terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A última postagem do ano não é a última postagem do mundo!

Chegamos a conversar algumas vezes sobre como encerrar as nossas atividades em 2013. Em algum momento, pensamos em Whitman, ou Waly Salomão, algum momento pensamos numa entrevista com Antonio Cicero, todos planos momentaneamente postergados. Algum momento, uma antologia de imagens e textos que tocassem no verão.

No fim das contas, vamos encerrar não com a história de 2013. Dele, talvez queiramos lembrar o que já, em meados de junho, no segundo encontro “Bliss Não Tem Bis”, anunciávamos: foi um ano em que se fizeram explícitas as diversas formas de o Estado Brasileiro ser violento e autoritário (no passado e no presente) com os cidadãos habitantes daqui. Os planos para 2014 precisam incluir essa compreensão: como editar poesia (um blogue, uma revista, uma revista-disco, livros, etc.?) a partir dessa consciência?

Nossos planos para 2014 incluem: continuar com os lançamentos da revista-disco em outras cidades do país. Primeira parada, ao longo do verão: Bahia! Feira de Santana, Cachoeira, Salvador, o que pintar. Em março, deveremos ver São Paulo, e outras.

Nossos planos para 2014 incluem: ampliar o debate sobre o que/como/de que modos editar poesia hoje no Brasil? Não só continuando o blogue, os encontros de poesia, mas também promovendo mesas, debates, entrevistas com os envolvidos e interessados pela poesia e pela edição hoje.

A Revista-Disco, além de rodar as cidades, continua sendo vendida no sebo Berinjela, e através de encomenda pelo email blissnaotembis@gmail.com

A partir de hoje, o blogue entra de férias, retornando somente em fevereiro. Foram 40 postagens em 41 semanas. Toda terça-feira, aqui. Há muito material para ser visto e revisto, ouvido e relido (Ouvido também lê!).

Enquanto estivermos de férias, postaremos aqui para anunciar os eventos de lançamento da Revista-Disco.

Para despedir desse ano, em que criamos a primeira Revista-Disco de poesia, em que fizemos um encontro de poesia em junho, no Rio tomado de conflitos (vale lembrar que manifestações são conflitos, combates), com Angélica Freitas, Dimitri BR, Leonardo Gandolfi & Marília Garcia, em que tocamos o blogue com antologias, traduções inéditas e nos apresentamos aqui no Rio e em Pelotas, para nos despedir desse aventuroso (e às vezes pesado, violento) 2013, uma história de Laurie Anderson. Uma peça feita sobre a instalação que ela estreou aqui neste mesmo Rio de Janeiro na sua exposição “I in You” em 2011. Uma história sobre o gesto de contar histórias. Uma história das histórias.

Feliz Ano Novo! Bliss’You All!

Bliss Não Tem Bis! Bliss Kiss Bliss!

***

O Coelhinho Cinza (Laurie Anderson/ Tradução: Lucas Matos).

Eu quero contar a vocês a história de uma história. É sobre quando eu descobri que muitos adultos não têm ideia do que estão falando e também que eles não têm questão com dizer o que quer que venha à cabeça. Quer seja algo vagamente verdadeiro quer não.

Era no meio do verão e eu estava com 12 anos. Eu era o tipo de criança que está sempre querendo aparecer. Tinha sete irmãos e irmãs e sempre me perdia na multidão. Fazia praticamente qualquer coisa por um pouco de atenção.

Daí um dia eu estava na piscina e decidi dar um salto mortal do trampolim, o tipo de mergulho que, quando você está temporariamente, magicamente suspenso no ar, faz todos ficarem: “Uau! Que incrível! Que espantoso!”.

Eu nunca tinha dado um salto mortal antes. Mas pensei: “Qual a dificuldade? É só você dar uma cambalhota e se aprumar logo antes de atingir a água”. Então eu fui. Mas errei a piscina. Aterrisei (TCHBR-AQUE!) na borda de concreto e quebrei a coluna.

