sábado, 30 de agosto de 2014

José Leonilson: "O desejo é um lago azul"





Na postagem da semana passada Ana Chiara  ensaiava uma carta  que dizia do artista no feminino.  Um artista empenhado num processo de sedução continuada : parece que, ao artista no feminino, caberá a mobilização do outro, afetá-lo contaminá-lo sem oferecer a narrativa de uma experiência. Ana via em Leonilson, Ana Cristina César e Sylvia Plath, notadamente, elementos desse processo.  Retrospectivamente, Chiara queria alertá-los  do perigo do outro olho, queria empoderar os meninos sensíveis e as garotinhas odiosas.  Transformá-los no olho que eles queriam ganhar.

Na vogue deste mês (agosto / 2014) comentando duas exposições com trabalhos de Leonilson,  recentemente inauguradas em são Paulo, Ana Carolina Ralston vai chamar o artista de poeta visual.

No principal ensaio do catálogo de “São tantas as verdades” – primeira grande individual pós-morte de Leonilson  -  Lisette Lagnado classifica o trabalho de Leonilson como “Ficção Epistolar”:  cada peça foi rigorosamente construída como uma carta para um diário íntimo.  Discípulo de um ideal romântico malogrado,  Leonilson foi movido pela compulsão  de registrar sua interioridade a fim de dedicá-la aos objetos do desejo. Esse legado, enunciado por um “eu” cuja expiação é incessante, reavalia a subjetividade após as experiências conceituais. Isto é, desgastada a reflexão sobre o destino da arte, que teve a metalinguagem como ápice , a obra volta-se neste momento para o questionamento do destino do sujeito.   
  
Os textos enfatizam os elementos (auto)biográficos  da obra de Leonilson. O uso intenso da palavra com valor gráfico remete à tradição da  poesia visual.  Especialmente aos poetas concretos.  Mas enquanto os concretos vão usar fontes normalmente industriais – que é absolutamente condizente com seus projetos de modernidade – em  Leonilson a fonte é manuscrita. Esse gesto associa diretamente o trabalho do artista as escritas intimas (cartas, diários, agendas).

Arnaldo Antunes num dos 40 escritos fala da relação entre traço / timbre.

Gostaríamos de pensar a caligrafia como marcas/representações do eu-lírico nos trabalhos. Digo eu-lírico porque gostaria de pensar alguns trabalhos – particularmente os que tem no papel seu suporte – como poemas líricos.  Se tomarmos a definição clássica de poesia lírica como o tipo de “texto” onde o eu-lírico “canta” seus sentimentos subjetivos conseguimos identificar facilmente o trabalho de leonilson dentro dessa classificação.  O conceito de eu-lírico (máscara que veste o poeta em sua performance) para entender a relação de contaminação da arte à vida no trabalho de Leonilson, nos parece mais produtivo que uma leitura centradamente (auto)biográfica. O risco das leituras biográficas no tipo de jogo que propõe trabalhos como o de Leonilson (e Caio F. e Ana C., entre outros)  é transformar as obras em registros /documentos.   Eu-lírico e autor não são categorias pacificas. (Nem em si, nem em suas relações).
Essa semana no blog uma seleção de trabalhos de Leonilson onde a palavra é elemento destacado.  Junto publicamos fragmentos de uma série de entrevistas realizadas por Lisette Lagnado com o artista entre outubro e dezembro de 1992, alguns meses antes do artista morrer. Ao fim do post, o curta “Com o oceano inteiro para nadar”, de Karen Harley,  construído sobre uma série de diários gravados que o artista manteve nos últimos anos de sua vida.         




PARA COMEÇAR A FALAR EM LÖIC (1)


Para começar a falar em Löic preciso tornar atrás

um tempo e ver o quanto passamos naquele lugar quen

te e úmido onde ele construía seu iglú

Löic devia apresentar mais um projeto para a banca

examinadora ( eu também para a minha ) e nós tratá

vamos de continuar brincando de engenheiros mirins

apesar da falsa seriedade do caso

As bancas eram fictícias assim como o cérebro dos

jurados e o que mais atrapalhava era a seguran

ça destinada a nos atender

eu o havia conhecido no meio de uma festa de artis

tas ou num dos escritórios da banca que nos havia

convidado a preencher aquele espaço com 1000 dóla

res de nossas ingenuidades ( casuais )

nos mantivemos firmes eu com meu piano e Löic com

seu iglú, ele não era bretão nem desenhava menires

no ar enquanto assoviava

mas sabia subir rápido uma escada e havia me ensina

do a andar de cabeça para baixo e a recortar mol

des de gelo para o iglú , esse ficava no meio de

uma planície perto da jamaica talvez , seus vizi

nhos viviam numa horrenda construção preta quente

e inabitável

Löic havia ganho também uma espécie de terreno mura

do como o meu mas quadrado, não havia lugar para

fazer fogo por isso usava um grosso pullover

não tinha nenhum rio e lá longe podia ver-se o lago

O chão era duro como cimento e uma grande coluna

branca servia para deixar seu cavalo mas dificulta

va a escolha do lugar para o porto e a nave naufra

gada



Foi ele quem me mostrou o que fazer com o meio da

espiral , foi ele quem fechou o piano e me fazia

dormir cedo esquecendo a maioria das festas a que

éramos convidados

vários sacerdotes e carrascos nos viam juntos o que

gerava uma certa inveja neles e nos deixava muito

felizes, parávamos e comíamos nozes ou pedaços de

provolone

Quando meu terreno já estava plantado resolvi mudar

para sua terra, no começo fiquei pelos cantos até

que ele deixou que eu o ajudasse . O porto já tinha

seu lugar fixo e as bases de uma nave estranha ( mu

ndo ponte navio ) já estava ao largo do estuário

seco .

No meio deste tempo conhecemos uma pequena duende

japonesa que riscava paredes chamando de aspirado

res elefantes ou dinossauros àquilo que fazia

gastamos 15 dias na construção do iglú

os vulcões não foram acesos e meus livros foram

roubados

Como éramos gente do deserto , Löic e eu resolve

mos subir até a montanha na cidade das casas anti

gas , mais um quarto comprido e fino , nessa tarde

achamos um patinho de vidro provavelmente de se

colocar na frente de uma carro americano .



