terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Roberto Piva [parte 1/2]: Uma outra cidade

Em setembro deste ano fizemos um post em torno do Roberto Piva. O post era um tributo de Clarissa Freitas ao doc  “uma outra cidade” de Ugo Georgette.   Histórias + poemas de  Antonio Fernando de Franceschi, Rodrigo Haro, Jorge Mautner e Claudio Willer.  Piva rondava o post (sendo inclusive sido citado no título) mas não aparecia com nenhum texto. Esta primeira postagem dedicada à sua poesia é uma espécie de complemento/desdobramento do post de setembro.  
Trazemos, então, o documentário de Ugo Georgette, diretamente dos arquivos de carlos lima, + uma seleção de Paranoia (1963)  e Piazzas (1964), os dois primeiros livros de Roberto Piva, que dialogam diretamente com o ambiente descrito tanto no doc quanto no post de setembro. (Não por acaso o filme começa exatamente no relançamento de Paranoia, em abril de 2000).
Uma sugestão que pode render leituras interessantes é brincar do jogo dos sete erros com o doc  de Ugo Georgette e “dentes da memória”  (Azougue, 2011), biografia de Camila Hungria e Renata d’Elia sobre o mesmo período e personagens (no livro Haro e Mautner viram coadjuvantes e Roberto Bicceli, que não aparece no doc, vira o quarto beatle).  Formalmente a montagem do livro se assemelha muito a transcrição de um documentário.  
Entre o filme e o texto, a gente imagina Piva como um personagem do Detetives Selvagens de Roberto  Bolaño. Piva é Ernesto San Epitáfio explicando a taxionomia literária para Juan Garcia Madero (que pode ser Willer, Haro ou Mautner, de acordo a sua imaginação):

Ernesto San Epifanio dissera que existia literatura heterossexual, homossexual e bissexual. Os romances, geralmente, eram heterossexuais, já a poesia era absolutamente homossexual, os contos, deduzo, eram bissexuais, mas isso ele não disse.
Dentro do imenso oceano da poesia, distinguia várias correntes: bichonas, bichas, bicharocas, bichas-loucas, bonecas, borboletas, ninfos e bambis. Walt Whitman, por exemplo, era um poeta bichona. Pablo Neruda, um poeta bicha. William Blake era uma bichona, sem sombra de dúvida, e Octavio Paz, bicha. Borges era bambi, quer dizer, de repente podia ser bichona e de repente simplesmente assexuado. Rubén Darío era uma bicha-louca, na verdade a rainha e o paradigma das bichas-loucas.
– Na nossa língua, é claro – esclareceu –, no vasto mundo o paradigma continua sendo Verlaine, o Generoso.
Uma louca, segundo San Epifanio, estava mais próxima do hospício florido e das alucinações em carne viva, enquanto as bichonas e as bichas vagavam sincopadamente da Ética à Estética, e vice-versa. Cernuda, o querido Cernuda, era um ninfo e, em ocasiões de grande amargura, um poeta bichona, enquanto Guillén, Aleixandre e Alberti podiam ser considerados bicharoca, boneca e bicha, respectivamente. Os poetas tipo Carlos Pellicer eram, via de regra, bonecas, enquanto poetas como Tablada, Novo, Renato Leduc eram bicharocas. De fato, a poesia mexicana carecia de poetas bichonas, embora algum otimista pudesse pensar que aí se enquadravam López Velarde ou Efraín Huerta. Bichas, em compensação, abundavam, do maldoso (mas por um segundo escutei mafioso) Díaz Mirón até o conspícuo Homero Aridjis. Deveríamos remontar a Amado Nervo (vaias) para encontrar um poeta de verdade, quer dizer, um poeta bichona, e não um bambi como o agora famoso e reivindicado potosino Manuel José Othón, pesadão como ele só. E falando de poetas pesados: borboleta era Manuel Acuña e ninfo dos bosques da Grécia, José Joaquín Pesado, perenes cafetões de certa lírica mexicana.
– E Efrén Rebolledo? – perguntei.
– Uma bicha menorzíssima. Sua única virtude é ser, se não o único, oprimeiro poeta mexicano a publicar um livro em Tóquio, Rimas japonesas, 1909. Era diplomata, claro.
O panorama poético, afinal de contas, era basicamente a luta (subterrânea), o resultado da pugna entre poetas bichonas e poetas bichas para se apropriarem da palavra. As bicharocas, segundo San Epifanio, eram poetas bichonas no sangue, que, por fraqueza ou comodidade, acatavam – se bem que nem sempre – os parâmetros estéticos e vitais das bichas. Na Espanha, na França e na Itália os poetas bichas foram legião, ele dizia, ao contrário do que poderia pensar um leitor não excessivamente atento. O que acontecia era que um poeta bichona feito Leopardi, por exemplo, reconstrói de alguma maneira os bichas feito Ungaretti, Montale e Quasimodo, o trio da morte.
– Do mesmo modo, Pasolini retoca a bichice italiana atual, vejam o caso do pobre Sanguinetti (com Pavese eu não me meto, era uma bicha-louca triste, exemplar único de sua espécie, nem me meto com Dino Campana, que come em mesa à parte, a mesa das bichas-loucas terminais). Para não falar da França, grande língua de fagocitadores, em que cem poetas bichonas, de Villon à nossa admirada Sophie Podolski, apascentaram, apascentam e apascentarão com o sangue de suas tetas dez mil poetas bichas com sua corte de bambis, ninfos, bonecas e borboletas, excelsos diretores de revistas literárias, grandes tradutores, pequenos funcionários e grandíssimos diplomatas do Reino das Letras (ver, se for o caso, o lamentável e sinistro discorrer dos poetas da Tel Quel). E nem falemos da bichice da Revolução Russa, em que, se tivermos que ser sinceros, só houve um poeta bichona, um só.
– Quem? – alguém lhe perguntou.
– Maiakovski?
– Não.
– Essenin?
– Também não.
– Pasternak, Blok, Mandelstam, Akhmatova?
– Muito menos.
– Diga de uma vez, Ernesto, estou roendo as unhas de curiosidade.
– Só um – San Epifanio disse –, e tiro já a sua dúvida, mas este sim, bichona das estepes e das neves, bichona da cabeça aos pés: Khlebnikov
                                                                           ###