Os pares de semanas seguintes, passei em tração na ala infantil do hospital. Por um bocado de tempo não pude me mover ou falar. Ficava como que boiando apenas.

Eu estava na mesma unidade que as crianças que sofreram queimaduras e elas ficavam penduradas nessas tipoias rotatórias, um pouco como assadeiras ou espetos. As máquinas giravam cada um de um lado pro outro para que as queimaduras pudessem ser banhadas em líquidos frios.

Então, um dia, um dos médicos veio me ver e disse que eu não voltaria a andar. E me lembro de pensar: Esse cara está doido! Como assim, ele é mesmo um médico? Quem garante?

Ainda assim, não podia dizer isso nem qualquer outra coisa já que não conseguia falar. Mas eu tinha certeza de que ele não tinha ideia do que estava falando.

Claro que eu ia voltar a andar. Só tinha que me concentrar, continuar tentando fazer contato com meus pés. Convencê-los, fazer-lhes querer se movimentar.

O pior de tudo eram os voluntários que vinham toda a tarde ler para mim. Eles se inclinavam sobre a cama e diziam: “Olá, Lauriiie!!”, articulando muito cada palavra como se eu também tivesse ensurdecido. E eles abriam um livro. “Então... onde a gente parou? Ah, sim! O coelhinho cinza estava saltitando na estrada e adivinha aonde ele foi? Pois é, ninguém sabe!

O fazendeiro não sabe.

A mulher do fazendeiro não sabe.

O filho do fazendeiro não sabe”, e assim por diante.

Ninguém sabia aonde o coelho tinha ido, mas quase todo mundo parecia se importar.

Olha, antes disso acontecer, eu estava lendo livros como “Um Conto de Duas Cidades” e “Crime e Castigo”, então histórias de coelhinho cinza eram um tipo de tortura chinesa.

Afinal de contas, um dia eu consegui me pôr em pé de novo e então por dois anos eu usei um grande e metálico aparelho para coluna que tinha um design meio de Frankenstein. Basicamente, eu era uma anormal, e acabei muito obcecada com Jonh F. Kennedy porque ele também tinha problemas de coluna e era o presidente.

Muito depois na minha vida, quando alguém me perguntava como tinha sido minha infância, eu contava essa história sobre o hospital e funcionava como um atalho para dizer certas coisas sobre quem eu sou – como aprendi a não confiar em certas pessoas e o quão horrível era ouvir histórias compridas e sem sentido como aquela sobre o coelhinho cinza. Mas sempre havia algo estranho em contar essa história, eu ficava inquieta, como se alguma peça estivesse faltando.

Então um dia, quando eu estava no meio dela – contando – estava descrevendo as pequenas assadeiras em que as crianças ficavam penduradas – e de repente foi como se eu estivesse de volta ao hospital exatamente do jeito que tinha sido. E eu lembrei a parte que faltava. Era o modo como a ala infantil soava à noite. Os sons de todas as crianças chorando e berrando. Os sons que as crianças fazem quando morrem.

Daí eu lembrei todo o resto: o cheiro forte dos remédios, o cheiro de carne queimada. O modo como algumas camas amanheciam vazias e o modo como as enfermeiras nunca falavam do que tinha acontecido com essas crianças, elas simplesmente continuavam fazendo a cama e limpando o entorno da ala infantil do hospital.

E daí que o que importa na história é que eu contava a parte que falava de mim. E tinha me esquecido do resto. Eu limpei o entorno assim como as enfermeiras.


Isso é o que eu acho que seja a coisa mais perturbadora das histórias. Você tenta chegar ao que quer dizer, normalmente é sobre você ou alguma coisa que aprendeu. Você chega à sua história e se segura nela, e toda vez que você conta, se esquece dela mais.

***


"Nossos planos são muito bons" Lançamento Revista-Disco "Bliss Não Tem Bis". Coart/UERJ. 29/11/2013.
Thiago Gallego, Lucas Matos, Marcio Junqueira, Clarissa Freitas, Dimitri Br, Cristina Flores.
Foto por: Alessandra Migueis.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Guia Poético Pelotense: “Toda viagem tem um pouco de furacão. Escutemos novamente”.

