terça-feira, 30 de julho de 2013

“Do que eu falo quando falo de poesia?” – Daniel Massa & Thiago Ponce.

Entre críticos de poesia, acadêmicos, e jornais especializados, e mesmo entre diversos poetas em atividade, já se consolidou a noção de que a média da produção poética brasileira recente demonstra um alto nível de qualidade – o que não quer dizer que não haja quem conteste, assim como aqueles que sempre veem na produção cultural presente a decadência de um tempo passado e aqueles que acreditam que a poesia não tem mais lugar na dinâmica da cultura hoje (mas que sentem necessidade de falar da poesia, justamente para falar dessa perda de significância, ou desse seu não lugar). Se os critérios de avaliação, ou mesmo o pensamento crítico produzido acerca da poesia, são, de um modo ou de outro, enviesados, marcados ideologicamente, o fundamental parece se deslocar em outra direção: que haja textos poéticos circulando e com potencial de afetar leitores do mundo de hoje. Nesse cenário, julgamos que a pergunta mais curiosa que se pode fazer é aquela que – desviando das querelas de qual poema é bom, qual ruim, qual é “o” poema, e qual não pode ser, qual deve ser excluído da categoria poesia, etc. – vai investigar que diferentes práticas e fazeres se agrupam, se encaixam, se reúnem sob esse nome, ‘poesia’. Que diferentes histórias se contam quando se chama este estranho nome? Começamos aqui uma série, em que sempre uma dupla (de poetas, ou de leitores de poesia) responde à pergunta “Do que eu falo quando falo de poesia?”.
         A pergunta, gostava de acreditar, coloca a poesia a meio termo da corrida e da filosofia.  Quanto à corrida (e há mesmo um ótimo livro, do romancista japonês Haruki Murakami, cujo título é justamente “Do que eu falo quando falo de corrida”, publicado aqui pela Alfaguara/Objetiva, em 2010), ela é um tipo de atividade sobre a qual não se pode falar enquanto pratica, ou que, pelo menos, fazê-lo vai dificultar singularmente sua execução a contento. Quanto à filosofia, pode-se dizer que falar do que ela trata, e abordar seu modo de pensar o mundo, é já fazer filosofia, e talvez não se possa pensar, de fato, a filosofia sem já estar com isso filosofando. Ou seja, num resumo rasteiro, a poesia poderia ser pensada como corrida atravessada de filosofia atravessada de corrida, ou ao contrário, filosofia atravessada de corrida atravessada de filosofia. Isso, contudo, ainda não é uma resposta à pergunta “Do que se fala quando se fala de poesia?”.
Para respondê-la, começamos nossa série com dois poetas que participaram do primeiro evento “Bliss não tem Bis”, em novembro de 2012, Thiago Ponce de Moraes e Daniel Massa. Junto com a resposta de Massa, publicamos aqui a segunda parte de seu diário de viagem durante o Mochilão do Marrocos (a primeira publicamos aqui nesse mesmo blog na postagem "Correspondências - Jogos de Cartas, Cartas de Viagens" no início deste mês), a composição de um postal seu de Paris e um de seus poemas chuvosos. Junto com a resposta de Thiago Ponce, poemas selecionados de seu livro mais recente De Gestos Lassos e Nenhuns.

*

Daniel Massa



Sou coagido a dizer. E, assim, digo. O resto é forma. E aí se caminha por onde há espaço.
Construo a mim mesmo no que é dito. Ergo as fronteiras que me divisam do mundo, que me delimitam como sendo, a partir da palavra. Nesse sentido, dizer é sobrevivência.
E poesia é dizer-se. Todo poema é um alicerce de mim. É uma forma, entre outras, de lançar-me ao mundo. É a possibilidade de criar-me e recriar-me a partir do que eu digo e, assim, ser. O que surge a partir daí não se sabe. Se conforma, se transforma, se informa ou se deforma.
Mas não se engane, não. Isso nada tem a ver com a velha máxima rilkeana endereçada ao jovem poeta. Vive-se muito bem, obrigado, sem poesia. Há necessidade de feijão, juros baixos e conexão banda larga de qualidade. O resto é supérfluo.
Como pode então a poesia, objeto dispensável, sustentar uma condição? Como pode então a poesia, artigo de perfumaria, fazer-me?
Certa vez ouvi de uma senhora casada a vida toda com um poeta que o ego do seu marido era do tamanho de uma Kombi. Todos os poetas são uns egoístas filhos da puta, ela disse. Eles nunca estão satisfeitos.
Por isso, sinto-me coagido a dizer. O ego é uma Kombi e exige um espaço para si. Assim, desenho fronteiras, diviso-me do mundo através da poesia.
Quando falo de poesia, falo de mim mesmo. Tudo o que é meu é matéria do poema.
O que sustento e suporto está aí. Mas, perceba, tudo é claro como água suja. Porque, de fato, trata-se de um eu escamoteado, um jogo de véus em que não se mostra o que se quer mostrar.
A poesia, enfim, é uma criptografia de mim.

*

Composição de postal

Na França, as pessoas andam de bicicleta o tempo inteiro. Às vezes neva muito e eu vou pra janela dar uma olhada. Neve é uma coisa muito bonita. Os prédios ficam parecendo a cabeça do Ziraldo, marrons com o telhado branco.
Volta e meia sou surpreendido por alguém pedalando, de lugar nenhum para lugar qualquer. E assim o rastro fino dos pneus vai tatuando a neve recém-caída. Não importa o frio, não importa a quantidade de gelo que cai do céu. Lá estão os franceses pedalando.
Como diria o poeta, somos todos a bicicleta dos deuses.

