segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Ceci y Fer [Parte 1/2] - Eu já passei de moda

Em dezembro passado, dois dos editores desse blog estiveram em casa de Angélica Freitas (Pelotas, RS) por cerca de uma semana. A torrente de textos apresentados resultou numa postagem específica, espécie de mapa afetivo das leituras, entitulada Guia Poético Pelotense. Incapaz de dar conta de objetos tão distintos, apontava para caminhos que nos perseguem e influenciam ainda hoje. Retomamos aqui a publicação Ceci e Fer (poeta e revolucionária), primeiro número da revista de poesia escrita por Cecilia Pavón e Fernanda Laguna lançada em 2002 pela editora independente Belleza y Felicidad.

Escrita inteiramente por Cecilia e Fernanda, a revista espanta pelo que, nas palavras das autoras pode ser visto como “uma mistura de tosco e íntimo e vida. Pura vida com um pouco de arte.” Clama para si a invenção de um novo gênero poético, a poesia de hotmail (ou hotmail poetry). Além de webcorrespondências ou conversas de chat, segue como uma investigação por diversos registros: traduções e citações de canções pop (Shakira, Pink, Eminem), desenhos, caligrafia, mistura de fontes, receitas de remédio, correções e cortes a caneta sobre os poemas digitados... Mais que exercícios de estilo ou forma, a revista extingue qualquer fronteira entre arte e vida. Tudo é material poético e tudo é parte da autoficção em que mal se distingue qual das autoras escreve cada texto.

Entre as contradições e ambiguidades das autoras diretamente expostas e o tom jocoso e experimental, salta dos textos algo de jovem, ingênuo e, sobretudo, intenso. Livre.

Publicamos uma primeira seleção dos textos de “Ceci y Fer (poeta y revolucionaria)”. Año I. N I – 2002, Buenos Aires, Argentina – Revista feita por Cecília Pavón e Fernanda Laguna. Em tradução de Thiago Gallego¹.

***

Medo


Fernanda eu também tive medo de você.

Quando estava de viagem escrevi um poema sobre você, se chamava

“A casa de Fernanda”

mas perdi. Te conto partes, seguia mais ou menos assim:

Procuro uma música pra entrar na casa de Fernanda
a escada, o corredor, as plantas, a mesa
procuro uma música para falar da casa de Fernanda

Escrevi no inverno gelado de Berlim a milhares e milhares de quilômetros de distância, e falava da sua casa, as escadas, o corredor, as plantas, os quadros. E terminava que sempre tinha amantes no teu quarto, que ninguém conhecia, que tinham vindo da província e que de um dia pro outro desapareciam.

Tua casa sempre me pareceu muito misteriosa, o que não podia dizer de nenhuma outra casa a que tivesse ido. Tua casa antiga também, que foi onde nos conhecemos. As duas casas tinham algo....especial. Cê diz que eu sou “um ser estranho”, mas você... você, linda, é um ser muito mais estranho. Esse livro que escreveu “triste”, que curioso que é, com números em vez de poemas, curiosíssimo.

Acho que o ponto máximo do meu medo de você foi quando queimei um quadro que me deu de presente. Que forte foi, estava tão louca. Lembro e volto a me emocionar. estava tomada, paranoia total, 100% psicose, por sorte agora estou melhor...que seja, não sei se alguma vez voltamos a tocar nesse assunto, o queimei na pia de lavar pratos, e joguei os restos pela janela da cozinha.
Quando te chamei pra dizer que tinha queimado, me contestou
“ah, já estava queimado”
e era verdade era um quadro que tinha a parte superior esquerda com um furo que você havia queimado depois de pintar.

*


Na casa da ANA

Outro dia visitei uma guria
que não era das mais bonitas
mas era uma verdadeira comedora.
Uma vez no Festival do Rio me convidou a foder num motel
e eu disse que não
porque estava namorando.

Outro dia mandei um e-mail de guerra
Guerra!
Que dizia:
“Quer que eu vá jantar na tua casa?
hmmm....”
Ela me respondeu imediatamente (vê-se que estava conectada).
“Quarta às 19:30”
Bom depois liguei pra ela e acertamos.

Quando ia pra lá no ônibus pensava nos horários.
Já que tinha que estar de volta cedo, por causa do meu namorado.
Pensei,
chego às 20:30
conversamos até as 21:15 bebendo algo assim nos embebedamos
e comemos algo simplezinho que ela deve ter preparado.
Vou comer pouco assim me bate mais o álcool,
já que não tenho muito tempo para tomar muito.
Às 21:30 fodemos mais ou menos uns 45’.
Às 22 bebemos mais alguma coisa e fumo um cigarrinho, falamos de amantes
porque sei que ela curte
porque
ela é
uma
comedora
madura
esperta
sem onda
mas adulta, com muita experiência.