Toda viagem tem um pouco de furacão. Não foi diferente em nossa ida à Pelotas/RS, para o lançamento da Revista-Disco Bliss Não Tem Bis.

Depois de uma linda noite de lançamento no dia 19/12/2013, com direito à dobradinha Thiago Gallego/Angélica Freitas, homenagens a Ronald Biggs, poemas em vinil, e muitas outras loucuras, os poetas Lucas Matos & Thiago Gallego puderam conhecer a Praia do Laranjal, a mansão da Baronesa, andar de bicicleta verde, tomar um café no Aquários, etc.

Em meio a tudo, Angélica deslocava livros de suas estantes e nos entregava, com comentários como “olha isso”, ou “ele é demais, né?”, ou ainda: “acho que vocês vão achar isso bacana”. E então, uma boulangerie, e Vitor Ramil mostrando canções que fez para poemas de Rilke Shake, e os livros girando – das estantes para as mãos, para os olhos e ouvidos, e girando, e girando.

Ontem, segunda-feira de manhã, 23/12, sentamos e selecionamos e traduzimos algumas das coisas que nos atravessaram de modo mais marcante. E havia desde uma sensacional revista de poesia, realizada por Cecilia Pavon e Fernanda Laguna, até livros de portugueses, mexicanos, argentinos, costa-riquenhos, etc.

Assim, chegamos a este primeiro e certamente provisório “Guia Poético Pelotense”, feito no olho do furacão, ansiosos e felizes pelas leituras e viagens que o vento anuncia.




Angélica Freitas, Lucas Matos, Thiago Gallego. Pelotas/RS. Dez/2013.

Thiago Gallego, Lucas Matos. Pelotas/RS. 19/12/2013.


*

De “Ceci y Fer (poeta y revolucionaria)”. Año I. N I – 2002, Buenos Aires, Argentina – Revista feita por Cecília Pavón e Fernanda Laguna. Tradução: Lucas Matos.

Meu namorado

(Antes de prosseguir, quero dizer a todas as garotas que sou bissexual
E não acredito na monogamia).

O namorado que me amava
O namorado que tinha cachos e foi
meu último namorado.
Depois dele, não teve mais.
Desapareceram.
Os homens lindos eram gays
ou muito novos para mim.
E os mais velhos se foram,
como todos de idade mediana.
Ele foi o último.
Com quem melhor fodi.
porque era um cara sensível e esses são os que fodem melhor.
Comum e sensível com a sofisticação de um herói
Tocava em mim piano,
guitarra, baixo.
Pandeirola e palmas tri boas em todas as canções.

Um músico muito melhor que os eletrônicos de quem gostava antes
Penteava os cabelos na água,
Jamais lavava o banheiro porque as mãos podiam se estropiar.
Isso era eu que fazia e hoje,
as tenho envelhecidas.
Às vezes comia uns sanduíches do tamanho do prato
e os cortava em triângulos
e me servia
e eu dizia:
“Mas... são corações!
Meu amor!
Nossos corações de carne de vaca!”
E que felizes éramos,
quando não nos olhávamos como dois estranhos,
quando à noite
no escuro não nos transformávamos em tios entediados
que não se dão um beijo.
Os dois duros
fitando o teto
com muitas coisas por dizer e em silêncio.

O namorado que tinha perdi
num dia que não o amei.
Um dia não faz muito
porque não posso amar, cada vez que amo, choro
e não posso amar.
Odeio, o odiei porque ele era feliz comigo
e eu não podia ser feliz com nada.

Quero ser de gelo
e ter a forma de um peixe fisgado.

*

Reflexões automáticas (parte 3)

Vou escrever um romance realista. Já!
Sim, vou fazer! Custe o que custar.
porque o meu estilo corre o risco de se repetir
e se repetir e chatear e ficar preso no mundo da fantasia
que é algo que não chego a compreender.
Creio nela através da fé que é não se fazer perguntas demais.
Tentarei transformar isso já! Agora.
Neste momento preciso, mudo.
Devo escrever um romance agora!
realista, heterossexual e com princípio, meio e fim.
desligo a música para que não me faça decolar na emoção.
Isso é o que devo fazer e o que estou fazendo.