*

jean jacques rousseau na chuva
com cheiro de chuva

quando cheguei rousseau já estava
e desde então tenho o acompanhado
em dia santo e feriado cívico
rousseau sério, rousseau de poucas palavras
tampa de tempo tem pé e tem pó pra todo lado.

carro zero km, mocinha namorosa, velho com tosse, pombo gordo
o mundo cabe em rousseau.
mas o mundo não quer caber em lugar nenhum.
e da janela eu vejo
jean jacques rousseau na chuva
mais nada.

e da janela eu penso
em pular
me juntar a rousseau em sua eternidade cinza
levando lugar qualquer a lugar nenhum
e da janela eu calo
e da janela eu selo

jean jacques rousseau
seja réu
       rua
       rio
afoga na chuva o que não tem nome em mim.

*
Diário de Viagem. Marrocos. Parte II.

3 de março de 2013

Meu amigo ainda mastiga a comida da véspera. Eu já não tenho nada além de um gosto amargo na boca.
Quando o sol nasce eu quase acredito em deus.

*
São dois dias sem banho. O sol se põe, e as mesquitas cantam quando chego a Marrakech. Eu me pergunto pra quê existe tanta gente no mundo.
Sufoco.

*
Não há comida e não há dinheiro. Erro pela Medina em busca de alguma coisa. O cheiro do pão me leva a um beco sem eletricidade. Me abaixo através do que parece uma porta e alcanço um porão.
Três homens trabalham. Centenas de pães acabam de sair da fornalha. De mão em mão eles são empilhados em um canto.
Compro seis. Tão bom quanto a carne de cristo.
Junto aos pães quatro ovos e meio quilo de bananas. Com um euro eu tenho a comida de dois dias.

4 de março de 2013

Os autofalantes da mesquita anunciam um novo dia. Me levanto quieto para não acordar meus companheiros de quarto.
Marrakech acorda com sono.
A Medina está cheia de gatos. Me sinto bem em companhia de gatos. Quem sabe num futuro não muito distante eu viva numa casa com duzentos gatos, usando calças mijadas e desviando das pedras que as crianças atiram nas vidraças.
Tomo um suco de laranja na praça Jamma El Fna.
Deixo Marrakech a bordo de um trem.

5 de março de 2013

- Me diz alguma coisa bonita.
- Janela.

6 de março de 2013

Volubilis dá vontade de ser eterno.
A chuva cai violenta e suja a roupa já suja.

*
Entro num taxi. Não há dinheiro e as refeições se tornaram escassas.
Jairzinho, Gérson, Pelé, Tostão, Sócrates. Ele entende das coisas. Não tiro os olhos do taxímetro. Pergunto quanto vai dar até a gare.
- T'inquiète pas!
Insisto.
- T'inquiète pas, mon ami.
Quando chego ao destino ele me diz:
- Si vous n'avez pas d'argent, pas de problème. C’est la vie.
Mèknes fica para trás. Levo comigo um pouco de paz para acalmar um espírito que ferve.
O mundo é bão, Abraão.
T'inquiète pas.

*
Já é noite quando chego a Fès. A Medina é formada por milhares de estreitos corredores. Não é possível ver o céu. Por vezes, as casas cobrem as ruas formando túneis que mesmo durante o dia não é possível caminhar sem o auxílio de uma lanterna.
Saio do Rhiad em busca de comida. No meio do caminho me dou conta de um erro. Uso displicentemente uma camisa do Vasco da Gama. Do lado esquerdo do peito, sustento uma cruz de malta. Não existem cruzes no Marrocos. A Cruz Vermelha se transforma em Croissant-Rouge. Os letreiros luminosos das farmácias francesas que sustentam uma cruz verde são substituídos por uma lua crescente.
Entro em um beco qualquer. Não há ninguém nas ruas. Tiro a minha camisa e a visto pelo avesso. Procuro caminhar com a mão direita sobre o peito. Me sinto idiota.
Acho uma mercearia. Crianças se empilham no balcão para comprar doces. Gasto dez dirhams em bolinhos, chocolates e uma coca-cola quente.
Antes mesmo que eu pudesse me afastar, ouço um grito acompanhado de risadas.
- Monsieur, votre chemise est à l'envers.
Agradeço.
De que lado mesmo a gente vive?

*
O cheiro do couro me enjoa.
- Un feuilleton brésilien a été tourné ici.
Não me entusiasmo.

*
Queria tomar uma cerveja vendo mulheres passarem.
Não há álcool e as mulheres não passam.

8 de março de 2013

Chove o dia todo.
Setecentas mesquitas gritam ao mesmo tempo e todas as pessoas atendem ao seu chamado.
É sexta-feira. Hoje tudo é mais grave.

*
Crianças jogam futebol onde há espaço.
Ouço uma história. Certa vez, um jogador marroquino marcou um belo gol e se inspirou em um famoso meio-campista brasileiro para comemorar. Correu em direção a sua torcida e fez o sinal da cruz por diversas vezes. Garrafas e sapatos voaram em direção a ele e antes mesmo que pudesse compreender o seu equívoco, o juiz o expulsou.
Crianças jogam futebol onde não há espaço.

9 de março de 2013
           
Durmo na gare para economizar uma diária.
Todo abraço de chegada me cria um sorriso.
Não caibo na cadeira da estação.