Agora estou de volta nesse continente estranho

cada cidade me mostra sua espécie de crise

desde aquela com pilares no rio e seu novo gover

no socialista . Passei também por aquela cidade luz

onde o rio tem várias pontes e vários palácios che

ios de guardas bravos que tem medo das bombas que

seus superiores mandam colocar para espantar seus

súditos e criar neles um espectro de racismo .



passei pelas termas de uma civilização romana e

cheguei até o lugar onde as pessoas põem o dinheiro

em contas secretas , no meio de bêbados reacioná

rios , vendedores de cobras de vidro e moedas

estrangeiras, encontrei uma América do Sul com

vulcões de lamparinas ( era um sinal , Löic est

va ali ) e pela segunda vez íamos nos encontrar ,

eu tinha a missão de dizer a ele que seu caminho

nessa terra tinha gerado frutos vermelhos e ouro

e aos depositantes isso lhes aprazia e ele devia

manter-se de olhos abertos para que algum maluco

não acabasse vendendo as pontas das unhas que ele

acabasse de cortar .

Mas , meu amigo Löic , tu és teu bom dono e sabes

manejar bem teu caiaque .

e eu que só sei de meu piccolo pianoforte que te

posso dizer? acho que deveria sim , dizer aos

mais habituados que nós somos hippies e que gosta

mos de garagens , nos custa suor fazer esses peque

nos mundinhos e nos

dão o prazer suficiente para aguentar vê-los troca

dos por dólares ou cruzados de prata ou quem sabe

dizer que somos cínicos ou ingênuos o bastante

para manejar os arcos e chamar o falcão que nossos

pais adestraram e fazem a nosso vigília .

Mas se sairmos do campo da representação sabemos

que os habituados também tem o seu ponto certo e

talvez já tenham cruzado o ar mais que nós

mas te digo também ( como Lawrence ) que

nós vamos cruzar esse deserto e chegar a Akaba , lá

começa a luta , a mais sangrenta .

Será que mataremos também como loucos ou veremos e

deixaremos os xerifes executarem os raptores das

belas sabinas .



volto para o Löic e lembro do riso que me deu

assim que desci do trem .

tínhamos palavras semelhantes para dizer e mais

uma vez estávamos sobre a mesma ponte ou sob ela

no mesmo rio , por isso não cumpri a missão de

fazer dele um bom manager .

Resolvemos esquecer que estávamos no concurso

e fomos à praia construir um vulcão de areia .



Löic era cristão tinha uma família e um aparta

mento no meio de uma cidade barroca , era especiali

sta em iglús e pontes metálicas , acho que rezava

todos os dias e também sabia o nome de alguns san

tos

fizemos alguns passeios e ele sabia o vocabulário

das árvores e das lojas de brinquedos

falava com os tambores as focas e os aviões , me

ensinou a língua dos aeromodelos e eu o ensinei

a tocar piano e a gostar de comida árabe

alguns podiam achar que era um moralista , mas

nem todos podiam entender que um cara podia gostar

apenas de fazer seus iglús e deixar que alguns

sonhadores tratem de comercializar isto ou aquilo que

ele deixou escapar


o transatlântico

blue

blue way

take me from here

oh my baby

I''m sure


(1) Texto transcrito respeitando a diagramação, pontuação e ortografia do original datilografado. 
















Terceiro dia
18 de novembro de 1992
No ateliê

- Levantei aqui algumas recorrências no seu trabalho. Há sempre uma figura  desenhada de uma maneira singela, com os joelhos recolhidos  para o peito; outras vezes o sujeito está dentro de uma composição em espiral.  Um halo de luz contorna o desenho.
- É. A posição é de autoproteção. O halo é energia.   
- Nem sempre a figura está sozinha. Ela também vem em pares.
- Às vezes. Uma característica do meu trabalho é a melancolia. E a figura pode ser sempre parecido com outra porque acho que este é o desenho mais simples que você pode realizar de um ser humano.
-  A figura, no meio de outros elementos, serve como uma decisão inicial para o desenho ou é uma assinatura que você se inventou ?
- Não, não. Ela é o ponto de partida. Os desenhos são sempre dentro de retângulos ou quadradinhos.   A partir da figura surge o que está em volta. É uma pequena reconstrução do mundo.


- A cabeça parece desproporcional e raramente apresenta traços fisionômicos.
-  Sim, porque às vezes eu erro. Alguns trabalhos mostram cabeças dentro de outras, mais ou menos  como quando você está pensando em alguém. Eu gosto  desse tipo de imagem. Há também figuras de cabeça para baixo.
-  Em Rios de palavras, há duas cabeças unidas por um rio que sai do ouvido e passa pela boca. A referência à palavra era tímida. Hoje você dá um outro peso, os trabalhos podem ser construídos exclusivamente da palavra. Há também a recorrência do rio com seus afluentes, que remete ao tronco da árvore com suas raízes, ou ainda, às veias e artérias do corpo.
-  É uma outra ideia que eu gosto muito. Sempre gostei de ficar vendo mapas quando lia sobre o Oriente, para procurar os lugares. Raízes de árvores parecem caminhos de mapas ou um desenho de anatomia. Eu relaciono as três coisas. Em Todos os rios levam a sua boca, de uma boca vermelha no meio da tela saem vários rios da região Oeste de São Paulo, misturados com frases minhas. Às vezes acho que pode ser um exercício de memória, para ficar relembrando.




-  É como o diário onde você faz uma simbiose entre o aspecto gráfico do mapa e seu mapa interior, registrando os lugares e as influências.
-  Em 1989, não sei direito a data exata, fiz um mapa com a localização da família do meu pai e da minha mãe, que foi vendido para um museu nos Estados Unidos. A família da minha mãe tinha uma fazenda no Rio Negro. A família do meu pai ficava na descida do rio Madeira, em direção à Bolívia.  Fiz o rio Amazonas com seus afluentes  - que têm nomes lindos -, um moinho e aqueles peixes gregos com a boca aberta.
- Outros elementos recorrentes são números, ampulhetas, bússolas, relógios. Instrumentos de medição do tempo e do lugar.
- Sempre fui muito ruim em matemática, mas tinha uma atração pelos números, por serem elementos gráficos. De vez em quando eles assumem uma verdade que pertence  ao sujeito , por exemplo minha idade,  ou meu peso ou minha altura. Adoraria estudar matemática. Quanto à ampulheta, ela traz uma noção de tempo que não acaba porque você sempre pode virá-la e começar de novo. Já a bússola foi um de meus brinquedos favoritos.
- A forma da ampulheta remete ao infinito. Você fez muitos trabalhos como número oito associado ao infinito. O que mais constitui seu tesouro mítico?
- Os peixinhos. Às vezes um, outras vezes em pares. E a escada, tipo escada de pedreiro.        
- A ampulheta ficou obsoleta. Você me lembra um alfaiate, aquele sujeito nostálgico cuja atividade foi varrida pela modernização.
- Mas isso não é a memória? A ampulheta conta o tempo que passa. Nos desenhos de 1989, a palavra entrou realmente nos trabalhos . Eu estava muito apaixonado. Ficava sozinho, sem saber direito o que fazer. Então pensei em escrever nos desenhos em vez de ficar escrevendo em cadernos.