Este é o meu próximo passo
escrever tudo na terceira pessoa
que é mais complexa que a primeira...
porque a primeira
sinto que é mais fácil,
é como escrever um diário.
É escrever o que sinto
uma fantasia
porque meus sentimentos são bem pouco precisos.

Na terceira pessoa
mas também posso colocar coisas,
na história,
que eu vivi.
Coisas de minha realidade
que transporto a uma ficção
que se parece muito com a realidade.
As histórias são ficção
por causa de muitas coisas
mas uma delas é que
não são a realidade.
Quero criar uma história realista.
Oh te invoco, história realista...
E começo já!

Ela escreverá uma história realista,
tomará exemplos do real
que sejam o mais “isto”, a coisa mais coisa possível.
Uma história em que não haja nenhum elemento ambíguo.
Coisas, imagens, ações
Que tenham qualquer traço de “pouco comum” e de “algo raro”.
Ela já está fazendo!
Por exemplo,
palavras que não usará (ela me disse):
fantasma, sombra misteriosa, estranho, oculto,
fada, brilhante e fantástico.
Tampouco coisas de Virgens.

Escutemos...
Ela disse:
“As coisas serão de madeira, de vidro, de metal, de plástico
e, porta adentro, não terá nada.
Se na casa tem um cachorro só,
ele estará só.
Não falará consigo mesmo,
não pensará,
não fará nada que não faça um cachorro comum”.

Para criar esta história a autora está se esforçando muito.

Escutemos novamente...
Ela disse:
“Às vezes me acontecia de me pôr a analisar o real
do grande ao pequeno ou do pequeno ao grande
e sentir que o irreal é meu pensamento.
Ele viaja até as coisas
e volta destroçado.
Os pensamentos são como barcos na bruma tingidos de céu.
Barcos que não se podem tocar mas em que
se está destinado a ter de acreditar neles”.

A autora está vendo navios na câmara escura da mente
e não sabe se a mente é algo que deve pôr na sua história

Escutemos...
Ela disse:
“Contudo, não,
isso é para outra história,
e não devia ter comentado.
Se não conheço algo com clareza,
não falo.
Não, não falo,
insinuo como num jogo.
A mente vem de... não, não falo.
Não, não. Não vou falar”.

Bem.
antes de começar o conto, ela volta a falar.
Escutemos uma última vez...
“A última coisa que digo
Não sei se uma história é uma ficção ou algo que é real.
Não digo mais nada”.

A história gira em torno de um personagem principal
que vive só num apartamento da tijuca num andar alto
Sãens Peña 190
Solteiro, 29 anos, mulato, etc.
Trabalha na loja do pai,
A maior loja de ferragens da quadra.
Trabalha de macacão azul,
Neste momento usa sapatos de couro Grimaldi tamanho 40 e,
como o interior é apertado,
Se veem as meias da cor bordô.
Não precisa pegar ônibus,
Porque seu trabalho fica na esquina.
Agora está andando a pé sobre os Grimaldi 40.

Atravessa a rua,
O sinal está em bonequinho verde,
Ele olha para uma bosta de cachorro e decide não pisar.
Dá um passo largo que deixa desconjuntado o passo seguinte
então dá um passo menor
e retoma o equilíbrio.
Caminha e chega à loja de ferragens.
Saúda com a mão esquerda o pai, que está lá dentro.
O pai responde com a direita.
Abre a porta e diz ao mesmo tempo:
“Oi, pai”.
Fecha a porta num golpe.

Se beijam na bochecha e se falam.
A autora não chega a escutar o que dizem, então
utiliza a técnica da leitura labial
mas como eles estão de costas não logra se inteirar de nada.
O pai dá um papel
que ela supõe que é uma lista.
O filho, saindo do local, pisa a rua
e pode senti-la
já que faz uma cara de dor ao enfiar o pé num buraco.