*
Em Paris sou devolvido ao mundo.
Mas o mundo mudou enquanto estive fora.

- Monsieur, votre chemise est à l'envers.
Agradeço.
Ela me veste muito mais confortável assim.

***

Thiago Ponce de Moraes



Do que eu falo quando falo de poesia?

Querido Lucas,

Gostaria de retornar a resposta como determinado endereçamento, por isso nomeio. Ao menos assim garanto alguma precisão (como fosse preciso). O quanto adiei responder, saiba, tem a ver com a própria impossibilidade de seu questionamento. Não é preciso dizer. No entanto, aí está. Difuso, incerto.
Não consigo conceber poesia como um termo, um conceito, que se encerra. Um saber-sabido, um a priori qualquer. Portanto, poderia começar me perguntando (dirigisse-me a mim mesmo enquanto falo; assim o faço?) se falo de alguma coisa quando falo de poesia, esta forma de vida. Ou se, de outra forma, enquanto busco na impossibilidade da fala sobre poesia qualquer dizer sobre poesia acabo por dizer a própria busca pelo falar sobre poesia sempre, seu caminho, seu vir-a-ser; nunca seu termo, pois: poesia, em si, como se fosse. Retorno.
A pressa dessas palavras, como pode ler, pretende falar de alguma coisa. Mas, mais do que isso, pretende dizer alguma coisa. Dizer, prioritariamente, porque se pretende breve como uma prece sobre o falar sobre poesia hoje: sob céus sombrios. Prece também pela graça de pensar no que falo quando falo de poesia (se o faço, se me é possível fazer). E sobre esse céu sob o qual estamos. Graça. Leve como um dito. Necessariamente dito em falhas, aos soluços, em balbucios ou gagueiras. Para quem? Dirá um dos versos de Celan, em Salmo: Louvado sejas, Ninguém.
A poesia, para Celan, deve atravessar seu vazio de respostas, o terrível emudecimento, as mil trevas de um discurso letal. A poesia deve continuar sua travessia e, nesse acontecimento, manter seu estar sempre a caminho. Mas de onde? A poesia, que busco dizer no emudecimento da fala, só pode ser uma colisão de atravessamentos que segue em direção a algo aberto, talvez ocupável, como a orla de um pensamento, ou inocupável, como o mar alto de alguma convicção; ou nem uma coisa, nem outra.
Afinal, o falar sobre poesia me parece ser a travessia do estar-a-atravessar da poesia; algo que não se pode definir, apenas por uma busca perene que objetiva se dizer enquanto tal. Diário da travessia. Sertão, mar. A fala da travessia é sempre o seu acaso: dizer; é sempre poder lançar os dados mais uma vez com palavras – apesar de tudo, por isso tudo, contudo –, como que a golpear a superfície das coisas; a turvar o chão dos mundos prováveis; a apagar as linhas rápidas das mais elaboradas convicções.
Quando escrevo sobre o que falo quando falo de poesia quero fazer sentir alguma vida na vinda dessas palavras em travessia. Sim. Algo do real dessa vida que nos atravessa. A fala da travessia é, também, sempre o seu ocaso, o seu fim. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia – recito da boca de Riobaldo.

*

Vê-la nascer, tocá-la ao acaso as mãos,
Os pulsos de ilegíveis saudades. Então,
Vivê-la; contudo sem pressa, sem gosto,
Sem cartografia que nomeie seu rosto,
Sem nem ao menos pensá-la. Enfim, calá-la
Com um sonho antigo no fundo da alma:
Estrelas ao longe desta paisagem cadente,
Desta tela a ensiná-la o que falta e o que sente.

Nos gestos da via sem origem ou ocaso,
Não tê-la nunca e todavia velá-la.

*

Estrelas

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Com a palavra longe te aproximas deste nome,
E de teu nome, arrancado pela Raiz,
Procura os sais.

Confundes a hora da aurora se alvoreces
E tornas originais os que amanhecem
Na palavra dia.

Abissais tuas sílabas soam com a melancolia
Natural da melodia que se oculta
Entre a palavra escuta e a palavra escrita.

Adias os nomes, de vozes te acercas em portos
Infinitos. E na palavra abismo
Cais.

*

Caligrafia

Não imaginas linguagem alguma –
E a manhã rompe como uma ferida em teus lábios.
Tua boca se abre, apenas uma palavra sangra
Enquanto passa o dia.

Sépala: na casa do esquecimento afundas,
Folhas no chão e sombras da folhagem das árvores
Por onde o caminho vaza. A noite
Não precisa de estre-

Las. Riscam a areia tuas folhas,
Uma palavra ainda tem
Luz:
Nada está perdido.

*

Paralela Mallarmé

Entre a Aurora e a Alvorada uma linha de azul fina e pálida traça –
Nasce sob o céu, no entanto –
Um círculo que existe e em seu centro – como do poema um lago, um véu –
Jazes qual o que na vida há de profuso e simultâneo.

Queres despertar como um sopro, de uma vez,
Ou da relva levantar como o verbo reverbera,
Pois num esboço de espaços a delinear teus contornos
Exibes no rosto o que poema algum concebe.

Nem o vento que te abraça te expande ou te revela,
Nem tuas costas, estes mapas para acervos de saudades,
Não te legam sem fronteiras e sem leis.

Uma linha de azul fina e pálida traça um círculo:
E em seu centro te elide – e te estreita e te enleia sem te ler –
Entre o Anseio e a Angústia de tuas páginas em branco.