- A realidade da palavra é totalmente autobiográfica?
- É.
- A discussão da arte contemporânea se voltou para a questão da autonomia da linguagem em relação ao sujeito. A pintura, que havia convivido estreitamente com a literatura, passa a reivindicar  em lugar autônomo. Como você  vê a questão da subjetividade hoje?
- Houve isso que você está dizendo, mas ao mesmo tempo existiam pessoas trabalhando num sentido contrário.  Louise Bourgeois, Palermo, Eva Hesse. Mesmo diante das obras de Walter de Maria, que poderia se encaixar na sua discussão, ou até  Beuys...
- Sim, Beuys é absolutamente autobiográfico.
- Acho que existem pessoas que insistiram no lugar do sujeito  dentro do trabalho, e eu sou um deles. Mas existe também os que trabalham ao contrário. Não sei dizer se a gente tem mais liberdade...
- Como você vê o fato de um indivíduo fazer o espectador  participar de suas angústia , de seus desejos?  A pintura se torna uma espécie de palco para exteriorizar sentimentos ou uma narração na primeira pessoa. A autorreferência não seria um aspecto restritivo à arte?
- Não. Tunga é um artista que tira pedaços dele mesmo e põe no trabalho. Alguns preferem que o trabalho fiquei longe do artista, o que eu acho também muito legal, outros lidam com aspectos íntimos, e projetam seu interior para a obra.    
- Quais são seus escritores de cabeceira?
 - Constantin Cavafy. Principalmente. Gosto muito de poesia.
- Há uma língua que você prefere?
- Não. Leio em inglês, francês, espanhol. Comprei uma antologia de poesia sobre a paixão, de vários lugares e vários autores. Releio várias vezes o mesmo livro. A Obra em negro, de Marguerite Yourcenar, é um dos meus livros favoritos. Tem o tema da viagem que me fascina. Quando era adolescente, li várias vezes Demian, de Herman Hesse.
-  O que é tão importante em Cavafy para você?
- Eu escrevo na linha dele. A escritura alimentava suas paixões. Ele ia para um café em Alexandria e ficava  contando, descrevendo os caras que via. Neste desenho, escrevi “boa notícia”. Eu tinha marcado um encontro com meu namorado para as cinco da tarde e às dez e meia da noite ele estava ligando para me dizer: “Leo, talvez eu chegue um pouco atrasado”. E, enquanto isso, eu ficava desenhando. Simplificando, é como um trabalho de repórter.
- Seria mais uma crônica.
-  O que é uma crônica?
- Na crônica, diferentemente da reportagem, você pode introduzir uma visão pessoal, uma interpretação dos fatos. É a narração em primeira pessoa.
- Então acho que todos os desenhos têm essa marca da crônica.
- Há uma força da narrativa, e um silêncio em volta dos desenhos que gera uma tensão. Você insiste nas cabeças ligadas por uma ponte. Por outro lado, as pessoas estão separadas, porque há uma vazio sob a ponte.
- É. Engraçado, porque a ponte é a ligação, mas as bordas não se encontram nunca.
- Só no imaginário. No plano físico, as pessoas estão marcadas pela distância. Você estabelece relações platônicas.
- Acho que me refiro à distância que a gente mesmo estabelece. São as barreiras colocadas propositalmente. É triste, bem triste, mas...


- Alguns desenhos parecem projetos de arquitetura. Este, por exemplo, “Os Homens com suas próprias atenções”.
- Seria uma escultura que eu nunca montei. É um objeto alto, feito de madeira, lembrando uma ponte.
- Quando conheceu o Albert  Hein, você chegou a fazer esculturas. Nunca mais depois?
- Só fiz uma instalação com Albert Hein, na galeria de Walter Storms. Já fizemos duas exposições em Amsterdã, cada um com seus trabalhos. O vulcão de neve foi impresso no convite. O que fizemos juntos foi um grande globo de madeira, com ripas vazadas e bandeiras que iam caindo até o chão.
-  Na época, a instalação era uma linguagem muito distante do que você vinha fazendo.
- Não tem longe ou perto. É preciso ir tentando e fazendo. Hoje, por exemplo, eu não ia conseguir cortar madeira, bater prego, transportar peso. Pela minha saúde...
- Você poderia delegar essas tarefas a um marceneiro.
- Não. Ou faço eu mesmo, ou faço outra coisa. Por isso, agora faço objetos de pano.
- Há toda uma linhagem de escultores que só trabalham assim. Por que você não passaria a execução da obra para outra pessoa? O problema é a questão da autoria?
- Simplesmente porque eu gosto de fazer. É meu prazer. A obra é conseguir fazer. A gente trabalha com o que tem. Se não é possível fazer alguma coisa, tem que fazer outra. É preciso respeitar isso. Eu já te disse que a obra não é tão importante quanto o aprendizado. É muito importante ir aprendendo com o que se faz.
- A questão do artesanato, do precário,  é fundamental nos seus objetos. Este desenho, por exemplo, mostra uma situação num equilíbrio difícil, próximo da imperfeição.
- É. Acho que nenhum marceneiro nunca aceitaria fazer esse trabalho. Como tem ideias mais rígidas  que as minhas, ele modificaria para a peça ficar certinha e não ficar bamba. Mas eu quero que a coisa fique bamba. Uma das características do meu trabalho é a ambiguidade. A gente falou de sexualidade na semana passada.  Eu dizia que meus trabalhos eram meio gays assim, mas não é isso.  Acho que eles são ambíguos mesmo. Por exemplo, eu trabalho com a delicadeza, uma costura, um bordado. Leda [Catunda] trabalha com aqueles colchões, aqueles monstros.  Isto é uma  ambiguidade em relação a ela como mulher. Assim como os bordados revelam minha ambiguidade na minha relação como homem. Gosto muito dessa forma de pote. Tem a ideia de uma pessoa que está  sendo esvaziada, outras vezes está cheia. Neste desenho, retirei uma frase de um texto da Maria Rita Kehl e acrescentei: “O desejo é um lago azul”, que já é uma frase minha. Eu gosto deste trabalho com uma pessoa se deitando na mão de outra. Sabe o que é estar completamente dominado por outra pessoa? Mas mesmo quando tiranizado ou dominado, você não perde o que é seu.