*

De: “cecília”
Para: “fernanda laguna”
Data: Sun, 29 Sep 2002, 14:57:14 – 0400
Assunto: estou farta de gente paranoica

Eu também, é o pior. O pior é que às vezes eu sou superparanoica. Como se me perseguissem açougueiros ou gente na rua que quer me matar. Roubar, não, porque nunca tenho um puto.

De: Lucas Matos
Para: Thiago Gallego
Data: segunda-feira, 23 de dezembro de 2013, 13:18:16
Assunto: gente paranoica versão 2

estou farto de gente paranoica.
o pior é que, aqui em pelotas, viajando às vezes caio na paranoia também.
acho que estão me perseguindo, gente de bicicleta ou de moto, penso que vão me atropelar.
roubar não, que estou sem um puto.

De: Lucas Matos
Para: Thiago Gallego
Data: segunda-feira, 23 de dezembro de 2013, 13:18:54
Assunto: gente paranoica versão 3

estou farto de gente paranoica.
o pior é que, aqui em pelotas, viajando às vezes caio na paranoia também.
acho que estou perseguindo alguém, qualquer um na rua. ou que alguém vai gostar imediatamente de mim.
também penso que todos me acham feio. e bruto.

De: Lucas Matos
Para: Thiago Gallego
Data: segunda-feira, 23 de dezembro de 2013, 13:31:06
Assunto: gente paranoica versão 4

estou farto de gente paranoica.
o pior é que, aqui em pelotas, viajando às vezes caio na paranoia também.
acho que estou falando com alguém, qualquer um na rua. ou que tem alguém além de mim naquela praça deserta.
também penso que todos me acham louco. e sujo.

*

a poesia de hotmail ou hotmail poetry é um novo gênero inventado por fernanda laguna e cecilia pavón em buenos aires em um lugar incerto entre almagro e congreso.

Às nossas leitoras:
hoje é sábado, onze da noite, estamos comendo, mas não vamos dormir depois.
vamos sair, vamos buscar algo na noite, para contar na revista.

Aos nossos críticos:
Talvez digam que esta revista é autorreferencial demais
talvez tenham razão
certamente,
esta é uma revista autorreferencial
mas...
talvez se equivoquem
e nós também
e isso seja algo ainda não inventado
quem sabe?
queremos novas gerações de críticos para falar de nós
“aceitamos o desafio da crítica dura”

Cecilia este é o final
estou esgotada. Escuto música e me anima.
Agora, vou a uma inauguração e todos estarão resplandecentes,
E eu,
cansada,
sem rouge, sem rímel,
com sapatos de salto vermelhos que me machucam.
Tenho um vestido novo de $4 que parece de $30
Fica ótimo.
Me deixa gorda.

Eu tenho 210 mensagens e 0 não lidas
0 NÃO LIDAS!
ah... este é o final para mim

this is hotmail poetry: “send me an email that says I love you”: Pet shop boys.

***

De Caramelos de anis, Cecilia Pavón, (Ediciones Belleza y Felicidad, 2004).Tradução: Thiago Gallego.

Seletos de NÃO ME IMPORTA O AMOR ME IMPORTA O DINHEIRO (LIEDER AUS WUT UND LUST)
de Timo Berger e Cecilia Pavón


Esclarecimento

Nos seguintes poemas figuram sempre os nomes CECILIA E TIMO, mas é ao acaso, podiam figurar aí de igual modo Gary e Fernanda, Damian e Guadalupe, Pablo e Alexandre, sal e pimenta, convidamos a tod@s @s noss@s leitor@s a colocar seus nomes e completar os espaços em branco...