*

Como das nuvens o teu raio

Há em teu rosto inerte
Algo de hieroglífico (de
Indecifrável) que por todo
Instante basta.

Há em teu rosto algo
Que também passeia pelas
Tuas mãos – há uma renúncia
Trágica que não alude a nada.

E como quem sabe das palavras
Mas limita-se a sorrir,
Deixas de teu rosto Algo
E as memórias ermas daquele

Verão em que escrevias, propondo,
Pois, tuas feições por horas:
Desejo mais ver

Do que dizer.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Com que então você não deu bola pro meu pathos? – Dois quartos vazios. Cartas de Ana C. Correspondências Parte 2.

Voltamos às cartas, com as cartas, voltamos à Ana C. e às correspondências incompletas. Como resistir a alguém que pedia, aos leitores, “Me escrevam cartas”? Aqui, nos deparamos com a pergunta retumbante, com que talvez nos desarme, e que é o eixo do entremeio de seu exercício epistolar, e possível também de seu exercício poético: “por que técnica equaciona com insinceridade? E a minha escrita é de o quê?”. E então observações sobre a caligrafia, o corpo da letra do outro, os restos dos gestos no desenho da palavra.

Há um livro recente sobre a poeta, escrito pelo também poeta Marcos Siscar e publicado na coleção Ciranda de Poesia, da EdUERJ, em que muito lucidamente o autor se propõe a desembaraçar as estratégias de leitura que se depositaram sobre a obra de Ana Cristina ao longo das décadas, não cedendo nem aos que querem-na como César, perdida entre marginais, nem aos que pretendem ver nela uma nova crente da transparência entre linguagem poética e real. Ali, em um momento, ele diz, falando de si, mas talvez como convite tenso para todos nós: “Se eu considerasse minha participação nessa ciranda interrompida como uma carta a Ana C., arriscaria  começá-la assim: ‘Prezada autora, preciso voltas e olhar de novo aqueles dois quartos vazios’”. (Marcos Siscar. Ana Cristina Cesar. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011).

Olhar para essas cartas com os olhos de quem vê outra vez dois quartos vazios. São quatro cartas no total, três destinatárias – todas datadas de Maio de 1980, quando a poeta se encontrava na Europa, terminando seu Mestrado em Tradução. Elas se voltam em comentários metalinguísticos, em que a própria escrita de cartas se problematiza, às vezes de um ponto de vista de quem escreve, às vezes da entrega de quem lê, de quem se deixa ler. Um ponto suspenso entre a sedução e a provocação.