Aqui na bliss consideramos o Piva uma bichona, detetive selvagem no deserto de São Paulo. Mas sei que já disseram por aí, e foi pessoa seria quem falou, que ele não passa de uma bicha. Azinimiga chegaram a dizer que era na verdade uma bambi.

***

De Paranoia (1963)

A Piedade

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema
paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos
sábados à noite
Eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu de ferro e me 
fariam perguntas por que navio boia? Por que prego afunda?
Eu deixaria proliferar uma úlcera admiraria as estátuas de 
fortes dentaduras
Iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho 
todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos

*

Boletim do Mundo Mágico

Meus pés sonham suspensos no Abismo
minhas cicatrizes se rasgam na pança cristalina
eu não tenho senão dois olhos vidrados e sou um órfão
havia um fluxo de flores doentes nos subúrbios
eu queria plantar um taco de snooker numa estrela fixa
na porta do bar eu estou confuso como sempre mas as galerias do
meu crânio não odeiam mais a batucada dos ossos
colégios e carros fúnebres estão desertos
pelas calçadas crescem longo delírios
punhados de esqueletos são atirados no lixo
eu penso nos escorpiões de ouro e estou contente
os luminosos cantam nos telhados 
eu posso abrir os olhos para a lua aproveitar o medo das nuvens
mas o céu roxo é uma visão suprema
minha face empalidece com o álcool 
eu sou uma solidão nua amarrada a um poste
fios de telefônicos cruzam-se no meu esôfago 
nos pavimentos isolados meus amigos constroem um manequim fugitivo 
meus olhos cegam minha mente racha-se de encontro a uma calota
minha alma desconjuntada passa rodando

*

Os anjos de Sodoma

Eu vi os anjos de Sodoma escalando 
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando 
prodígios para a criação não
perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e 
violentos aniquilando os mercadores
roubando o sono das virgens
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando 
A loucura e o arrependimento de Deus

*

Poema porrada

Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei  uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil
cristãos fábricas palácios
juízes patrões e operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o tímpano de
duas centopeias 
o universo é cuspido pelo eu sangrento
de um Deus-Cadela
as vísceras se comovem 
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
esqueleto
eu preciso esquecer que eu existo
mariposas perfuram o céu de cimento
eu me entrincheiro no Arco-Íris
Ah voltar de novo à janela
perder o olhar nos telhados como
se fossem o Universo
o girassol de Oscar Wilde entardece sobre os tetos
eu preciso partir um dia para muito longe
o  mundo exterior tem pressa demais para mim
São Paulo e a Rússia não podem parar
quando eu ia ao colégio Deus tapava os ouvidos para mim?
a Morte olha-me da parede pelos olhos apodrecidos
de Modigliani
Eu gostaria de incendiar os pentelhos de Modigliani
minha alma louca aponta para a Lua
vi os professores e seus cálculos discretos ocupando 
o mundo do espírito
vi criancinhas vomitando nos radiadores
vi canetas dementes hortas tampas de privada
abro os olhos as nuvens tomam-se mais duras
trago o mundo na orelha como um brinco imenso
a loucura é um espelho na manhã de pássaros sem Fôlego