*

NÃO ME IMPORTA O AMOR,
ME IMPORTA O DINHEIRO

*
DECLARAÇÕES DE AMOR

Timo, eu te quero pq vc não é vegan
Cecilia, eu te quero pq vc é virgem
Timo, te quero pq me disse q não pague no U-BAHN
Cecilia, te quero pq vc não raspa as pernas
Timo,
Cecilia, te quero pq vc se irrita rápido
Timo,
Cecilia, te quero, pq vc tem GIPSY STYLE HAIR

*

não pense na poesia
pense em escrever algo q seja verdade

*

Querida Kathrin:
Se há algo que odeio em Buenos Aires, é a gente que não se conecta quando dança. Notei à noite e é bizarro. Cada um dança para si. Quase todos olhando para baixo. E muito mal, como se tivessem medo da música. Não é que isso tenha começado com a crise. Essa atitude na pista, já estava desde antes, desde sempre. Não me lembro de nenhuma festa em que galera tenha dançado bem. Agora que estive três semanas na Alemanha, e pude viver a noite de Berlim, me dou conta com maior nitidez. Dizem que os alemães são duros, que dançam melhor que os argentinos. Como explicá-lo, é uma questão de se entregar ao grupo. Cada um dos participantes inventa algo e inspira os outros, assim vai se formando uma espécie de rede, que termina em comunhão. Tenho a sensação de que os argentinos têm medo de ser julgados quando dançam. Por exemplo, quase não mexem a cintura, nem olham pros outros, nem tentam nenhum tipo de coreografia em conjunto. Que sei eu, conto de uma boate improvisada num lugar na Avenida Santa Fe, aos domingos às sete da tarde. A dj é a ex-mulher de um cantor de rock famoso que depois do divórcio decidiu tentar a sorte na discotecagem. Como acompanhou o marido quando viajou a Barcelona para fazer um show, comprou discos da última moda, e graças a isso é uma das poucas que pode trabalhar. Mas é injusto. De que servem os discos novos se não consegue remixar? No fim das contas não é mais que um improviso, mas bem, é ela e não o guri da região que tem os discos.
E é isso que pesa pro organizador na hora de dar as festas.

***

Leitura de Lucas Matos. Lançamento Revista-Disco Bliss Não Tem Bis. Pelotas/RS. 19/12/2013. Foto por: Lucio Xavier.

Leitura Thiago Gallego & Angélica Freitas. Lançamento Revista-Disco Bliss Não Tem Bis. Pelotas/RS. 19/12/2013. Foto por: Lucio Xavier.

Lançamento Revista-Disco Bliss Não Tem Bis. Pelotas/RS. 19/12/2013. Foto por: Lucio Xavier.

Lançamento Revista-Disco Bliss Não Tem Bis. Pelotas/RS. 19/12/2013. Foto por: Lucio Xavier.
*

De Notas em torno do apocalipse zumbi – Luis Felipe Fabre (trad. Ricardo Domeneck; Lumme Editor, 2013).

(Opening song)

Hey sweetheart, não vá
a piquenique em cemitério:
não vá
bebericar no cemitério:
não vá cheirar pó no cemitério:
não faça a gótica
esta noite.

Porque as coisas
andam meio esquisitas; porque foi encontrado
um braço
e o resto desse corpo é um mistério;
porque foi encontrada
a orelha
de outro mistério
e os dentes só o diabo sabe que sorriso;

porque as coisas estão ficando hardcore:
hey, honey, escute
essa cançãozinha idiota: não vá
dançar no cemitério:
não vá dançar

no cemitério: não vá
dançar no cemitério: fique comigo
esta noite.

*

1
As autoridades apelam à população
que mantenha a calma.

2
As autoridades apelam à população
que permaneça em seus lares.

3
As autoridades asseguram que estão sendo tomadas
as medidas necessárias
para se controlar a praga dos zumbis.

4
São 4 da manhã: a luz sai pelas janelas:
os televisores e computadores de todos os mexicanos
continuam ligados como velas de sete dias
lamparinas devotas que são uma novena insone
para que a noite dos zumbis acabe.

5
Cidadãs e cidadãos: se suspeitarem
que um vizinho, amigo ou familiar tenha sofrido
uma contaminação zumbi
o denuncie imediatamente usando qualquer um dos números de emergência:

O México precisa de sua cooperação.