***

7 de maio de 1980
Helô, minha querida,

Desculpa a demora e o suspense e os cartões enigmáticos e os telefonemas desvairados, mas só agora cheguei mesmo no meu canto e posso escrever direito. Direito mais ou menos, porque hoje tirei um quisto do olho e estou de pirata, com imensas bandagens extravagantes debaixo dos óculos. Lance de hospital público inglês, tantos velhos puxando papos deprimidos, a enfermeira segura sua mão na hora da anestesia, falando banalidades “to cheer you up”, e você sai de um olho só, sem equilíbrio, passantes lançam olhares discretos, leve curtição masoquista, vontade de estar elegantíssima, aprumo o passo e vou ao banco e ao supermercado representando minha própria competência. Caolha.
E foi caolha que me propus a recomeçar. Fiz uma alta sopa de legumes e botei ordem na casa. Mamãe foi embora domingo e eu ainda fiquei uns dias na casa da Mônica (amiga de Maria Elena) botando pra chorar. Pedi para ela descolar uma pessoa tipo apoio-psicoterápico uma-vez-por semana. A história se repete ligeiramente.
Fiquei contente quando soube que minha mãe vinha. Entrei numa de produção, traduzi cinco poemas e meio da Emily Dickinson, com a ideia de transar antologia no Brasil ou mesmo doutorado com o Augusto de Campos, que seria simplesmente isso: poemas traduzidos seguindo-se comentário da tradução.  Escrevi os comentários e ficou pronto o primeiro ensaio para a universidade. Faltam só três e uma tese. Com dois olhos acho que faço. As traduções legaizinhas, com rima e tudo. E a Emily é incrível demais.  Outra ideia é um texto sobre Emily/ Maria Ângela Alvim, que tal? Tipo literatura, que atualmente eu quero é fazer literatura mesmo.
Então foi assim. Conheci um carinha ótimo na véspera da partida, almoçamos em Covent Garden, que é um daqueles lugares que desmentem que Londres é um cemitério; planejei a viagem toda, comprei passagem de ônibus-seajet-ônibus, comprei malinha vermelha de nordestino (made in Tchecoslovakia) e rodinhas; sobretudo planejei não ficar na casa de Beth, porque da outra vez me deu o maior stress, ela não para de falar, nem de receber até seis horas da manhã, nem de seduzir as moças bobas como eu. Um stress mesmo. Ela não para de fazer discurso teórico sobre homens e mulheres (“bofes” e “rachas”) e bichas e sei lá. Ela acha que tem uma coisa chamada “coco” entre as mulheres, que eu e você temos um coco, você e a Carolina, ela e a Maria Clara, a mãe dela e a amiga dela, eu e ela, sei lá. Cheio de coco de mulheres.  E um clima em cima. E eu muito impressionável e stressada. Ouvindo sem parar. Enfim, o que interessa é que dessa vez eu não queria nada disso, ora pombas. Peguei meu ônibus e me hospedei na casa de um casal que mora em Paris. Lá fui eu. Passei uns três dias ótimos lá.  Fui a um cabeleireiro chique, chamado Gérard, ele chegou e disse “je vous écoute”. Eu falei pouco francês ele escutou, escutou (isto é olhou, olhou) e fez um corte incrível, mudou tudo, fiquei com cabelo CURTO, FRANJA, e ainda por cima umas perolazinhas trançadas aqui e ali, um barato. Comprei macacão cor-de-rosa, sapatinho lilás e um batom do St. Laurent rosa choque (n°23), no estojinho de camurça preta, um barato. À noite no apartamento teve até cena de studio  e eles me fotografaram de new look. Quando eu vi estava até ficando bonitinha pra mamãe. Enquanto isso fazia um lindo dia, eu ia passear com a menina por Paris, altos papos ou silêncio na Place de Vôges, de onde aliás te escrevi um cartão postal. Livre de Beth, de mania, de confusão. Quieta, e com aquelas pessoas simpáticas, comendo bem e esperando mamãe. Comprei uma conchette para Nice onde íamos nos encontrar. Transei o hotelzinho no Quartier Latin. Aí o casal foi me levar à gare de noite e tinha um engarrafamento, uma manifestação politica, um encontro de motoqueiros, sei lá, o fato é que eu perdi o trem. Que chatice.  Perdi por dois minutos. Fomos pro bar de Montparnasse beber muito, encontrar gente.  
                                                [...]
Dia seguinte, tudo normal. Um pouco de ressaca. Mamãe tinha chegado a Nice, falamos por telefone. Eu ia pegar o trem essa mesma noite. Outro dia lindo.  Tarde no Centro Pompidou, o lugar mais bonito de Paris.
                                                              [...]
Recebi notificação do correio para ir buscar uma carta. Era a tua de janeiro, que veio de navio, e eu ainda paguei a diferença. Selagem errada e notícias antigas, detalhes dos Anos 70. Marta e Pedrinho ainda namoram? Hoje chegou cartão dele dizendo que me ama tanto... A tal Grazyna Drabik  é uma polonesa que transa com aquele meu primo que você achou bonito na praia, o Rubem César, lembra? Não conheço.
Gostei da matéria da Veja sobre Impressões. Mas mais ainda de você escapando da gabeirice. Gênio.
Liguei pro Marcos no aniversário, mandei presente, cartão americano, tudo, e ele nada. Dançaram os desejos de casar com quem quer que seja, estou em fase de achar que eu estou desenganada, e além do mais acho que a insegurança do Marcos ia me dar nos nervos. Mas ainda acho que é o melhor partido para mim.
A tua carta sem selagem não dizia nada sobre o João, vai ver qualquer dia eu recebo outras notificações.
Ontem chegou carta atrás do convite das Impressões.  Não recebi o livro mas Maria Elena já tem. Vou lá ver. Recebeu os livrinhos de Paris, e o caderninho?    
Li da barra daí no Le Monde. Li não, minha mãe irradiava para mim enquanto eu delirava num canto onde parecia que não tinha real.
Eu não quero fazer o erro de cálculo da Clara nem virar uma desvairada. E daí?
Planos práticos: vou ficar aqui em Colchester até acabarem as aulas, isto é, final de junho. Aí me mudo se Deus quiser para Portsmouth, onde vou dividir uma casa com dois ingleses. Quero passar o verão à beira-mar escrevendo a tese. Se pintar companhia faço viagem. No meio da loucura de Paris teve uns projetos tipo – vamos para uma praia na Espanha, em Ibiza? Mas nem pensar. Agora acontece o seguinte: se pintar na minha frente eu me jogo de cabeça outra vez.  Tem um drama de uma renúncia que por favor não me diga que é lá trás, mamãe e tal, acting-out.  
Minha passagem de volta acaba em um ano, isto é dia 23 de setembro que foi quando eu embarquei. Aí ou eu volto ou pago a diferença para renovar a passagem. Não quero voltar correndo.  A ideia é essa casinha dar certo, e dar para ficar escrevendo e andando de bicicleta ao máximo. Talvez um empreguinho leve nessa cidade. Queria ir em NY em setembro. E queria desfazer o mito de Paris, está me irritando: toda vez que eu vou lá apronto uma e fico achando aqui um convento. É mesmo, mas será que não dá para entender que me dou bem no convento?
Vagamente tenho o Natal como data da volta. Me chateia um pouco, porque aqui eu tenho uma vida fácil , dinheiro no banco, sossego total, não tem o menor sufoco, fica só a cabeça pendurada. Aí vou ter que despendurar tudo. Tuas cartas me dão a maior força.
Eu imaginei que aqui através de uma série de provas meio heroicas eu ia “entrar nos eixos”, que é mais ou menos parar de ser infeliz de cabecinha pro lado e de esperar com certa esperança que BLISS vai pintar mais cedo ou mais tarde.
Foi essa a minha fantasia de viajar. A fantasia boa.
Voltei pro convento.
Adoro ver televisão, a invasão da embaixada do Irã em todos os detalhes. As homenagens a Hitchock.
Enquanto isso tem um bando se divertindo em Paris, a Cidade-Luz?
Porra, Helô, está difícil. Eu estava tão contentinha quando cheguei, tinha até namorado italiano. Fui pra Paris e me fodi. Me engajo no que posso, vou fazer o diploma, tirar o tampão do olho para ver melhor, ler Katherine Mansfield, cozinhar, ver uns filmes, vamos ver se pintam umas entrevistas, mas porra! Buraco preto. Será que vou dançar na vida? Meu olho vivo tá tapado. O lado de fora bate pouco.
Saiu meu texto no Alguma poesia? Espero que tenha dado para corrigir. Isso ia me consolar.
Espero os livros & cartas.
                                                Milhões de beijos


                                                Ana


P.S. Me manda um contato com o Augusto de Campos (pedido sem a menor convicção).                               