Comemos durante uma hora e meia fantasticamente,
nada simples
de 20:30 a 22:00.
Carne, com salada. Guacamole e queijos provolone ou gouda.

Meus horários estavam se alterando mas tinha uma margem de erro
Tomamos Campari e comi tanto que não bateu.
De modo que pedi mais álcool. Caipirinha.
Estava ótimo
e meu ânimo e meus planos pareciam que iam adiante
com problemas de cronograma mas adiante.

De repente,
começou a falar de mim.
“Que que manda? Te vejo um pouco deprimida...”
E começou a dizer coisas horríveis de mim e chorei.
Chorei feito louca
porque tinha razão.
Minhas lágrimas caíam de verdade, abundantes.
Não foi um truque pra que ela calasse.
Chorava de verdade.

Que faço o que me dá na telha, e me faço a idiota, a ingênua.
Chorei e ela não me consolou.
Seguia me reprovando coisas e situações.
Por que no ano passado tinha levado o pep ...
a nossa viagem de “amor” no festival de cinema do mar del Plata?
A verdade é que não sei por que fiz isso.
Ela tinha razão me pagou duas noites de hotel
e dormimos numa cama de casal
com uma caminha acoplada em que dormia minha melhor amiga.

Bom mandei mal ou fiz de propósito
não me lembro.
Chorei das 22:00 até 0:30
No meio tempo fomos à sua cama e falamos dos livros que ela lia,
e que eu não conhecia.
Cinco por semana.

Eram 0:45 e eu pensava Pra que me meto nessas aventuras?
Tá tudo tri mal.
Depois voltamos ao living e me disse
“Cê tá tri louca docinho, cê tá tri mal”.
Sim, estou tri mal e ela tem razão.
Mas ela sabia como dizer as coisas para que eu chorasse.

E eu?
Que penso de mim mesma?

*


REFLEXÕES AUTOMÁTICAS
               2ª PARTE
A)     O GATO

O livro do gato
ou o poema a Maria Moreno?
E o cachorro?
E a música chiclete?
E a inspiração?

Todo poema é charmoso
seja como for.
Gastar dinheiro é lindo
e é lindo que nos paguem.
Ganhar dinheiro com o trabalho.

Tenho poucas palavras pra usar,
quero utilizar mais
porém não me ocorrem

Jamais!

Minha espontaneidade é simplória e
despojada.
Insossa.
A minha é a escrita automática
da mente relaxada.

Forçando a mente para que se
relaxe.

A cidade está cheia de gente
de lugares que não conheço
institutos, bares, cafés.
Cada um é único
e o mundo gira ao redor dele.

Cada planta é uma árvore única
cada ser é importante ou não, e
único,
o centro da sua existência.
Óbvio.

Literatura de mente cansada.
Me canso de ter a mente tão
relaxada pra qualquer lado.
O relaxamento desenergiza,
tira vitalidade.
O robe é pierrot, um mimo.
Seu o mimo tenro.
A estátua viva falante.

Me surpreende a quantidade de crianças
que chegam mês a mês ao planeta.
Adoraria transitar outros corpos,
outras mentes,
outros sexos, outras circunstâncias
múltiplas.
A música é a ponte a outros
mundos de maior perfeição.
Me encanta saber que posso deixar
de fazer as coisas que acreditava não
poder.


B)     TRANSE

Acredito no amor a si mesma.
Acredito no poder reconstituinte da
autoestima.
Quero organizar um instituto com
migo mesma.

Quero descobrir o poder tácito de
querer-me.
Tácito, antagônico, depravado,
escuro, luminoso.

A liberdade na pintura é maior
já que está despojada de toda reflexão, portanto,
da noção de bem e de mal..
O lindo e o feio são relativos ao gosto de cada pessoa de forma que...
Liberdade, liberdade, liberdade.
Libertação através da combinação de cores e de materiais;
Através da não-pintura ( deixar os fundos da tela crua, o cartão sem
pintar).
A obrigação é não-obrigação.

A carreira artística é ao contrário.
Decorativismo, sensualidade, amor, expressão,
hobbie, entretenimento, conceitos e imaginação.

O tédio é falta de imaginação.
Os conceitos são as cores e isso é lindo.
Pintar através dos conceitos mais abstratos.
Um papel de seda é um conceito,
uma lã é outro absolutamente diferente.
Não faz falta explicar as diferenças.
O mais óbvio
é às vezes o mais oculto-obscuro.
O branco pode refletir muita luz
e fazer doer os olhos e fazer que a mente tenha que fechá-los;
A cola pode ser uma droga e ao mesmo tempo uma cor
e ao mesmo tempo cumprir sua função de cola.