*

Meteoro

Eu direi as palavras mais terríveis esta noite
enquanto os ponteiros se dissolvem
contra o meu poder 
contra o meu amor
no sobressalto da minha mente
meus olhos dançavam
no alto da Lapa os mosquitos me sufocam
que me importa saber que as mulheres são 
férteis se Deus caiu no mar
Kierkegaard pede socorro numa montanha
da Dinamarca?
os telefones gritam
isoladas criaturas caem do nada
os órgãos de carne falam morte
morte doce carnaval de rua do 
fim do mundo
eu não quero elegias mas sim os lírios
de ferro dos recintos
há uma epopeia nas roupas penduradas contra 
o céu cinza
e os luminosos me fitam do espaço alucinado
quantos lindos garotos eu não vi sob esta luz?

***

De Piazzas (1964)

Piazza VI

Algumas vezes
                as bombas de sorvete
                     caindo há 15 anos
                                 durante a tempestade

Sem ler
        Freud ou Villon
                  os garotos
                                         rompem barreiras
                  então em qualquer
                                            terreno baldio
iluminam
                               vestem-se
                                            no furacão do amor humano
onde
                               um cometa se desdobra

TESTE DI RAGAZZI CHE RIDONDO
          nos céus de whisky
          em cada canto da boca
                                                   cósmica

Matéria & clarineta

As panteras das plumas & as tranças das estrelas
numa fuselagem sem saída
um pelicano de tempos em tempos esganiça o mar dos 
      ambulantes

noite de meninos com corações brancos
fendas diminuídas  na imóvel lamentação entre a sopa
       & o garfo de polaroide
os canteiros dos clavicórdios em oblíqua oração sob os
         dentes

um curto langor & velas ampliando

*

Piazza VII

O equilíbrio (embora meu)
é um pouco teu como esta luz ao nível da maré
que tu divides benfeitor fascinando meu olho de fogo
            justo
é a vibração impossível de domar agora na potência do
            vazio celeste
dizem que urras
desmaias & tens visões
rolando sobre tua boca dilatada as auroras feitas de
            Presa

*

Piazza VIII

Eu aprendi com Rimbaud
& Nietzsche os meus
toques de INFERNO
(Anjos de Freud
            sustentai-me!)
& afirmando isto
    através dos quartos sem teto
    & amores azuis
eu corro até a colher de espuma fervente
      driblando-me no cemitério
faminto da última FOME
com tumbas & amantes cheios de pétalas
porque o céu foi nossa última chance
    esta noite

*

Piazza IX 

Os corações árticos coçavam suas cabeleiras cultivando
a morte
grandes & ardentes no mesmo sopro de um mesmo
sorriso apodrecido
purificados como os nossos idênticos pioneiros metálicos
às vésperas dos trovões de ar que nos arrebatam as
cabeças para o céu
sobre os muros de plenas dissecações ao brilho
inesperado do salmão das nuvens
nas cidades circulares de dolorosos espinhos atômicos
na infância cor de pêssego como a hora do amor
em cada solitário as mesmas oitavas com ossos à mostra
éter & línguas sólidas que nós não vemos
catalogadas ao lado trágico das mesmas ondas paralelas
aquelas que nos transportam vencendo toda a paisagem
purulenta
gotas de meninos morenos mudados em nevoentos
cascalhos de desolação
nas montanhas murchas de luar onde a lembrança é
cinzenta
correndo teu arco na tempestade solar da incerteza
o dia escurecia a auréola dos mortos descobridores de
Mágicas

*

PIAZZA XII

Teus olhos amarelos
                                 ritmados numa ferida distante
                                                                           de AMOR
A Rosa Azul & vazia como uma gaveta de hotel
Diga-me langorosamente os pequenos mamelucos
                                tremem em tentáculos eletrificados
       eu provo tua boca
                                       as folhas se desorganizam
                     em tapeçarias outonais
                                             & nas curvas de teus RINS
Fotografando em cores (em supremo grau como
                                                  o fogo na floresta)
uma cidade sagrada tão

                                        AZUL

***

Uma outra cidade, de Ugo Giorgetti



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