***

14.5.80

Cecil, querida,

Recebi o telegrama dias depois porque estava em Londres com minha mãe. Te liguei e foi a menina que atendeu, ai azar! Será que ela deu o recado? Também mandei minha mãe telefonar e encaminhar a roupinha... E Ana Candida conta que o bebê é lindo, e eu me sinto tão longe, sem poder acompanhar nada. Aumentam aqueles ciúmes (será que ela ainda é minha amiga agora que tem DOIS bebês) que a proximidade e o contato sempre desmentem. [...] Para você ver que até de um mundo pro outro os nascimentos batem de todos os lados. Esta carta começou errada, era para ser uma carta para um nascimento, mas minha efusão estava toda no telefonema; me diz uma hora infalível que eu queria falar com você. De resto muita curiosidade, como foi o parto, como o João Luís (agora todo mundo tem que usar dois nomes, como é que vocês estão fazendo?) reagiu, como você está? Tenho a impressão que dois filhos muda tudo, se constitui mais do que nunca uma família, é verdade? Você fica intimada a me contar tudo ou então marcar a tal hora infalível.
Acabo de voltar de uma viagem a França com minha mãe. Foi ótimo encontrar com ela, embora o contato com os amigos de Paris minha cabeça tenha pirado novamente. Paris cruelmente bela como sempre. A volta foi depressiva no começo, ainda mais que mamãe viajou meio doente, mas agora recupero meu espaço, e ainda por cima está fazendo sol e calor pela primeira vez, como se o verão tivesse chegado a 18 graus. As aulas praticamente acabaram e resta escrever trabalhos e teses. Só fiz um (traduções de Emily Dickinson) e estou completamente indolente. Apesar das suas exortações (e da Clara, e da Helô) não vejo em que um 2° mestrado poderia ajudar, a não ser me fortalecer (?) no mercado. Mas nunca pensei em largar tudo. Não sou de largar nada. Pelo contrário, eu precisava aprender a largar mais. Estou simplesmente sem a menor convicção de escrever 3 ensaios e uma tese até dia 30 de setembro. Leio muito e escrevo sem parar um diário íntimo infernal que pode ficar impublicável, o que é uma pena. Aqui me sinto protegida das minhas feras e paixões, quase em recolhimento espiritual. Pouco preparada para sair do convento.
Em Paris, cortei o cabelo num lugar incrível - dançou a permanente, fiquei de franja e pela 1° vez em muitos anos com o cabelo puxado para o curto. As fotos do 2° novo visual estão todas em Paris, e espero que me mandem apesar das complicações.
Refaço aos poucos meus contatos ingleses, tão diferentes dos contatos parisienses. Aqui conto muito menos com essa minha arma letal que é a sedução e que na hora h apesar de tanto tranco entra em ação. Não tenho nenhum caso específico, só transas ocasionais (quase sempre insatisfatórias – acho que é uma boa optar pela abstinência consciente [e me desligar de vez da tal fantasia de que tenho um caso em cada casa, embora achando que nenhum me prende e que no fundo eu prendo a  todos; estou no meio da circunferência e por pensamento mágico  não caio]) e amizades à inglesa.  Tenho dois ou três amigos homens e já sei que é inteligente evitar sexo, embora às vezes as manobras para evitar soltem demais a fantasia, e aí vem uma insatisfação... que coitada eu pensei curar em desvarios em Paris.
Preciso voltar à análise porque tenho uma teimosia de bater pé. “Você não perde por esperar”, diz a teimosia quando acho que estou quieta no verão inglês.
Planos imediatos: andar de bicicleta diariamente até fins de junho, quando me mudo para Portsmouth, à beira-mar, facing France. Vou dividir uma casa grande com dois rapazes - Mike, com quem me retraí sexualmente, e como ele é tímido e “sempre de bom humor”, sabe o tipo?, nossa amizade não foi abalada, e com um amigo dele muito simpático, que escreveu um livro sobre rock. Quero curtir a casa, escrever o que puder, nem que seja literatura (queria tanto poder soltar e escrever pra caralho), ir à praia e, se pintar, fazer pequenas viagens, mas Europa acho que não porque no verão é chato. Minha passagem de volta perde o valor dia 23 de setembro. Se tiver dinheiro renovo, e aí prolongo ao máximo isso tudo aqui que ainda não vi bem o que é. Quanto à volta... pinta esse ano mas ainda não quero pensar.
Vou tentar trabalhar um pouco, estou vadiando a horas. Fico aguardando notícias, e RETRATOS. Muitos beijos no João Luís, no João Pedro, no Gelson. Pra você, com carinho especial.