Tudo isso é minha teoria do tempo-cor.
É impossível negar a influência do amor nas obras de arte
e, poderia até arriscar,
em toda criação física ou mental.
Os números são em simultâneo
a voz da matéria em geral.
Duchamp, el bosco, Leonardo, Giotto,
Santas Teresinha e Teresa, Santa Clara,
as bruxas que acabaram queimadas,
amarradas a postes queimados também,
e que não poderemos recuperar seus nomes; as artistas
que criaram as cidades acomodando copos no armário da cozinha.
Preparar ( já estamos chegando) uma simples comida
move as coisas em diversas regiões do planeta.
Acredito no poder da mente que pode
transformar, transportar e desmaterializar objetos (TTD).

Nasci para tentar me deslocar através da quarta dimensão.
Contemplei uma folha de maconha
e pude sentir sua influência no meu interior.
Acredito na simbiose, no mimetismo, na somatização
e na superstição (SMSS).
A imaginação e os sonhos (IS),
já está demonstrado,
são parte importante da realidade.
Dou a eles um lugar importante no meu dia e na minha noite.
Deixo que atuem.
Sou um canal de expressão.
Falo e escrevo em transe com a voz da gente do futuro
que imagino ou que virá.
Eu já passei de moda
e a gente do presente brilha estranha em seu transe de realidade.
É muito difícil adivinhar onde se encontra o homem que me observa de vez em
quando no ônibus.
Não sei e tampouco me interessa saber o que pensa.
Seria uma loucura tentar penetrar sua mente.
Minha realidade a essa altura do transe poeprosa
se mantém ao nível das palavras que consigo utilizar,
poucas ou muitas,
ao fim e ao cabo as palavras que me ocorrem.

Pela noite,
quando estou sozinha no meu apartamento,
sinto que há gente invisível mas que não faz ruído.
Costumo me assustar e entrar em pânico.
Olho e ao fazê-lo não vejo ninguém.
Vejo-os com o ponto mais lateral do olho até as têmporas.
Essa é a zona que percebe os seres de baixíssima resolução.
Quase invisíveis.
Me pergunto
Por que terei medo?

Também temo aos ladrões de verdade
e em um ponto se parecem.
Se deslizam como ratos com muita habilidade.
Uma vez conheci um ladrão que me bateu e o amei e depois o odiei
porque me tornou louca.
Sinto-me resvalar nesse terreno.
Desde pequena percebia
a presença de fantasmas sobretudo no banheiro,
atrás da cortina da ducha e nos armários.
De dia,
esperava a noite
dentro do armário pra que não me surpreendessem.

Ali dentro o ar era morno, denso como um abraço.
O espaço reduzia meus movimentos,
a escuridão relaxava meus olhos.
E me mareava como se flutuasse
entre as saias e as jaquetas da minha irmã;
Fora estava
em algum lugar da casa estava minha mãe
com suas duas fontes
a do amor e a da dor.

*

quem é mais cruel mais bruxa mais vampira?
                                   boa                     linda                      mágica


*


ANOTEI TEU TELEFONE NA MINHA PAREDE JUNTO DO RESTO QUE ESTOU COMEÇANDO A PASSAR A LIMPO; SE NÃO OS PERCO.
ONTEM À TARDE QUASE PASSO PRA DAR ALÔ, AINDA QUE ME DESSE VERGOINHA; MEU PSIQUIATRA DISSE QUE ERA BOBAGEM MINHA, MAS FIQUEI TRISTE E ........
BOM, ESPERO VOLTAR A TE VER,
BEIJOS
A GAROTA DO DARK ROM


AMANHÃ ME LEVANTO MUITO CEDO; COMEÇO A TRABALHAR E TENHO QUE ESTAR ÀS 7:30, DEPRESSÃÃÃÃÃÃÃO!
COISA DE 19:30 VOU ESTAR POR PERTO, TENHO TERAPIA. SI NÃO ESTIVER DESABANDO DOU UMA VOLTA.
POR OUTRO LADO QUERIA TE AGRADECER PELA COMPREENSÃO DE ONTEM; É A ATITUDE QUE MAIS PRECISAVA E QUE, LAMENTAVELMENTE, É DIFÍCIL DE RECEBER; OBRIGADA.
TE MANDO UM BEIJO GRANDE, VOU À CASA DE UMA MENINA QUE COLABORA COM A ARTE DO CURTA PRA VER UMAS MÁSCARAS.
BEIJOS,
A GAROTA DO DARK ROOM