- Sim, o amor como forma de “servidão voluntária”.
- Eu bordei num trabalho: “O que você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto para servi-lo”. É uma relação servil, mas é você quem escolhe.        

 (Lagnado, Lisete: São tantas as verdades. São Paulo- DBA Artes Gráficas: Companhia Melhoramentos de São Paulo, 1998).
  

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Carta aos Analistas, de Ana Chiara: “Não me venha com cartas no bolso do colete”.



Confissão ou máscara?



Como pensar o desejo feminino?



Ou mais: como pensar o desejo feminino fora da figura da impossibilidade? Fora do reflexo de sustentação do olho do outro? Fora da cadeia de identificações com a figura masculina?



Numa mistura de ensaio e performance de carta íntima, a professora e poeta Ana Cristina de Rezende Chiara parte dos trabalhos de Leonilson, Ana Cristina César e Sylvia Plath para pensar um Artista no feminino.



O artista no feminino estaria empenhado num jogo de “sedução continuada”, na promessa de confissão – sempre adiada – que pretende mobilizar, afetar o outro. Mas que também o trona refém desse outro olho.



Como se libertar da tirania do olho do outro? Como se transformar no outro?



Esta semana no BNTB, Ana Chiara manda uma carta aos analistas.



***



Ana Cristina de Rezende Chiara (Ana Chiara), Doutora em Letras pela PUC-RJ, Professora Adjunta de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dedica-se à pesquisa nos seguintes temas: corpo, sexualidade, memória. Autora dos livros Pedro Nava: um homem no limiar (EdUERJ, 2001); Ensaios de possessão (Irrespiráveis) (Caetés, 2006); e Angela Melim por Ana Chiara (Col. Ciranda de Poesia, EdUERJ, 2011). Participa do GT da ANPOLL de Literatura Comparada e coordena o GrPESQ Corpo e Experiência (http://gpcorpoexperiencia.blogspot.com).



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Carta aos analistas: confissão da intimidade impossível



                                                                     Para Carla Damião e Márcia Tiburi 1



“I will not show you my eyes/ I.”



"Te dou minha íris , benzinho. que queres mais?" (a.chiara)





                                                 

              

       

I. Voilà mon coeur

                                                             



“Voilà mon coeur” (Leonilson, 1989) é o título de um pequeno trabalho de Leonilson, um paninho onde o artista costurou gotas de cristais. A obra bordada no feminino, digamos assim, remete ao “o coração exposto” das figuras religiosas; nela se inscrevem, na fragilidade e delicadeza dos materiais, tecido e cristais, significantes que nem mostram nem escondem nada; o coração do artista acena como um lenço, um véu, um velame, num adeus, bloqueando a possibilidade prometida de um serviço amoroso, da exposição de seu íntimo ao olhar do outro. Em outras peças, o artista se oferece. “Todos os rios desembocam na tua boca” (s/d)  é o título de outro de seus trabalhos, mas, em realidade, o artista sempre se retrai no silêncio irredutível de suas peças. O que Leonilson expõe, em outras obras - entre sangue e frases de diário, cartas endereçadas a um nobody, a um someone, a um príncipe perdido - é a recriação encenada de um rapaz apaixonado, assombrado por um fantasma romântico, são cantigas de amigo, com gêneros embaralhados; contudo, ao mesmo tempo, essa devoção amorosa parece refluir para um ponto aquém ou além de qualquer biografismo. Penso agora, no “Quarto do herói”, lembro com ternura título dado ao espaço que abrigou Leonilson na mostra Onde está você Geração 802, do CCBB. “Quarto do herói” foi o nome sintomático dado ao antigo cofre-forte do banco, onde se expuseram os trabalhos do artista. Nome-metáfora de uma exposição máxima (“Voilà mon coeur”) e de uma trava radical (um cofre-forte).



Assim como Leonilson, para mim, um artista no feminino, digo que certos artistas contemporâneos ensaiam no feminino uma sedução continuada, chamam para uma “conversa íntima”, que será o motor da criação e também o próprio logro do desejo de intimidade. Destinam “Cartas de almor” (Lacan, 1985, 105-120), como o delirante Lacan chama o endereçamento do desejo feminino. Lacan desliza nos significantes: letters, lettres, lèvres; descreve o desejo feminino talvez como lebres (“lièvres”) loucas, como palavras assustadas com os lábios (“lèvres”) rachados, feridas abertas na impossibilidade de serem comunicadas: “Não estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?” (CESAR, 2002, p.120), reclama a Ana C.; “para olhar minhas cicatrizes, há um preço”, diz Sylvia Plath (PLATH, 2005, p.65). Parece então que, ao artista no feminino, caberá a mobilização do outro, afetá-lo, contaminá-lo sem oferecer a narrativa de uma experiência.

               

Existiria, segundo Marcos Siscar, no texto “Ana C. aos pés da letra”, (SISCAR, 2009) uma afetação de sinceridade, uma teatralização do poema “dito com o coração”, quando o sujeito lírico finge expor a sua intimidade, em cartas, diários, notações confessionais. Estes gêneros da privacidade, muito usados por Ana C., criam um halo de intimidade, mas confessam, ao mesmo tempo, seu caráter de fingimento, o logro do destinatário “Hoje sou eu que/ estou te livrando /da verdade” (CÉSAR, 2002, p.59). Esta observação também pode ser estendida a Sylvia Plath: os mesmos vocativos aproximam o destinatário, para empurrá-lo depois com violência expondo a abjeção de seu corpo. No poema “Lady Lazarus”, de 1962, Sylvia encena um strip-tease cruel “A plateia comendo amendoins/ Se aglomera para ver/ Desenfaixarem mãos e meus pés - / o grande strip-tease,/ Senhoras e senhores” (PLATH, 2005, p. 63); Ana C. no poema “Epílogo”, do livro Luvas de pelica, coloca-se como um ilusionista num palco:Reparem nas minhas mãos, vazias./Meus bolsos também estão vazios./Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas./ Viro de costas, dou uma volta inteira”.



