agregação de diferentes artistas, normalmente classificados pela crítica historiográfica em correntes separadas, a saber: os concretos, que iniciaram suas pesquisas na década de 1950 (Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos), os tropicalistas de 1960 (Torquato Neto, Rogério Duarte, Caetano Veloso e Hélio Oiticica) e os marginais da década de 1970 (Waly Salomão, Chacal, Ivan Cardoso, Luis Otávio Pimentel). A eles, integram-se artistas plásticos como Carlos Vergara, Antonio Dias, Rubens Gerchman e Iole de Freitas.

Capa, Polem, 1974
A participação de Iole de Freitas chama muita atenção, pois sua intervenção através da imagem mostra a montagem de diferentes poéticas da década de 70. Um remix ajustado ou desajustado daquilo que se pensava como linguagem poética. A imagem destacada no poema abaixo apresenta as propostas cortantes de gerações distintas que duelam, mas estão lado a lado dando a liga necessária para se pensar a poesia de forma a garantir o elo. Se com relação à perspectiva da câmera, as mãos se encontram em posições distintas, não é difícil notar um jogo de espelhamento entre elas. O duelo é do poema consigo, da própria linguagem que abre veios em si mesma e faz mover suas variadas lâminas. O elo entre leitor-autor, duelo. O duelo entre autor e leitor, elo. Através da revista se espalha e fecunda posteriormente um outro ser-produto que garantirá a vida dos dias por vir. Não se quer eliminar e, sim, multiplicar através do “pólen”. A linguagem é essa abelha vespertina.




É necessário entender que, se tomamos como ponto de partida a identificação da revista com um referencial da poesia concreta, certamente isso não significa uma filiação ortodoxa às diretrizes da vanguarda concreta. Tal constatação é imediata quando observamos a primeira página:


O verso simples e descontraído como um assobio mostra-se mais perto da construção poética dos poetas marginais. As revistas da década de 70 apresentam como emblema a primeira página que vem em forma de manifesto ou carta de apresentação, e nesse caso como um poema-gesto. O rigor e o frescor, o formal e o informal, o apelo gráfico e as nuances da caligrafia são alternados pela roleta que aparece na contracapa e capa (imagem abaixo), num jogo esperto do projeto gráfico da revista desenvolvido por Ana Maria Silva de Araújo.



Na participação de Chacal, a escrita espontânea da carta com seu registro a próprio punho faz parte desse lugar poético, a caligrafia, a vida do momento.


Já de forma mais enigmática, a palavra quase indecifrável, é preciso vasculhar um poema-escultura da folha para se apreender alguma possibilidade de sentido. O poeta Ubirajara lança uma pergunta: o quanto da palavra é apenas imagem?



Depois, chega-se a uma ode de Augusto de Campos a Duchamp intitulado Marcel Duchamp: o lance de dada. Revela uma poesia discursiva, contaminada com o espírito da revista e na defesa desse trabalho dos próprios anos 70. Evidencia-se que o filtro de leitura usado para dialogar e fazer valer as experiências da vanguarda foi a ideia de variação contínua, e seleção organizada (?) pelo acaso. Qual o lance do poema/do poeta na roleta? Que invenção se faz, e, ao se fazer, faz-se simultaneamente anônima? Não à-toa, Augusto diz em seu poema que o que interessa é o lance inventivo. Malgrado qualquer tentativa de narrativas historiográficas, e de divisões, polaridades instaladas e que geram campos minados reproduzidos sucessivamente, o lance inventivo pode assumir “estratégias diversas”, não tem que “se limitar a compartimentos e comportamentos estanques”.

marcel duchamp é um nome bem conhecido
mas poucos conhecem bem marcel duchamp
muitos fizeram duchamp sem saber q o estavam fazendo
(eu também)
mas como poderíamos saber?
duchamp é o maior inventor anônimo do século
aos poucos
ele foi sendo desenterrado: debaixo da montanha picassiana
sob o brilhante arabesco dos kless ou kandinskys sob os cristais perfeitos de mondrian
lá estava ele
intacto
no meio do refugo e dos detritos (...)
revisto agora
“tel qu’em lui-même”
desencarnado de dada
livre da maquilagem surrealista
duchamp revolve a mallarmé
e não me digam q vejo mallarmé em tudo
lebel johncage octavio paz (e o próprio duchamp
também o viram (...)
do verbal ao não verbal
da não-figura à figura
duchamp
deshierarquizou a arte
o que interessa é a “descoberta”
o lance inventivo
q pode assumir as estratégias mais diversas e não tem q se limitar
a compartimentos ou comportamentos estanques
(“a” literatura, “o” verso, “a” pintura)
nem ao “status” do suporte
(quadro, livro em q a invenção é projetada
dados os dados
duchamp nos dá
uma opção-estratégia
aparentemente viável
ante o bloqueio massacrante
do dilúvio informativo
a ação na raiz das coisas
sem suportes apriorísticos:
um livro ou um vidro
uma capa ou um copo
um postal ou um disco
um dado ou um vaso
um xeque ou um cheque
ou o silêncio
mas tudo ou nada
entre o visível e o invisível
o imprevisível
choque

(CAMPOS, 1974, 35 – 50)

A inclusão de Caetano Veloso nas revistas e na discussão poética dos anos 70 possui uma força singular, não só pela aproximação entre a vanguarda concreta e o movimento da Tropicália, mas pela sua colaboração constante com os periódicos da época, e sua participação num pensar entre o canto e o verso. O tríptico abaixo evidencia isso, com um poema visual, em que palavra e fotografia dividem e pensam o espaço da página, em que o três é tanto a base dos triângulos de texto e foto, quanto o número de letras da palavra voz e a repetição, rima do poema. Nos lábios da foto, como se movimenta o ar? Como canta, faz cantar em silêncio, o poema retangular na leitura de cada um, dividida com a lábia da fotografia?


A arte popular do profeta Gentileza em fotografia ilumina com susto e surpresa, especialmente se pensávamos que a linhagem de experimentação com referências concretas se daria dentro de um quadro de hiperracionalismo e de informação prioritariamente literária. Fato é que os movimentos advindos da/ na poética concretista explorada nos anos 70 não são fechados ou centrados. Como o Tropicalismo traz associação entre arte popular e erudita, certamente abre portas para gozo estético mais abrangente.


Parece que as revistas experimentais sempre revelam um elemento surpresa, no caso da Polem é uma HQ de Ivan Cardoso que mostra as máscaras sociais, revela elementos míticos e assustadores, como vampiros e lobisomens. A utilização da história em quadrinhos revela a influência da poesia marginal e o trabalho da linguagem poética que extrapola o campo da literatura.
Há também a publicidade do disco dos baianos, galerias de arte em Ipanema com obras clássicas e caras, livro de Torquato Neto intitulado Os últimos dias de Paupéria e uma página de propagandas antigas que mostram o caráter sofisticado, mas também diversificado de referenciais do da revista e de seus leitores. Algo lembrado por Millôr Fernandes no seminário Imprensa Alternativa e Literatura: os anos de resistência, após as perguntas de Carlos Lima: Quais os destinos da imprensa alternativa? Esse destino será sempre a classe média? Resposta de Millôr: Eu acho que não há possibilidade de você ter uma imprensa alternativa que não seja de classe média.
Certamente, alguns questionamentos atravessam décadas, a vontade de se fazer poesia, mostrando que não é linhas estanques nem de territorialidades cifradas que se faz um poema, a vontade de promover encontros permanece. Bem-vindas são Modo de Usar & Co., Coyote, Inimigo Rumor e nessa estrada vamos. Misturando.

*