6
Zumbis nas ruas.
Zumbis nos escritórios.
Zumbis no centro comercial.
Zumbis no metrô.
Zumbis nos parques.
Zumbis nos terraços.
Zumbis no apartamento de baixo.

7
Informação importante:
as aulas de dança do centro estão suspensas
até segundo aviso.

***

De Chan Marshall - de Luis Chaves (ed. Visor Libros, 2005). Tradução: Thiago Gallego.

Luis Chaves nasceu em Costa Rica, em 1969


VIA UM FILME EM VÍDEO

Dos atores não surpreende
a capacidade para fingir o pranto
Digno de assombro
é que finjam a risada.

*

MÉXICO D.F.

Essa foto em que ninguém sorri:
quem acreditaria que foi dos bons tempos?

*

REGRESSO

Um bom oito de abril
ou catorze de novembro,
num hotel de província,
aquela que poderia ter
sido a mãe dos teus filhos
passa a roupa suja
de uma mala a outra.

*

O EXERCÍCO DA DESPROPORÇÃO

Igual ao desenho da criança
em que a casa é do tamanho da flor,
horizontal no meio da rua
antes de perder a consciência,
o atropelado vê uns sapatos
maiores que a ambulância.

***

De A encomenda do silêncio – Alberto Pimenta (Odradek Editorial, 2004).


As palavras do papagaio, por Alberto Pimenta.

*

de acordo com o inquérito
60% dos que leem
são menos ignorantes
que 70% dos que não leem

e 20% dos que não leem
fazem
mais erros de gramática
que 40% dos que leem
dentre os que menos leem
15% ainda assim lêem mais
que 30% dos que mais leem

isto sem contar os analfabetos
(que chegaram ao CD sem passar por AB)
acerca de cujas leituras
o centro estatístico
não tem por enquanto dados seguros

*

durações médias, por Alberto Pimenta


*

culto das tradições

e,
olhando o retrato de parede demoradamente nos olhos,
uivam lastimosamente.

e,
o retrato de parede, calando-se lastimosamente, olha-os
demoradamente nos olhos.

e,
olhando o retrato de parede demoradamente nos olhos,
uivam lastimosamente.

e,
o retrato de parede, calando-se lastimosamente, olha-os
demoradamente nos olhos.

e
assim por diante

*

não te sentes capaz de entender
o dia de hoje, baby?
espera que ele seja o dia de ontem.

não te sentes capa de entender
o dia de ontem, baby?
espera que ele seja o dia de amanhã.

não te sentes capaz de entender
o dia de amanhã, baby?
espera que ele seja o dia de hoje.


__
Nota: Para quando um congresso sobre o futuro do passado? Think upon it.

***

De TRES, Eva Murari (Ed. El Calamar; maio de 2004). Tradução: Thiago Gallego.

Eva Murari nasceu em Bahía Blanca em 1974.
Publicó Violetas, VOX.

VERÃO

Anoitece
se fecham
as rosas


*

As nuvens
dou nomes
mudam de forma

*

Oculto
entre pinheiros azuis
canção da água

*

Entre flores
de cardo voam
as sementes

*

Vozes de cuco
nos chamam
a ver a lua

*

OUTONO

No vento
as folhas do salgueiro
borboletinha

*

Uma pena
cai
do céu

*

São lágrimas
as sementes
da acácia?

*

O sol persiste
nas folhas
do freixo

*

INVERNO

Sonho
entra em meu quarto
a lua cheia

*

Nos galhos
gotas de chuva:
flores de julho

*

Por ser tão altos
se queixam do vento
os eucaliptos?

*

Depois da chuva
à noite brilham
as laranjas

*

No ar quieto
sob a lua, entre o sol
caminho só

*

PRIMAVERA

Lua crescente
entre edifícios
voa um morcego

*

Como outra primavera
distante
os jasmins

*

Sobre o mar gris
sob o céu gris
as andorinhas

*

Súbito em outubro
um perfume
do verão


***

Laranjal. Pelotas/RS. Dez/2013.