Ainda é Marcos Siscar, no texto “O Coração transtornado” (SISCAR apud NASCIMENTO, 2005, 135-142), quem desenvolve a noção de “dramaturgia jubilosa”. O crítico trabalha a hipótese de que, diferentemente das referências ao coração, como sede dos sentimentos, este órgão está em relação com o pensamento, numa perspectiva corporal dentro-fora.  O coração, como víscera, agitar-se-á jubiloso ao se perder. Quanto mais víscera, quanto mais dentro do corpo, menos dentro de si, ou seja, menos dentro de uma intimidade, mais experiência visceral de perda de si mesmo, experiência de confronto com esse buraco abjeto e escuro onde o corpo é breu, brevidade, brecha:



“Aquilo que, [...], se manifesta como problema de coração mostra-se repentinamente como experiência visceral. A partir daí, o que deveríamos reaprender a chamar ‘coração’ não diz apenas a qualidade de uma relação interior, mas deve ser aproximado do perigo da perda de interioridade. Não há coragem senão a esse preço”.



O “coração” seria, neste caso, menos sentimento, mais pensamento transtornado, tumultuoso, mais pulsão que sensação. A máscara sedutora dos poemas escritos no feminino faz semblante de confissão para se livrar do sortilégio do abandono pelo outro, é este temor que deve ser exorcizado, ensaiando, com um rigor obsessivo e paradoxal, nessas pequenas peças dramatúrgicas, não a confissão de um segredo, de sua “flor escondida”, não o que vai “no coração”, mas o júbilo de dirigirem o espetáculo e se retirarem de cena antes de serem deixadas.



- II- Sob uma redoma3



Então, é para você, que passo a contar agora os bastidores desse teatro. É para você que abro a caixinha de pandora. Não se assuste com o cheiro que exala. São trapos velhos, sentimentos apodrecidos, fetos que teimam em nascer fora do prazo. Você está me entendendo? Nenhuma hipótese de sinceridade, espontaneidade e do acolhimento femininos pode caber aqui, Meu Querido, só o cadáver deste amor.                  

            

O risco que quero correr é deslizar para este confronto entre o que estou chamando de um artista no feminino, sua demanda do olhar do Outro e a possibilidade de este artista poder manter-se ereto, suspenso no ar, sem esse amparo. O coração que eu quero expor neste trabalho não é o meu, nem o teu, mas o coração da arte que nos libertará do peso deste olhar, do peso deste mau olhado.



Ela estava toldada. Sob um toldo. Sob uma redoma de vidro (PLATH, 1999). A vida sob uma redoma. Ele descia as pálpebras, cortina de cílios, sem poder nunca alcançá-la, sem querer vê-la em realidade. Do desencontro dos dois, extraio tudo que não pode ser dito, nem é representável. Digo quase tudo. Digo aquilo que escapa entre um homem e uma mulher, um Ted e uma Sylvia, entre um Navarro e R; entre a mulher (uma analisanda) e seu psicanalista, entre mim e vc. Amor. Digo isso com suavidade, antes de matá-lo cinco vezes em sonho, a cada noite.



Olhar que seduz é a baba que recobre os textos de Sylvia Plath, assim como os de Ana C. Olhar endereçado a um impossível leitor, a um leitor hipócrita, incapaz de vê-las, escondidas sob técnicas profissionais de sedução, vocativos açucarados, dispostos de forma cruel, antes da próxima retirada de cena. Mulheres, aparentemente sob controle de seus intérpretes, seus analistas. Não quero aqui controlar nada, nem desmistificar, nem desconstruir “as tramas da consagração”(cf. LEONE, 2008); tampouco quero fazer leituras mirabolantes, análises de discurso. Estou até o tampo; trampo de etiquetas e rótulos. Preciso te dizer de novo? Não, não quero o real demais. Quero a aura das poetas, a auréola do bico dos seios delas onde vou sugar este leite, este fel, esta festa4, quero o halo de martírio que as envolve, essas prostitutas sagradas, mulheres oferecidas, quero a magreza das palavras delas, a anorexia santa dos seus encontros fortuitos com Deus5. Sim, eu quero tudo, quando finjo querer muito menos; quando desejo mais, quero mais, mais ainda, um mais além, não é assim que os psicanalistas nos definem? As que demandam amor, as garotinhas miseráveis?



Não vivemos ardis de feminilidade, segundo as teorias analíticas, até a última gota, desnorteadas, como bebês que buscam seus reflexos nas pupilas das Mães? Esse jogo sedutor, esse teatro mambembe, não é para recuperarmos nossos corpos no brilho sedutor do desejo nos olhos deste Outro? Não somos, nos manuais, aquelas que fazem semblante6? Nunca essencialmente femininas porque sempre fora do alcance da própria feminilidade? Máscaras, artifícios por oposição ao rosto masculino?



Então eu te aviso, Querido, não me venha com propostas indecentes de escrever, de pôr no papel o que me atormenta, a minha doce compulsão, o meu pecado, a minha droga. Não basta que eu transfira meu amor pra você? Essa operação complicada, assombrosa e inverossímil? Não me venha com cartas no bolso do colete. Nada de caderninhos terapêuticos, a escrita não me salva de nada. Pensar que a escrita consolaria alguém ofende as poetas que trago aqui. Pois te aviso, nelas o artista no feminino mergulha na escrita para poder morrer e ressuscitar. Elas cavalgam na escrita em direção ao sol vermelho, à pupila vermelha( “Ariel”,  PLATH , 2005, p.58), ao umbigo do mundo, galope de suicídio, quedas de uma janela.     



 “Amor, Amor, Amor”, eu sussurro em teu ouvido distraído, as mulheres mortas por olhares indiferentes, violentos ou invejosos de seus homens, são meu tema aqui. São elas que me assombram. Não me olhes com essa indiferença compassiva, por favor. Por isso retiro meus óculos quando conversamos, para desfocar o teu olho, para não ter de encarar nos olhos o real que você teima em agitar na minha frente.