OLÁ, FER.. TANTO TEMPO....
HOJE CEDO ESBARREI NOS TEUS EMAILS; E EM TANTOS OUTROS QUE NÃO PUDE CHECAR ESSES ÚLTIMOS DIAS. ESTIVE TRABALHANDO EM UMA FILMAGEM MUITO LOUCA PARA TV; LOUCA PORQUE ERA EM 16 E COM TRÊS CÂMERAS, COISA NÃO USUAL EN dicho medio. AS DIÁRIAS ERAM LONGAS, ENTRE 12 E 17 HORAS. TAMBÉM FIQUEI PENSANDO BASTANTE EM VOCÊ, E NO DESAGRADÁVEL DE MIM, EM RELAÇÃO A MINHA ABRUPTA AUSÊNCIA. O PIOR É QUE suelo SER ASSIM MISERÁVEL, FUGINDO DE TUDO E TODOS.
LOGO RETORNO NOVAMENTE AO COTIDIANO, AO MEU, NATURALMENTE. ENTRETANTO, TE VISITARIA SE FOR DO TEU AGRADO.
SÓ PRECISO QUE DIGA QUE NÃO TEM PROBLEMA.
ATÉ ENTÃO, UM BEIJO GRANDE,
CHEIROS,
A MENINA DO DARK ROOM



QUERIDA MENINA DO DARK ROOM:
NUNCA ME DEU BOLA
MAS FEZ UM QUADRO
QUE FICOU
BONÍSSIMO.
OBRIGADA
MAS
SE QUER
ME LIGA
LOGO
MANTIVE EM SEGREDO SEU NOME PRA QUE TE ANIME A RETOMAR A RELAÇÃO QUE QUASE NEM COMEÇOU
NÃO QUER SAIR PRA BEBER ALGO?
ACHO QUE TEMOS ALGUMAS COISAS EM COMUM

*


Hoje posso voar
tudo me cai bem
Sim.
Sou feliz
Alegre, atrevida
Te toco aí onde é gostoso
porque hoje me sinto
tri tri tri bem
comprou essa revista?
fez muito bem
garanto que vai curtir
vai se comover
vai se inspirar
Vai dizer:
quero fazer o que for...
e eu te digo:
junta suas mãos e reza
pra que esse momento tão lindo dure.
E quando se acabar vá comprar
a próxima revista
que vai estar incrível.

*


Estou ouvindo a canção do cavalo e do pônei
não acredito que é só o que escuto, é o acaso...
Tem ido ao psicólogo? Eu sim, mas estou por trocar de psicanálise a uma terapia mais comportamental e moderna. Acho que tem gente que precisa de coisas diferentes. Eu preciso algo mais contemporâneo. Hoje me sinto tranquilo e como você penso na morte, mas hoje posso pensar na possibilidade de ficar velha.
Seremos duas velhas fodonas?

Eu engordei 5 quilos numa semana ou duas. Culpa do psiquiatra. Tenho muita barriga e Javier Barilaro se enoja porque eu com o cinto evidencio. Mas tem que aproveitar. Quando se está peluda, tem que mostrar os cabelos. Quando se tem barriga, que te juro (me encanta jurar) vai diminuir, tem que colocá-la pra cima assim se nota. Moda, segredos da sedução.

Como conselho: “Explora tuas áreas fortes” Lembra que Javier nos disse que tínhamos narizes grandes e enroscados e torcidos. Acho que são muito originais. O meu é de estilo alongado como montanha.

Bem respondendo a teu email. Eu me sinto de “middle class”, e acho que o fim do mundo tem que ser inventado. Tem a ver com o poema que te mandei. Creio que desse email a parte mais interessante é a do fashion. ou não?

*

Fernanda não se suicide
se você desaparece eu desapareço
e o resto da vida é
o tempo que perco de fazer uma revista com você









Quer que façamos uma bandeira?

E se viramos djs?
manda ver e esse vai ser nosso primeiro disco
Djs....que nome nos damos?
Djs charmosas
Djs Cecilia y Fernanda
Djs confusão?

Tenho a tela...

bandeira triangular,
tipo aquelas com dois paus
ou tipo estandarte?

*

LUFTHANSA

Me senti bem quando me senti livre escutando música, fazendo
yoga ou andando de bicicleta.