Much love,


Ana
  
***

28.5.80

Helô, querida,

Recebi o Café com letra e fiquei puta sim, com que então você não deu bola pro meu pathos? Só tem um jeito, da próxima vez mando uma carta muito mais bem escrita pra você ficar arregalada de horror. Eu me derramando por páginas sem fim e você me rabiscando um mísero bilhete atrás do Café com letra. Derramando não, porque lá tinha um narrador calando comentários, mas acontece que a técnica não é de propósito, já incorporou, e por que técnica equaciona com insinceridade? E a minha escrita é de o quê?  (Ainda por cima sua caligrafia está piorando.) Você tem que entender uma coisa, eu estou aqui, sem muita ocupação, e tenho um ritmo na cabeça que fica falando e não me deixa adormecer, então o jeito é escrever, estou completamente numa, adoro papel e tinta, o que é que eu posso fazer? Confesso que ao reler aquela carta, na qual espero que você tenha tocado fogo, publicar só dando nome aos bois, eu tive second thoughts as well, aquela vaga allofness do narrador parecia de propósito, eu até previ que ia te irritar um pouco, logo você que me escreve cartas no calor da hora, mas embora eu seja melhor na premeditação (daí não dormir bem) do que no improviso, juro que foi de verdade etc. etc. e você mesmo já aconteceu de narrar um pathos e a tua “fala” era de (não entendi a palavra), ficava ágil e engraçada, mas não tinha sido de verdade?! É que na hora de contar, a hora de contar, ficar contando já era um jeito de destramar o sufoco, às vezes só o interlocutor percebia isso...
Dessa vez sou eu que estou passando dos limites. Pra dizer a verdade eu não fiquei puta, eu fiquei rindo à toa com o seu bilhete; quando eu te liguei a % de aflição estava alta e quando eu me propus a te escrever e contar “tudo” (?) também, mas eu errei quando dei a entender que era uma confusão; eu errei não, você percebeu meio profeticamente (não sei nem como te dizer isso, mas você sem dar a entender está ficando tipo sábia, and softer, ou então eu é que não tinha percebido? Juro que tem um pique novo, tipo “síntese”, eu menos dramática do que dou a entender, você menos desatenta – acho o contrário que v. presta uma atenção danada -, uma coisa que vai ficando quieta e começa a transar totalidades, e às vezes dá uma fragilização e tudo) qual foi a minha viagem. Eu fui fazer uma viagem. Te liguei na hora da volta no improviso, sob os olhares condescendentes. Eu voltei e ficava chorando, cozinhava e chorava , estudava e chorava etc. e tenho que confessar que era bom, não interrompia nada e ia saindo. Depois bateu um verão inglês. Eu ia pro Hole in the Wall, que é um pub com varanda numa muralha romana, e ficava tomando shandy e sol com bronzeador francês bem caro e peguei uma cor e sardas numa semana. Saía de bicicleta e fazia uns programas com ingleses, teve até uma casa no countryside, Campari e Ray Charles na beira da piscina, um espanto de praia com ventania em Portsmouth e uma infinidade de pubs mais ou menos decorados. Escrevia umas coisas que eu estava adorando (eu quero fazer prosa, contar histórias, sintaxes coleantes, “Going-to-her!/ Happy- letter! Tell her-/ Tell her- the page I never wrote! / Tell her, I only said the syntax - / And left the Verb and the Pronoun - out!” -  Emily Dickinson). Tem uma coisa meio decadente, um ritmo narcisista com ironia sacaneando o pathos, Sylvia Plath é muito bom mas sai, azar! And please não fica puta porque eu fico fazendo literatura, cartas inclusive; eu lembro de você falando e dava um efeito parecido , será que ela gosta de mim com todo aquele estilo?  “Escreve devagar e conta a vidinha tipo dia a dia e os projetos de volta...”. Eu estava fazendo um esforço de dia a dia! Enjoada desses papos de sintaxe! Artifícios decadentes até nas minhas cartinhas! (E um júbilo meio escolar também)
Outra vez passando dos limites. Se eu estivesse em pessoa você me dizia assim na cara? Food for thoughts. Também te adoro. E não estou com falta de ar nenhuma. 
Entrei numa de trabalho involuntário, já escrevi 2 essays e encaminhei meia tese (K. Mansfield). Estou me divertindo muito fazendo tradução, fico absorvida e feliz. Estou meio que namorando o inglês que mora no andar de baixo, é tipo lindo & rough, e como estava cada um pro seu lado e vai cada um pro seu lado o namoro é tipo brinde, finge que não é namoro, curamos anomias mútuas. Desde que eu me ocupe... Entendo também que Paris pintou no auge da desocupação, e além do mais com uma puta margem de segurança. Minha curiosidade recuou outras vezes em situações sem essa boa margem. Já pensou não poder tirar o cavalinho da chuva em seguida, chorar, inventar ocupações interessantes, escrever cartas, enfeitar, deixar de ficar chata? Fui e voltei, pronto. Não sei se tenho que entrar outra vez nesse barato, que está aqui domesticado mas que eu imagino que está em Paris pronto pra me devorar; tudo depende das ocupações da vida. O fato é que estou me sentindo mais interessada em ficar ocupada. E você está com tudo de transar a mil (desde que não dê muito cansaço – nem encurte as cartas!) Por uma estranha coincidência uma amiga inglesa legal, a Shirley, se enrolou  numa transação semelhante e vamos  para o pub  conversar  (mania de shandy, cerveja com soda limonada dessas de gás) e você tem toda razão, eu sei onde tenho o nariz. Fiquei sacaneando no início da carta mas vê se discrimina. É sério que muito estilo é esquisito, dá uma aflição, but you know better.   
Vou jantar em grande estilo num joint transado em Covent Garden no aniversário. Amigos ingleses legais. Maria Elena já anda ocupada demais, tenho timidez. E você, traduziu a Antonieta? Já que você não manda, quero ver na volta o portfolio de recortes, quê que tem? Aliás a M. Elena disse uma coisa engraçada, que eu tenho mais é que fazer + análise  porque fico batendo o pé que nem criança. Ela também disse que eu entrei “de gaiato” no meio de 2  com tara por 3, mas ainda não admiti muito porque desenfeita. E ela diz que o meu problema é que eu enfeito, quando você... Vê se escreve devagar, porra!