Se exponho, em cena, esse teatro da intimidade. Se me comporto mal e divido, com o público essas anotações é porque vc. me pediu, saindo de férias. Foi uma provocação, Querido? Se trago à luz essas cartas trocadas, roubadas, extraviadas, cartas sem nunca chegar ao destinatário, cartas com destinação, mas sem destino, cartas de naufrágios, cartas entre o coração transtornado de uma mulher e o olho calculador de um homem, se te escrevo agora é para quebrar, de vez, o espelho entre nós dois. Se dirijo essa “dramaturgia do arbitrário” (“Cariátides 2”. HUGUES, 1999, p.25) é para libertar a mulher do peso da tua pupila. Se uso o poeta, Ted Hugues, é para que ele confesse entre a culpa e a devoção, que só pôde ver sua mulher Sylvia Plath, “por um instante sobre o caixão aberto”. Enquanto isso, um outro mantinha seus olhos encobertos por um jornal, obrigando a Ana C. a dizer: “Por que essa falta de concentração? Se você me ama, por que não se concentra?” (CESAR, 1985, p.154). E você, qual é a sua, Coração? O que vê quando se recusa a me olhar?



O que exponho aqui como osso fraturado, é o choque dessas subjetividades inconciliáveis, inconsoláveis: um homem e uma mulher. O que quer uma mulher? Um mais além do que a necessidade? Uma palavra de amor que a sustente no ar? Que a mantenha ereta, erétil, tesa, em pé, ultrapotente?  Numa outrapotência (cf. DERRIDA,2005)? Numa outra frequência? Afinal, o que um homem pode querer que a mulher queira - sem deixá-la escapar ao controle dele, sem ficar escondido, toldado por um pensamento armado como uma tenda? “O gozo fálico tem assim, por princípio, tornar a mulher inacessível ao homem” (ANDRÉ, 1998, p.230)



Eu negocio aqui a rendição do olhar que não se rende. Do olhar apolíneo de um homem, olho controlador, e do olhar revirado de uma bacante, como uma Sylvia Plath, como um plaft, um tapa no teu rosto. Entre o olhar detivesco de um homem, um Ted qualquer, um “teddy bear”, um ursinho de brinquedo, um olhar que busca os segredos, e o olho semicerrado de uma Ana C., em pleno disfarce e sedução. Eu quero falar da paranoia de sustentação do real. Da vulnerabilidade da mulher que precisa ser sustentada pelo olhar de um outro. Sim, Meu Amor, é o teu olhar que me deixa de pé, parecem dizer os poemas. O que o olhar do Ted para a Sylvia e do Navarro para a Ana C., assinada R, quer encobrir é o desejo delas (em auto-exposição), o que o olhar no masculino não suporta é um “voilà mon coeur” dito por uma mulher, um voo, um roubo de cena, um arroubo no feminino. Estes olhos que os homens pousam nas mulheres, são olhos normalizadores, não apenas querem sexo-seguro, mas querem o desejo seguro, querem segurar o desejo, querem ficar no controle do desejo.



Por que Ana C. força o olhar do outro para que a veja sempre no voo pela janela, para que contemple seu corpo caindo uma, duas vezes, esguichando o sangue de uma poeta (MORICONI,1996)? Por que Sylvia Plath queria essa forma miserável de amor póstumo, esse olhar complacente do marido, no dia do aniversário, mesmo dentro do caixão? Fora deste circuito do olhar do outro, as poetas suicidas abandonariam a cena sado-masô, os rituais de sacrifício e de auratização da melancolia amorosa?



No livro Cartas de aniversário, Ted Hugues, escrevendo cartas endereçadas à Sylvia a cada aniversário post mortem, retroage no casamento para justificar que a morte rondava a mulher. Em “Retratos”, relata que um pintor Howard pintava o retrato de Sylvia Plath. Ted vê a morte nela pelos olhos do pintor _ jogo cruel e especular _

                         
“Howard era ajudado por espíritos. às vezes / 
Estou pintando e ouço uma voz, de mulher,/
Chamando Howard, Howard – débil, distante,

Morrendo aos poucos” (HUGUES, 1999, p.217)



Isenta-se assim de culpa por tê-la olhado com um olho mau? Lacan associa o olho mau ao desejo de reduzir a força do outro, deter o seu movimento: “Isso é a verdadeira inveja – a inveja que faz o sujeito empalidecer diante da imagem de um eu completo [...]”. (LACAN, apud. FOSTER,1996, p.266). No mesmo poema Ted afirma que Sylvia tinha “lábios exatos” (HUGUES, 1999, p.217), em outro, “O Tiro”, que a carreira dela “tinha a fúria de uma bala de alta velocidade” (HUGUES, 1999, p.47). No poema Febre 40º, Sylvia escrevera ardente: “Amor, amor, a fumaça escapa de mim/ como a echarpe de Isadora” (PLATH, 2005, p.49). A releitura do poema, feita por Ted, no poema “Febre” revela o quanto a entrega da mulher aos delírios da febre o assustara: “O que eu estava dizendo, no fundo era: “Não faça drama”” (HUGUES, 1999, p.107).



As “Três cartas a Navarro”, assinadas por R., constam do livro póstumo de Ana Cristina César, Antigos e soltos: poemas da pasta rosa (2008). São fac-símiles de cartas endereçadas a um suposto Navarro por uma suposta R. Nessas cartas, R expressa a vontade de barrar as exegeses de cunho psicológico “ratazanas esses psicólogos da literatura“ (Carta 1. CÉSAR, 2008, p. 17),  hesita mais uma vez sobre a possibilidade comunicativa da escrita “Na próxima tentativa (e cinco espinhos são) não soltarei mais que balbucios”  (Carta 2, idem, ibidem) e, por fim, expõe o lugar de onde fala, o coração transtornado, essa extimidade, termo utilizado por Lacan, que diz da impossibilidade de acesso ao íntimo, diz  daquilo que se expõe entre o “amor, desejo” e um tu que é “esquiva pessoa” (Carta 2 idem, ibidem). A extimidade faz a intimidade circular intersubjetivamente. Lacan define assim: “Extimidade fala que o íntimo é o Outro – como um corpo estranho, um parasita.”7: Ana termina essa carta com a seguinte frase “Falava-te de vísceras. Guarda este segredo; esta secreção. Não,” (Carta 3. idem, ibidem). 