Me senti bem caminhando pela rua Kollwitz
en Prenzlauerberg, um domingo de verão
que importava não ter namorado!
se ninguém estava desesperado
todos estavam bem
em breve brevíssimo poderei dizer o mesmo
me pergunto quanto custa uma passagem pra Prenzlauerberg
ou onde for




Cecilia,
comprei um nylon transparente
nele também podemos fazer a bandeira
e ir à próxima marcha pelos direitos da nossa amizade




*


Estou acorrentada ao e-mail
ao e-mail
ao e-mail
amo,
o e-mail
o e-mail o e-mail

Veja, não a internet, fria e impessoal
(“send me and email that says I love you”: pet shop boys)

*


“learning to love
yourself is the greatest
love of all”
                              (whitney houston)

*


Eu perdi porque tudo é um jogo
Minha casa estava cheia de bonecas
Faz uma semana guardei todas elas, beijei e lhes disse
até algum dia
não queria nada figurativo no meu quarto





por que mentiu sobre as
gurias com que tinha
dormido?
porque eram minhas amigas?
pensou que eu não ia descobrir?
“tudo se sabe entre mulheres”




Essa revista está escrita no meio do
desespero?
mais ou menos, da aceleração, da euforia, do
contágio, da fúria


***

1 – Nota do tradutor:

eu vou traduzir
todo o livro da cecilia
pavón
sem saber espanhol
e você vai ler
e perguntar
que porra de idioma
é esse?

               (por Thiago Gallego).

sábado, 20 de setembro de 2014

Quando Piva viu um lençol branco esvoaçante e disseram que era a alma de Breton e outras histórias de São Paulo (50-60)


Por Clarissa Freitas

A postagem dessa semana vem primeiramente da mala secreta do Carlos Lima (como mencionado na postagem sobre poesia surrealista aqui). Depois é toda influenciada e montada a partir do documentário “Outra Cidade” de Ugo Giorgetti que fala do encontro de jovens poetas e intelectuais na década de 50 e 60 em São Paulo. A cidade como um afluente de encontros que confluíam em livrarias como a Francesa, Mestre Jou, Loja do livro italiano, Phaternon e Palácio do Livro; nos cinemas Metrópole ou Niterói; nas festas ou nos bares da Rua São Luis. Eles se encontravam na poetização permanente, no afeto e no compromisso visceral com a vida. Eu falei com o Lucas que precisávamos fazer uma postagem sobre os “poetas marginais” em São Paulo. Apesar de saber da intensa carga categórica do termo, continuo usando-o, pois se naquele momento eles respiravam essa poetização e a faziam no encontro diário com o vinho barato misturado a leituras de San Juan de La Cruz e Artaud e beijavam a palavra e visitavam cemitérios, arrotavam a hipocrisia moralista, libertavam as questões partidárias, conviviam com traficantes que sabiam de cor Baudelaire, talvez assim se encontre a linha do uso do termo. Só para constar, esses poetas também são conhecidos como os Novíssimos.
Antonio Fernando de Franceschi, Rodrigo de Haro, Roberto Piva, Jorge Mautner e Claudio Willer se conheceram em São Paulo e dizem que o Piva era o grande agregador do grupo, mas falam também que a cidade parecia pequena nessa época. Invariavelmente, todos acabavam se encontrando tanto no circuito de livrarias como de bares. Dizem que as associações cinematográficas para a vida deles na época era “A longa noite de loucuras”  de Pasolini, “Boulevard do Crime” de Marcel Carné e “La Dolce Vida” de Fellini.
Um dos mestres para essa geração de poetas foi o pensador Vicente Ferreira da Silva. Vicente casado com a também poeta Dora, os dois disponibilizavam as suas histórias, pensamentos e ideias com jovens cheios de desejos e impulsos literários. Vicente publicava uma importante revista de cultura chamada Diálogos, na qual ele publicou Mautner com apenas 17 anos. A revista não tinha incursões acadêmicas nem Vicente; de qualquer modo, toda a geração nesse momento se importava em ser antiacadêmica e antimídia.

Esses poetas eram cinéfilos, assistiam avidamente os filmes nacionais, a Nouvelle Vague e cinema Japonês. Sim, enquanto no Rio de Janeiro tínhamos também nessas décadas muitos cineclubes, em São Paulo haviam mostras de Cinema Japonês que eram muito admirados, cineastas como Tomu Uchida e Eizo Sugawa. Voltavam no cinema repetidas vezes, “Morte à fera” é um desses filmes.

Outra referência que não pode deixar de ser mencionada é o editor Massao Ohno, que publicou os primeiros livros desses poetas. Conhecido como o editor Samurai, apresentava um trabalho diferenciado ao pescar poetas novos e combinar com trabalhos gráficos únicos. Massao acreditou nessa pluralidade poética dos novos poetas. Um dos seus escritos Massao de 2010: "Brecht aconselhava: ‘Quando tudo estiver perdido, monte um bar.’ Os bares proliferaram e disso nada resultou. Os bêbados é que mudaram. Não se faz mais ébrios como antigamente, sociais, brilhantes, abertos. A bebida, de dionisíaca passou a apolínea. E nada pior do que um etilista frio, individualista, calculista”.