                               Beijos, beijos

                              Ana

***
                                                                                                                                           29.05.80
        
         Candida, darling,

Tua carta me consola, me aquece, sinto uma paz e não quero dizer nada, quero ficar quieta com esse calor e mais nada. Te sinto perto e terna. As teorias recuam, assim como uma sintaxe meio delirante que às vezes me ataca a cabeça em mania. Fico horas no meu quarto e gostando inventando coisas para fazer. Entrei numa de literatura, é o meu brinquedo. Depois da Emily Dickinson, estou em fase Katherine Mansfield, leio tudo, inclusive biografias ordinárias (que leio arrepiada, I must confess que para dizer a verdade estou achando cartas e biografias mais arrepiantes que a literatura) e fico sonhando com essa personagem. Também escrevo um caderno, quero fazer um livro que é prosa, que é quase um diário, que conta grandes coisas se passando nos quartinhos. Penso em Grécia incessantemente, e como por destino caiu nas minhas mãos a poesia de Cavafis, numa bonita tradução espanhola. Vou à Grécia sim, mas não antes e sim depois da invasão turística. Medito na paixão que não está doendo. Não estou com pudor de virar uma “literata” porque é assim que afago e cuido da paixão. Sendo assim não vou ficar “literata”.  Muitos sentimentos passaram, acho que talvez o que mais incomode, porque é muito insinuante, seja uma certa vergonha de perder o controle sobre o desespero. Escrevi uma carta rasgada para [...] e não tive resposta.  Depois de 3 semanas passei dias elaborando um cartão que aliviasse o meu pathos. Agora não estou derramando, esse pathos é meu, e sinto que fiz uma viagem e voltei. Entrei numa do tal título, estou fazendo os trabalhos sem sofrimento, é muito bom ficar ocupada – a não ser que faça sol, mas esse recuou por uns dias. Às vezes tenho grandes ânsias de outras terras, mas não gosto de viajar para nowhere sem ninguém à vista. Estou transando leve com o Chris de quem reclamei. Aliás não era dele que eu devia  estar reclamando e sim da minha depressão, meu corpo querendo outra coisa. Estamos transando leve, moramos na mesma casa. Ele é bonito como um Apolo e tem duas coisas que gosto num homem, uma certa brutalidade, uma franqueza que me dá a segurança de eu poder dizer o que me passa na cabeça , e um gosto pela sacanagem, um olho sacana, uma coisa meio devassa. O mais engraçado é que tudo isso era absolutamente insuspeitado, me espanto. Mas de leve. Estávamos cada um pro seu lado, em andares diferentes, e naturalmente vamos cada um pro seu lado, esse é um pressuposto de leveza.
Cato no Time Out o filme de Fassbinder, não está passando e eu queria tanto ver. Só quero ver e ler e escrever sobre paixão. Tenho medo de voltar porque no meu quarto invento um cotidiano literário e sei que no Rio não vou ter esse espaço. Decidi ficar até o último tostão, prolongar ao máximo, renovar minha passagem por mais um ano. Ainda tenho pena de queimar 800 libras no título universitário. Mas estou num momento bom pra fazer trabalhos, me sentindo nada universitária, mas sem nenhum horror específico.
Me emocionou também você botar o Drummond pra mim, como quem  bota cartas, sabendo, sem explicar. Gostei, de novo, muito do poema. E pedaços de Fernando Pessoa. Ficou comigo. Li e reli sua carta, os detalhes que não comento aqui, a mudança e o curso. Você está comigo. Conta da vida. Beijos
Dia seguinte, biblioteca da universidade:
Acabo de ler uma das biografias da KM, escrita por LM, her wife, e tenho diante de mim outros pontos de vista, o journal, and of course, a correspondência. Esqueci os contos for the time being, uma coisa muito construída. Comento episódios com a Shirley e ela me diz se eu não acho meio obscena essa publicação de todas as intimidades de alguém, a escrita íntima que não é produzida para a reprodução industrial e o leitor desconhecido. Mas eu estou fascinada pelo conflito entre as versões, e pelo conflito entre as cartas de KM para diferentes interlocutores, e pela tentativa de fazer da literatura um lugar menos obsceno que toda essa aparente confusão da verdade – higher up. Sei que alguns modernos já brincaram com isso, as várias versões por onde se filtra ou escapa a verdade, os mosaicos e focos narrativos da vida, mas não é nesse sentido quase teórico, para estudante de literatura. Entendo quando o Borges diz que imagina o paraíso como uma biblioteca infinita, mas como uma biblioteca emocional, e não como um blefe de erudito.  Queria eliminar todo ranço de teoria. A psicanálise tem de ser um discurso que bate e silencia como pedra no lago. As interpretações pedem um silêncio como você sentiu tão bem.  Por um momento não posso suportar a “Teoria da Literatura”, nem as amigas de Londres que discutem o psiquismo na mesa de jantar. Uma coisa improvisada, talvez imprevista, que toma jeito nas cartas. Aquelas coisas metalinguísticas, delírios de Derrida que a escritura jaz lá desamparada, me revoltam, ou não interessam mais.          
             
(Ana Cristina César. Correspondência incompleta / Ana C.: organização: Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda – Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999).