Você está acompanhando o que eu digo? Sim, Amor, Sim, Amor. O que estou te dizendo, será que consigo te explicar toda essa ternura? É que, se, essas poetas, essas mulheres, essas garotinhas miseráveis, pudessem devir totalmente obscenas, sem anteparos dos discursos amorosos, se pudessem se olhar no espelho sem se sentirem abjetas, estariam livres do olhar para o qual fazem semblante. Ana C. temia perder o olho do outro, e ter de sustentar a poesia dela com uma tragada sem a aprovação amorosa do outro. Eu me esforço aqui pra tirá-la da morte e pô-la de pé sozinha na insustentabilidade da condição do artista no feminino, revertendo esse desejo de seduzir o outro, pra ficar seduzida por si própria. O salto, a seguir, seria tomar o olho do outro e fazê-lo dela8, poder se ocupar do outro; acho que é isso que diferencia o desejo de poesia libertado no artista no feminino. A Ana precisava do olho do outro olhando pra ela, enquanto podia querer o olho do outro pra ver o mundo como o outro vê.



Eu te pergunto então como seria, hein? Como você aplicaria as fórmulas das análises sobre histéricas, neuróticas, paranoicas? Como repetiria a explicação que já está pronta, redondinha? Os jogos de palavras? Como conseguiria detê-las em seu “jato de poesia”? Que máscara protetora antivírus você usaria contra essa contaminação, se elas pudessem te olhar depois do espelho partido?

               

Não disfarça, não olha o relógio, já estou terminando. Do mesmo modo que Clarice inicia um livro por uma vírgula, Ana finaliza a “Carta 3” por essa pequena suspensão da respiração, como quem se prepara para saltar sobre o outro. Te assustei, agora? Fica calmo, você está a salvo. Sou eu que aqui corro o risco de tropeçar no meu desejo. Sou eu que quero tomar a coragem do grande Sim à vida. Eu, a Sylvia e a Ana, Meu bem, somos nós que dizemos um grande Sim e fechamos a cortina sobre nós antes dos aplausos. Bem assim, ó Querido, nós apenas sem mais ninguém, nós atrás de uma cortina de lágrimas diante de uma plateia vazia. Cada uma por si: “Posso ouvir (agora) minha voz feminina: estou cansada de ser homem” (CÉSAR, 2002, p. 102).  Estamos bem, não se assuste. Estamos no auge de nossas forças, mesmo mortas no panteão da psicanálise onde a mulher não existe, nosso lado “negro avança e draga” (PLATH, 2005, p.95).



III. Possibilidades em aberto: as insígnias fálicas



Ao destacar o aspecto fingido, ou encenado, ou performatizado, da “intimidade confessada”, pelo “artista no feminino”, associando-o, no caso das poetas mulheres, ao diálogo amoroso e/ou à cena da psicanálise, quando esta  se debruça sobre a figura do gozo feminino como uma impossibilidade, fora do reflexo da sustentação do olhar do outro, ou ainda pela cadeia de identificações com as figuras masculinas, como já estudei em outros ensaios9, não desejo outra coisa a não ser mover o pensamento para possibilidades de afirmação do desejo no feminino  sendo, como no conceito deleuziano,  uma linha de fuga dessa economia. Busco também os deslocamentos de gênero, como em Leonilson, as possibilidades, em aberto, de campos de força inéditos, funcionando como aquilo que Roland Barthes designou como o “sorriso”10 que resiste às formas enrijecidas do poder político, ao fascismo da língua. Trato aqui, obviamente, da política das artes.

       

As palavras da crítica Lisette Lagnado reconhecem, como já apontei inicialmente, o caráter intimista da obra de Leonilson: “A obra de José Leonilson reservou seu lugar na ficção epistolar contemporânea. Cada peça foi rigorosamente construída como uma carta para um diário íntimo” (LAGNADO, 1998, p.27); ela assinala ainda o procedimento  elíptico e embaralhador no tocante as marcas de gênero. Podemos observar que, mesmo inscrevendo-se numa linhagem de artistas que executam trabalhos com tecidos e bordados (Leda Catunda, Artur Bispo do Rosário), é certo que se pode reconhecer, na delicadeza e minimalismo dos trabalhos de “costura” de Leonilson, certas marcas de um ‘possivelmente feminino’ na sua recusa ao ‘fazer artístico’ institucionalizado, no seu aparente inacabamento, configurando uma espécie de ‘sorriso’, um ‘détachement’ afirmativo contrário ao discurso hegemônico, uma corrosão dos discursos de poder, não irônico, mais sutil, no sentido barthesiano. Reconhecemos, em certos ‘escritos bordados’ nos trabalhos dele, o uso dos vocativos ‘açucarados’ de Ana e de Sylvia, a estratégia de sedução como forma de endereçar de forma cativante um convite de intimidade com público. Mas a questão é saber de que modo e para quê?



Quando expõe ‘seu ‘coração’, no “Voilà mon coeur”, Leonilson nos confronta, de modo irônico e paradoxalmente terno, com uma cadeia de significações onde a exposição e o toldamento excitam o desejo do público pondo em questão não apenas aquilo que o outro pode fazer com o que lhe oferecem (“faça dele o que quiser” é a frase bordada no verso do pano), mas, de certo modo, questionando a expectativa do outro: o que fazer com um coração posto a nu? Leonilson barra o acesso ao local da intimidade, já que posto a nu, o coração perde a ‘identidade’, se podemos dizer assim, o seu apelo secreto, seu mito. Uma exposição máxima do artista levaria ao desgaste do uso, à mercantilização da obra, à inserção no mercado. Do mesmo modo que Ana C. reclamava dos abutres críticos que buscariam os fantasmas biográficos nos poemas, Leonilson perturba essa demanda sob a máscara do herói apaixonado.  Nesta falsa exposição do ‘eu’, revela-se, portanto, o negaceio da voz interior, de um pathos individual, embora crie efeito sempre lírico. Ao tematizar o abandono, é o abandono do outro que está em causa, como uma “puxada de tapete”, pois, à promessa de entrega total, sobrepõe-se a insuspeita liberdade da negação absoluta: “O que você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto para servi-lo”, ele bordou num trabalho de 1991.



Essas promessas ambivalentes resultam de um constante movimento de deslocamento por limites ambíguos não só da paixão amorosa, como das opções sexuais, até chegarem a uma recusa da dicionarização normativa, ou por erros ortográficos deliberados, ou por silepses de gênero: “Leonilson recusa as regras da sintaxe e impõe uma concordância baseada na sua vontade própria. È o caso de “O Ilha” (1990) e “O Penélope” (1992) que reúnem os gêneros masculino e feminino num único objeto” (LAGNADO, 1998, p.49).