As influências são as mais variadas desde os Beats, Romancistas Russos, Rimbaud, Baudelaire, Fernando Pessoa,  Henry Miller, Murilo Mendes, Rilke, Augusto de Campos até Monteiro Lobato. Reconhecidamente sobressai a influência dos Surrealistas e dos Beats. Em contrapartida desinteressava profundamente o formalismo.

Um relato maravilhoso do Piva mostra essa adoração por Breton quando o mesmo conta que andava na Av. Rio Branco perto da Casa Verde quando passa um caminhão de mudança com uma das portas do guarda-roupa aberto e preso um lençol branco esvoaçante. Na hora, seu amigo Michelli gritou: “Olha lá a alma do Breton”, isso deviam ser umas cinco horas da tarde. No dia seguinte, assistiu o noticiário sobre a morte do Breton no dia anterior às 16:30. Passaram-se anos e Piva leu o 3º Manifesto do Breton, no qual ele escreve: "Eu sempre digo aos meus amigos que quando eu morrer me leve ao cemitério num caminhão de mudança".

Ao trabalho com imagens extremas e um discurso que se volta sobre os lugares, onde os pensamentos se despedaçam pelo excesso do desejo, juntam-se geografias, traços da cidade sobre o traço da escrita, violência e psicodelia da experiência urbana. Nos olhares de Piva, Haro e Willer sentados na sala de estar passa um caminhão fantasmagórico sobre aquela aventura que antecedeu ao golpe militar. Depois vieram as neblinas, as mortes, as despedidas, o trabalho, os casamentos, os descaminhos da cidade de São Paulo.

Links importantes:






***

Rodrigo de Haro



O COZINHEIRO INFERNAL



Não podes desejar quem não devoras.

Não podes desejar se não devoras.

Não podes devorar quem não desejas.



Observo membros sonhados

Numa arena íntima que recuperas

De memória, com precisão de ourives

Escutas o latejar das têmporas

E teus maxilares crispam-se

Enquanto refletes na carne ex-

Posta do amado, para ser consumida

Pulsando ainda entre blocos de gelo.



Não podes desejar quem não devoras.

Não podes desejar se não devoras.

Não podes devorar quem não desejas.



Primeiro coração, carmim absoluto.

Logo o fígado, o ácido pâncreas

Onde os pensamentos sufocados petri-

Ficam-se em jardim de cartilagens.

Mas convém voltar depressa

À epiderme, onde abaixo das claví-

Culas, inclino-me para morder

Duas rosáceas antes de descer

- rubro e ofegante -  até as graças

Da tensa e amável cintura. Depois,

Depois de longo tempo, saciado, sob

As frescas copas de qualquer oásis

Irei deitar-me, tendo as garras,

O queixo e o peito negros de sangue seco.



Não podes desejar quem não devoras.

Não podes desejar se não devoras.

Não podes devorar quem não desejas.



(De Ofícios Secretos, inédito)


*



FIGURA CONTEMPLA UMA NOZ



O peso da noz cabe na mão

Decidida do rude visionário. Tu que

Me vês, és tu real? Tu que me lês,

Acaso a idade tens da pedra?

Cego que tropeças, de tua primeira

Casa ainda recordas? Quantas portas

Já rompestes sem obter guarida?



O peso da noz na palma determina

A extensão da tua vigília. Insistes

Em parti-la, em separar as frias

Hemifaces, em escrever na lousa

A fórmula do ponto luminoso.



Fitas a noz. Como emblema

Conciso e secreto do ominoso, fazes

Gira-las entre os dedos repetidos.

Rondas a cela curva, meditas

Astucioso. Quantas mensagens

Guarda este cofre fechado?



Como vulgívaga romã, plácido

Ovo, consideras a noz de

Substância parecida. Mais

Que alimento ela é

Símbolo e atributo. Fitas

A noz. Nada mais te per-

Tence neste mundo.



(De Ofícios Secretos, inédito)

*




OMBRA MAI FÚ...



É tempo de entoar a ária, de procurar

O deserto abraçado ao cometa sem

Esperar pelo sinal cruciforme dos

Empoados nos camarins, sempre

Conspirando contra o Príncipe.



Tua memória

São construções empíricas do mundo,

Licença libertina, feroz ades-

Tramento. Somos todos parecidos,

Sussurro e sombra fustigando

O Tenor imprudente, dilacerado.



Pela vaidade, esquecido

Da santa hierarquia, desabrido

Locutor da fria igualdade.

Atenta bem para a estrutura

Das moradas. Obedece:

- Esta é a ária. Teu fado é

Recomeçar sempre

A imodesta aventura da fala.