Digamos que o “lado negro”, torto ou perigoso (um dos adjetivos atribuídos a si mesmo por Leonilson) também avança sobre o público desafiando limites, ampliando as (im)possibilidades da confissão íntima no cenário contemporâneo.  De algum modo essa complexidade está condicionada a uma exigência cada vez maior dos meios midiáticos para que nada fique oculto, nenhum segredo seja guardado e toda a intimidade seja confessada, o que cai na rede é peixe, vejam-se os diários íntimos publicados como blogs. Fim do secreto é o crime contra o real, diria Baudrillard. Ao teatralizarem uma intimidade impossível esses artistas no feminino, destronando os pais, elegem as mães como modo de dissolver o pátrio poder da Língua da Arte em favor de outra potência, a da fala do artista. Aos artistas no feminino talvez caiba o sorriso desafiador enquanto empunham suas insígnias fálicas de resistência a essa desmedida contemporânea.



“Hay un pequeno comentário de Lacan sobre lo que la madre transmite, trata sobre una chica que dice a su madre: cuando tu mueras, yo tendre tu sombrero y tus vestidos; vemos que es algo que tiene una cierta proximidad con el cuerpo, con la envoltura, una metonímia del cuerpo. Lacan dice que eso no debe ser interpretado como un modo de agresividad hacia madre […] sino como aquello que habla de la transmisión de la madre a la hija de las insignias de lo femenino, insignias fálicas” (BROSSE, 2001, p. 57)







                                                                   FIM




NOTAS

1. Este trabalho é tributário das comunicações A representação pictórica do corpo morto: a Ophelia de Millais , por Carla Damião (UESC) e Ofélia – A Anti-Ninfa Morta , por Márcia Tiburi (Universidade Makenzie), no IV Colóquio de Filosofia e ficção, UERJ, 2009.

2. "Como vai você, Geração 80?" foi realizado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage do Rio de Janeiro. A exposição retomou a pergunta feita há 20 anos, reunindo 130 trabalhos de 48 artistas que participaram daquela exposição histórica, ou que têm sua poética associada às questões da época.

3. Nesta parte do trabalho, performatizo uma “carta” utilizando a estratégia de “finta de intimidade” utilizada pelas poetas estudadas, para discutir a questão da demanda do olhar do Outro pelo sujeito no feminino. Seria bom lembrar que “qualquer semelhança é mera coincidência”.

4. Cito aqui transformado o verso de Ana C. “É daqui que eu tiro versos, desta festa...” do poema Sete chaves. In. CESAR, Ana. A teus pés. São Paulo: Ática, 2002. p.40.

5. Lacan faz referência aos transes extáticos , sempre ligados à anemia e ao jejum “É na medida em que o gozo é radicalmente Outro que a mulher tem mais relação com Deus do que tudo que se pôde dizer na especulação antiga[...]” . “Letra de uma carta de Almor” In.  LACAN, Jacques. Seminário: Livro 20. trad. M.D.Magno. 2ªed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. , 1985.

6. ANDRE, Serge: Fazer semblante é expressão desenvolvida pelo psicanalista André: “Mais exatamente, a feminilidade só pode ser atingida ou designada pelo viés de um semblante” .” “Da Mascarada à poesia”. In. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.p.269.

7. Lacan, apud. CESAR, Ana Cristina. Album de retazos: antologia crítica bilíngüe. poemas, cartas, imagens, inéditos. Comentado por Gonzalo Aguilar, Florência Garramuño. selecionado por Florencia Garramunho; Luciana di Leone; Carolina Puente. 1ª ed. Buenos Aires: Corregidor, 2006.

8. Cito o título “Tomar os olhos de Orlando e fazê-los meus” do trabalho de Marcos Alexandre Motta, no IV Colóquio Filosofia e ficção, UERJ, 2009. 

9. Refiro-me aos textos: “Escrita travesti” e “Estou sentada diante de teu texto...: Hilda Hilst e Sylvia Plath, as filhas engendram os pais”. In: A Literatura dos anos de 1950. Rio de Janeiro: Caetés, 2006, v.1, pp. 11-30.

10. Refiro-me ao que Roland Barthes declara no CD de entrevista (Roland Barthes:fragments de voix- entretiens avec Jean-Marie Benoist et Bernard –Henri Lévi- Les grandes heures. Ina/Radio France-1977/2004, part IV. La réactions au pouvoir).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



ANDRE, Serge. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

CESAR, Ana. A teus pés. São Paulo: Ática, 2002.

_______. Inéditos e dispersos. São Paulo:Brasiliense, 1985.

_______ . Album de retazos: antologia crítica bilíngüe. poemas, cartas, imagens, inéditos. Comentado por Gonzalo Aguilar, Florência Garramuño. selecionado por Florencia Garramunho;Luciana di Leone; Carolina Puente. 1ª ed. Buenos Aires:Corregidor, 2006.

_______ . Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa .org. Viviana Bosi. São Paulo:Instituto Moreira Salles, 2008.

DERRIDA, Jacques. Geneses, genealogias, generos e o gênio. PA: Sulina, 2005.

FOSTER, The return the real. The Avand-Garde at the end of the century. Cambridge, Massachussets/ London, England: The Mit Press, 1996

LACAN, Jacques. Seminário: Livro 20. trad. M.D.Magno. 2ªed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. , 1985.

LEONE ,Luciana di.  Ana C.: as tramas da consagração. Rio de Janeiro:7Letras,2008.

MORICONI, Ítalo. Ana Cristina César: o sangue de uma poeta, de Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.

PLAFT, Sylvia. A redoma de vidro. Trad. de Beatriz Horta. Rio de Janeiro: Record, 1999.

______ . Poemas:Sylvia Plath. Org., trad. ensaios e notas de Rodrigo Garcia Lopes, Maurício Arruda Mendonça. 2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.

SISCAR, Marcos. “O coração transtornado”. In: NASCIMENTO, Evando. (Org.). Jacques Derrida: Pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005, p.
135-142

SISCAR, Marcos. “Ana C. aos pés da letra”.Texto apresentado na UERJ, no Curso de Especialização, gentilmente repassado pelo autor via  INTERNET. 2009.



CD:

Roland Barthes:fragments de voix- entretiens avec Jean-Marie Benoist et Bernard –Henri Lévi- Les grandes heures. Ina/Radio France-1977/2004, part IV: la politique politicienne).