(De Ornitorrinco, Inédito)

*

LAS MORADAS



Apanha um tamborim e dança no meio

Da cozinha, esquecida das terrinas e

Dos pratos empilhados nas mesas. Segue

Até o pátio dando vozes para

Combater ameaças

Do êxtase. Pois nem Sempre

Se permite tê-los, com tanta louça

Para secar e todas estas doidas

Ansiosas pro visões.

Dança,

Um carro de bois avista-se ao longe.

O ruído monótono e doce de suas rodas

Morde obstinado a fímbria da paisagem

Seca, em pacientes ondulações

Sonoras de acalanto meridiano.



A mulher alta continua dançando e

Pequena sombra move-se agilmente

Debaixo dos seus pés no ritmo

Sacudido da folia onde se oculta

Discreto fio de mistério Sefarad.



A luz e o calor emitem som estrídulo

De chocalhos e guizos de cascavéis.

Tereza prossegue o baile envolta

Em luz, fugindo de outro arrebatamento

Inoportuno. O ruído, o clamor

Insistente das rodas

Esta cada vez

Mais próximo.

(De Tesouro dos Melodramas, inédito)



***


Cláudio Willer



POEMAS PARA LER EM VOZ ALTA



1

EROS
viajantes inertes
imersos no silêncio dessas horas
quando o tempo não é mais tempo
porém lassidão
e nossos corpos arquejantes construções
envoltas em nudez
testemunhada apenas pelos objetos da casa, os quadros na parede, os pesados móveis, os livros e suas lombadas, vasos de plantas, espelhos, e mais a negra silhueta dos prédios recortados contra a janela
rosto cego da cidade agora adormecida a observar-nos fixamente
eu bruxo, você sibila
que deuses cultuamos?
parados na pausa entre sobressaltos
que alquimia inventamos?
o peso que nos paralisa e adormece
não é cansaço
porém outra coisa
sensação do profundo
o obscuro sentir
do mundo que respira
pelos poros da escuridão
e nós, manietados pelo prazer, apenas conscientes
da presença dos objetos da casa, móveis, vasos de plantas, livros, almofadões
espalhados pelo chão, nossas roupas jogadas ao acaso, mais o negro recorte dos prédios
por trás da janela,
perfil da paisagem urbana, impassível testemunha
mal sabemos quem somos
lembramo-nos apenas dos nossos nomes
restam-nos o repouso e uma intuição
desperta para o morno mundo de nossos corpos
nunca, nunca havia sentido isso antes assim

2

quando o calor da noite de verão
e a chuva da noite de verão
se encontram
e são a mesma torrente de vida a escorrer por nossas artérias
então
reconhecemo-nos pelas carícias
um arco-íris pode sentar-se à cabeceira da cama
uma nuvem pode servir de cobertor
uma paisagem de sol nascente
em uma praia pontilhada de tendas de campistas
reflete-se no lago luminoso do seu ventre
a montanha e sua encosta recoberta de matagais
onde certa vez nos perdemos entre nascentes de rios
projetam sua sombra em suas coxas
planícies batidas pelo vento alísio
que atravessa o continente, o universo
são nossa imaginação febril

3

a colcha era verde
e a lâmpada azulada
costumavam ouvir músicas lentas e suaves
achavam que a estante repleta de livros tinha um ar solene
e gostavam disso
de qualquer coisa
que sugerisse um ambiente sobrenatural
eram rápidos, muito rápidos em seus jogos intelectuais
serviam-se em taças transbordantes, borbulhantes
e tudo era praticado com uma certa indiferença
com a naturalidade de há tanto tempo
termos nos habituado a estar juntos, a ficar nus, a beijar-nos na boca
deitar-nos sobre a colcha verde do sofá, à luz azul da lâmpada
ao lado da estante de livros compondo um clima de ritual
sugestão de coisa esotérica
decerto olhavam-se
e ficavam de voltar a encontrar-se outro dia
(as noite passavam depressa)

4

nossos hábitos delicados e perversos
nossas diversões meio delinquenciais, meio filosóficas
nossos prazeres íntimos e raros
as conversas irisadas de memória
gestos aos poucos entretecendo-se
na plenitude da nudez familiar
enquanto íamos nos transformando
nos pulsantes personagens crepusculares
de nossas narrativas
rodeados por um silêncio vivo, um tempo latejante
da noite percorrida
para não chegar a lugar algum
durante o dia
éramos simples mortais

5

é hora de dizer claramente como são as coisas:
você abre suas portas suas pernas seus braços sua boca seu corpo
você se escancara
eu embarco em você
eu me engajo me prendo me agarro navego em você
plano em um jogo de arriscado equilíbrio
atiro-me em seus abismos
singro suavemente sua brisa
enfrento seus maremotos
viajo por sua velocidade
perco-me no emaranhado de seu pântano, no labirinto de terra e de areia,
de água do mar e de água doce
- nós somos o pântano e somos o labirinto
cego-me em sua brancura
alço-me em sua ondulação
você é o planeta onde pouso
a nuvem em que me envolvo
aura estelar, dissipação de caudas de cometas
leva-me e me conduz
nessa dança desarticulada
para mais longe para o alto para o
profundo
me arrasta
amor oxímoro
amor, palavra de paradoxos

6

seus olhos têm muitas cores
que refletem o brilho de cada hora
estranhas palavras
atravessam nossas conversas
É PRECISO QUE SEJAMOS MODERNOS COMO O AMOR
mas não sei
se não recuaremos
confundidos diante da visão da nossa crueldade



7

ah, mas você não viu nada
essa festa para a qual me convida
só pode ser na clareira do matagal em chamas
no subsolo do edifício que desaba em escombros
pois o verdadeiro amor, o amor somado ao prazer, é outra coisa
overdose, êxtase infernal
que fatalmente nos destruirá


*

RUÍNAS ROMANAS

Quantos poetas
já não estiveram aqui
quantos poetas
já não escreveram
sobre a ofuscante aniquilação
diante desses dramáticos perfis minerais
tão próximos da pedra original
do barro anterior à forma
coisas
reduzidas a não mais que montanha
quase natureza
coisas
na fronteira da mão que trabalha, do vento, da água
aqui
ressoam os silvos do vento
aqui
ecoa a ensandecida voz do oco, do cavo,
da fresta
-
silêncio matizado de sussurros
e agora
eu também sou um dos que enxergam:
o informe
o monstruoso passado
-
foram os escultores do avesso
que as reduziram a isso
os autores
do cruel teorema
que nos condena ao presente
e repete
que nada sabemos,
nada vale a pena
pois passado e futuro só existem
como passo para a informe eternidade
-
a custo divisamos lá fora
a realidade logo ali, logo aqui:
outro lugar
onde existiremos menos ainda
nós
é que somos os fantasmas
e a solidez
é o que está aí,
nas ruínas
que não param de repetir
que isto-
NADA-é tudo o que temos

***



Antonio Fernando de Franceschi



CORPO

"... o único roteiro é o corpo. O corpo."
João Gilberto Noll


o corpo quer ordena sem recusa da vontade
a implacada ira seu domínio sabe altíssimo
sobre toda resistência quer o corpo em sanha
o outro corpo que no enlace o corpo assanha
e é fúria o doce nome seu jubiloso corpo
livre de amarras ou temores na aguda hora
que sempre mais e muito o infrene corpo quer
e a seu regaço incita em febre o corpo alheio
e logo é quieto o escuro abismo intranscendido
pois só o corpo aplaca o corpo em seu roteiro

*


SERPENTE



cauda e dente
inteira
se morde
a serpente
lenta se devora
ao norte
funda se engole
ao sul
e nada sobra
de uma e outra
a que come
e a comida
mais que a mesma
ancestral serpente
e a infinda fome
que a devasta
e nem morta
de si mesma
se sacia


*


GEOGRAFIA

"... Touch me, touch the palm of your hand
to my body as I pass..."
Walt Whitman


O leve arrepio de tuas mãos
me comanda suave
sigo-te pelos lugares de mim
que não conheço
amanheço-me vales
me percorro colinas
sou o campo em que te apraz
me transformares
ou senda perdida
num dorso de montanha

Me desvelo geografia
ao teu desejo
qual queiras
para colher-te em prados
ravinas
e na fina erva que me cobre o peito
te sentir os dentes
palmo a palmo cortando rente
sem pressa de me cegares
no olho da paixão


***


Jorge Mautner

POESIAS DE AMOR E MORTE


Ouço agora lá longe
Os acordes finais
Como os hinos de um monge
No templo dos samurais.

Espinhos e rosas
Rosas e espinhos
Como é que tu gozas
E não tens nem dás carinhos?

Vagueio no meio
De muitas pessoas e gentes
Só não sei se sou lindo ou feio
E se existem mais de três continentes.

Como se fazem versos?
Como se fazem mundos?
Assim como se fazem universos
Em segundos vagabundos?

Entenda: Meu lema
É não se venda
E não tema
Cavaleiros
Medievais
Feiticeiros
E bacanais.

Meu desejo não quer esperar, como eu erro!
Leva você pra longe de mim
Vou dar aquele grito, aquele berro
Eu vou chamar o Anjo Serafim.

Que é como um Arcanjo
E é amante do Arlequim
Todos tocam seus banjos
Só eu toco bandolim.


***